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OS SABERES MÉDICOS RACIALIZADOS E A BIOTIPOLOGIA

193 OS SABERES MÉDICOS RACIALIZADOS E A BIOTIPOLOGIA DESTINADAS ÀS

AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA

Conforme vimos discutindo ao longo do desenvolvimento deste trabalho, o discurso médico na educação pode ser percebido tanto a partir das questões de higiene quanto das eugênicas, sobretudo considerando as primeiras décadas do século XX, no Brasil. Tratava-se de um discurso que se traduzia em processos de mensuração das condições físicas e mentais dos alunos e das condições de sua educação. Como parte desses processos destacamos as seguintes práticas: a realização de testes de inteligência, de eletrocardiografias, de medidas antropométricas como o índice ponderal, o índice de robustez, a capacidade vital e o perímetro torácico entre outros.

Todo o procedimento de medidas psicológicas, físicas ou biológicas visava classificar as crianças para favorecer à criação de possíveis classes homogêneas. Assim propiciava-se, através de critérios “científicos”, a seleção e o agrupamento de crianças que estariam em um mesmo nível morfofisiológico, com o pretexto de facilitar a aprendizagem.

Nesse contexto, a educação física foi instituída nas escolas como um instrumento de controle da regeneração social, passando assim a desempenhar um papel fundamental no processo de racialização e ao mesmo tempo de higienização da sociedade.

Diante do exposto, o objetivo deste capítulo foi mapear as ações médicas para construir a biotipologia das crianças que frequentavam as aulas de educação física nos grupos escolares e nas escolas isoladas do Recife, com vistas a perceber como a biotipologia tentou estabelecer uma hierarquia entre brancos e negros a partir das suas práticas de racialização no ambiente escolar.

5.1. A Educação Física nos “moldes científicos”

No caso de Pernambuco, a partir das fontes com as quais trabalhamos foi possível traçar uma trajetória da ginástica, como matéria da programação escolar de 1917 até 1945, com o ensino de Educação Física propriamente dito. Na

194 documentação analisada percebemos que antes de 1930 não aparecia a educação física como nome de uma disciplina, mas utilizava-se a palavra gymnastica.

Sobre essa questão Soares (1996, p.9) afirma que a partir da última década do século XIX o termo ginástica ainda foi utilizado para denominar a aula que tratava das atividades físicas, mas paulatinamente um outro termo ganhou força, qual seja: Educação Física. Este termo surgiu acompanhado de um requinte no âmbito da pesquisa científica que era pensada a partir de análises laboratoriais. Nesse sentido, a partir de então as aulas passaram a ser divididas em três momentos: o primeiro era destinado a um trabalho de natureza aeróbica com um tempo para corridas e saltos; no segundo encontrava-se a presença de exercícios de força, flexibilidade e agilidade e no terceiro alojam-se os fundamentos de um determinado jogo esportivo, com sua posterior aplicação propriamente dita e, para finalizar, há uma volta à calma.

Ainda segundo o referido autor, ginástica compreendia marchas, corridas, lançamentos, esgrima, natação, equitação, jogos e danças. Surgiu na sociedade ocidental moderna como um movimento de caráter popular e sem qualquer relação com a instituição escolar. Este movimento, bastante vigoroso em todo o século XIX, teve sua denominação definida a partir do país de origem e ficou também conhecido como “escolas” ou “métodos de ginástica”. Os mais conhecidos no Brasil foram o Método francês, o alemão e o sueco, sendo, o mais divulgado e o que serviu de modelo para um método nacional de ginástica, o Método francês. Esses métodos e/ou escolas de ginástica não foram inicialmente para serem aplicados nas escolas, mas os pedagogos e os médicos tomaram os seus princípios básicos para elaborarem as matérias de ensino, considerando as especificidades escolares. Essa Ginástica compreendia exercícios individuais, em duplas, quartetos; o ato de levantar e transportar pessoas e objetos; esgrima; danças; jogos e, posteriormente, já no final do século XIX, os jogos esportivos, a música, o canto e os exercícios militares.

A partir de conhecimentos e teorias gestadas no mundo europeu os médicos desenharam outro modelo para a sociedade brasileira e contribuíram para a construção de uma nova ordem econômica, política e social. Nesta nova ordem, na qual os médicos higienistas ocuparam lugar destacado, também foi apontada a

195 necessidade de construir, para o Brasil, um novo homem, sem o qual a nova sociedade idealizada não se tornaria realidade. Por isso,

[...] a medicina social, em sua vertente higienista, vai influenciar e direcionar de modo decisivo a educação física, a educação escolar em geral e toda a sociedade brasileira. Assim, o médico se torna o grande personagem desta história, tendo em seu papel o dever de corrigir e melhorar o corpo social e mantê-lo em constante estado de saúde, respondendo a sua função higienista e impondo sobre as famílias uma mudança direcionada aos hábitos saudáveis, dando um fim nos velhos hábitos coloniais. Deste modo, para dar conta de suas atribuições, os higienistas passaram para a educação física um papel de moldar o corpo saudável, robusto e harmonioso em oposição ao corpo flácido e doentio do individuo colonial. (SOARES, 2001, p.70- 71).(Itálicos adicionados).

Assim a educação física, enquanto ginástica, passou a ser vista na escola como importante instrumento de aprimoramento físico dos indivíduos que fortalecidos pelo exercício físico estariam mais aptos para contribuir com a grandeza da sociedade crescente e com o exército se tornando “a própria expressão física da sociedade do capital” (SOARES, 2001, p. 6).

Nas escolas pernambucanas em 1917, por exemplo, a Ginástica Sueca era praticada, conforme podemos observar no relato realizado pelo inspetor Olyntho Victor sobre a situação do Ensino de ginástica. Segundo ele,

Desejando esta inspectoria que fossem feitos nas escolas os exercicios de Gymnastica Sueca, entendi-me com o Dr. Director da Escola Normal para que, de accordo com os pais dos alunnos daquelle estabelecimento, se designassem os estudantes capazes de ministrar o ensino da referida arte nos pontos indicados em uma relação que apresentei, procurando desse modo substituir a falta de instructores profissionaes e ao mesmo tempo offerecendo aos normalistas, occasião para pratica da missão a que se destinam. (PERNAMBUCO, 1917, p. 12).

No relato acima fica clara a opinião do inspetor Olyntho Victor sobre o papel que as normalistas teriam na condução dos exercícios de ginástica naquele momento específico. Posteriormente, foram elas que atuaram diretamente com os médicos no estabelecimento do biótipo do escolar pernambucano.

Ainda segundo o inspetor começaram, naquele ano, em quase todas as escolas da capital e em alguns municípios circunvizinhos, tais como nas escolas de Socorro, Jaboatão, Cabo, Olinda e até em Jatobá de Tacaratú, cujo instrutor era o

196 próprio professor José Constantino da Silva, os trabalhos de fiscalização, auxiliado pelo Inspetor escolar do 1º distrito, pelo diretor da Escola Normal e seu secretário, e pelo professor de ginástica, Pedro Alexandrino M. da Silva Pinto. Para tanto foram escalados mais de 40 alunos para esses exercícios, apesar da falta de áreas apropriadas em algumas casas escolares. Entretanto, ainda segundo o referido relatório, essa atividade teve muita regularidade e aproveitamento.

Seis anos depois, isto é, em 1923, segundo consta nos Programas das escolas primárias, o referido ensino deveria ser oferecido para todas as classes e constaria de:

Formatura, posições, alinhamentos e primeiros movimentos para marcha.

Movimentos de flexão de pernas, braços, troncos e cabeça. Evoluções cadenciadas com cânticos escolares.

Exercícios respiratórios.

Jogos livres e dirigidos pelo mestre. (PERNAMBUCO, 1924, p. 13).

Tudo indica que nos anos subsequentes não ocorreram grandes mudanças na estrutura organizacional da referida matéria, haja vista que até o final da década de 1930 encontramos alguns registros de aulas de ginástica realizadas no Grupo Escolar João Barbalho, conforme podemos observar na imagem abaixo. Nela é possível distinguir meninos e meninas no mesmo espaço fazendo exercícios, porém a qualidade da imagem não nos permitiu perceber se há crianças negras presentes na aula.

Figura 28

Segundo Ghiraldell períodos distintos. Até prioritariamente pautada prevenção de doenças especialmente nos ano Educação Física de con pronta para defender a educação física brasilei Educação Física Militari 1964); a Educação Físic partir de 1985).

A concepção higie Assim, o papel da Educ dispostos à ação. Mais d não se responsabilizava protagonista num proje ginástica, o desporto, o disciplinar os hábitos das capazes de provocar a d coletiva. “Baseava-se p

8: Grupo Escolar João Barbalho – aula de ginásti

Fonte: Pernambuco (1939b, s/p.).

lli Jr. (1994, p.16-17), a educação física n é os anos de 1930 tivemos uma

no higienismo, preocupada com o san e uma sociedade livre de vícios. Após

os de 1940, em plena vigência do Es ncepção militarista, com o intuito de for

a Pátria. O autor identifica, assim, ci ira, a saber: a Educação Física Higie ista (1930-1945); a Educação Física Pe ica Competitivista (pós-64) e a Educaçã

nista enfatizava a questão da saúde cação Física era formar homens e mulh

do que isso informa o autor que a educa somente pela saúde individual das pess eto de “assepsia social”. Assim, para

s jogos recreativos, etc. devem, antes s pessoas no sentido de levá-las a se af deterioração da saúde e da moral, o que rincipalmente no conhecimento científic

197

stica.

no Brasil passou por Educação Física neamento público, a o referido período, Estado Novo, uma rmar uma juventude inco tendências da nista (até 1930); a Pedagogicista (1945-

ão Física Popular (a

em primeiro plano. heres sadios, fortes, ação física higienista oas, mas agiu como a tal concepção a de qualquer coisa, fastarem de práticas comprometia a vida ico e biológico, que

198 buscava melhorar as condições de vida da população por meio do controle do comportamento com vistas à saúde pública.” (GHIRALDELLI Jr, 1994, p.16).

A concepção de Educação física militarista tinha como objetivo fundamental a obtenção de uma juventude capaz de suportar o combate, a luta, a guerra. Assim, a educação física deveria ser suficientemente rígida para elevar a nação à condição de “servidora e defensora da pátria”, funcionando como selecionadora de “elites condutoras”, capazes de distribuir melhor os homens e as mulheres nas atividades sociais e profissionais. Portanto, o papel da educação física era o de “colaboração no processo de seleção natural”, eliminando os fracos e premiando os fortes, no sentido da “depuração da raça.” (GHIRALDELLI Jr.,1994, p.18). A idéia central dessa concepção, segundo o autor, era o “aperfeiçoamento da raça”, seguindo assim as determinações impostas pelas falsas conclusões encetadas pela biologia nazifacista. Daí a educação física funcionar como atividade “aceleradora do processo de seleção natural.” (GHIRALDELLI Jr.,1994, p. 26).

No Estado de Pernambuco, a partir de 1930, atrelado à educação física e, consequentemente, à preocupação com a saúde dos escolares, o fator racial apareceu como um problema para o futuro da pátria. É o que pode ser observado, por exemplo, no relatório apresentado ao Interventor Federal pelo responsável pela Diretoria de Higiene, Waldemir Miranda, em 20 de dezembro daquele ano. O relator inicia seu texto elogiando o governador, em exercício na época, pelo seu gesto patriótico de interesse pela saúde dos escolares num país em que a criança até pouco tempo vivia em completo abandono. Indaga: “Que seria da pátria de amanhã sem o preparo da raça pela assistência à infância?” Responde em seguida:

Nossa incúria nesse particular imporia no enfraquecimento das forças vitaes da nação pela decadência physica da raça cujo sangue já vem sendo intoxicado há longos annos pela Constancia de malles sociaes que nos afflingem sem despertar reação prophylactica por parte dos governos passados. Raça nova, amparada pela prodigalidade da natureza, começava a decahir sob o peso de uma hereditariedade pathologica que somente a hygiene seria capaz de corrigir. De facto, já se disse que a hygiene era a rainda da nossa epocha. Rainha ou Fada deve ser conhecida de todos para melhor influir na formação pshycho-somatica das novas gerações. (MIRANDA, 1930, p.1 - 3, Itálicos adicionados).

Analisando o trecho acima percebemos que Waldemir Miranda se referia à mistura racial como um fator de enfraquecimento da raça e à decadência física por

199 causa do sangue negro que intoxicou a nação. Esse eugenista queria desintoxicar o sangue do brasileiro e revigorar a raça como tantos o queriam naquele momento histórico. Para que isso acontecesse, segundo ele, deveríamos cercar a saúde da criança, especialmente dos escolares, permanecendo os órgãos estatais em vigilância. Deveriam, ainda, manterem-se em constante observação, porque a evolução e as modificações que sofrem os organismos infantis são constantes, o que os torna mais aptos a contraírem as doenças epidêmicas.

Por tudo isso e por outras razões de sobejo conhecidas impõe-se a necessidade da inspeção medica das escolas não é uma inovação para fornecer empregos agradáveis a novos doutores. Pelo contrario, cabe ao serviço medico-escolar resolver dos destinos da raça, velando a cultura das novas gerações sob o tríplice aspecto do desenvolvimento physico, espiritual e moral. (MIRANDA, 1930 p. 4, Itálicos adicionados).

Como vimos no primeiro capítulo deste estudo, esse tipo de pensamento acreditava que era preciso regenerar a raça brasileira, pautando-se em teorias raciais que pregavam a inferiorização do negro e, consequentemente, a superioridade biológica dos brancos. A partir da década de 1930 os adeptos das teorias raciais dividiram espaço com o pensamento de Gilberto Freyre, que mudou o foco da questão racial para uma discussão no âmbito cultural. Porém, mesmo tirando o foco da questão racial, passando do viés biológico para o cultural, o mito da democracia racial deu prosseguimento à perspectiva do branqueamento da população, só que agora mascaradamente. Vale ressaltar que, no caso de Pernambuco, a maioria dos discursos por nós analisados se referem à mistura das raças como um problema ao desenvolvimento da nação brasileira e não como um patrimônio inestimável. (FREYRE apud, SKIDMORE, 2012, p. 267).

Voltando aos dados da Diretoria de Higiene, ressaltamos que o serviço médico-escolar na administração de Waldemir Miranda era dividido em duas secções: uma de tratamento - a clínica escolar - e outra de higiene propriamente dita, contando com oito inspetores, auxiliados por igual número de visitadoras. Para precisar os limites de tão importante serviço público o relator resume a inspeção médica dos escolares em: Inspeção dos prédios, do mobiliário e dos materiais escolares; Observação do desenvolvimento e da cultura física da criança, baseada no exame individual e obrigatório do escolar e na organização de uma ficha

200 sanitária; Profilaxia das doenças contagiosas na escola; Educação sanitária dos professores e alunos; Tratamento dos escolares enfermos, Assistência aos débeis e anormais. (MIRANDA, 1930, p. 4 - 5).

Ainda na década de 1930 é possível perceber também algumas medidas do governo para orientar a educação física para que ela se enquadrasse nos “moldes rigorosamente scientificos”. Nesse sentido, consta no Boletim da Diretoria Técnica de Educação do ano de 1931, por exemplo, que a educação física já não era uma abstração. “Estadeia-se victoriosa, sob bases scientificas, ministradas em grupos escolares e escolas reunidas e profissionaes.” (PERNAMBUCO, 1931, p. 9). O documento dizia ainda que no ano porvindouro, ou seja, a partir de 1932, entraria em plena execução na Escola Normal, que ainda mantinha um sistema vantajosamente suprível pelo método francês, oficializado e melhorado no Brasil. A justificativa para essa preocupação era explicada da seguinte forma:

(....) Mas do que em qualquer outro povo, talvez, é inadiavel cogitar seriamente entre nós da base physica da raça. Si na grande Republica do Norte, a saude, a capacidade physica da nação, consideram-se a base de todo o progresso social, muito maior attenção reclama a educação physica no Brasil, onde causas anti- hygienicas accumuladas crearam uma raça enfermiça, que é mister a todo custo resgatar. (PERNAMBUCO, 1931, p. 9). (Itálicos adicionados).

Nesse contexto acreditava-se que as medidas adotadas pelo Departamento de Educação do Estado “colocaram a educação physica em Pernambuco em moldes superiores aos de qualquer outra organização congenere no paiz.” (PERNAMBUCO, 1931, p. 9). Para isso um corpo de médicos inspetores de educação física superintendeu todo o serviço. Monitoras de educação física especializadas dirigiam os exercícios e foram distribuídas uma professora e uma auxiliar para cada grupo escolar, sob a orientação superior do Instrutor Geral de Educação Física.

O preparo dessas professoras especializadas acontecia em um curso regular que formava-as com aulas teóricas e práticas de exercícios físicos, regidas pelo Instrutor Geral. As candidatas recebiam princípios de anatomia e fisiologia aplicadas à educação física, fisiologia da fadiga, higiene do esforço, biometria pedagógica, lecionados por médicos inspetores do serviço. As crianças eram reunidas para os exercícios, não em classes escolares, mas em turmas homogêneas, segundo a

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