• Nenhum resultado encontrado

2. CARTAS, MODERNISMO E UTOPIA

2.2. Os sintomas da correspondência no Modernismo

É interessante pensar o significado e o alcance da correspondência literária no Brasil entre as décadas de 1920 e 1930. O diálogo epistolar estabelecido pelos intelectuais brasileiros tem sido resgatado através de sucessivas publicações de volumes de correspondências e de trabalhos teóricos que buscam sobrepesar as informações e confissões registradas. As cartas assumem a função de emissárias do projeto modernista em um cenário de inúmeras articulações até então inédito em nossa história literária. Dotadas de um perfil dinâmico e combativo, permitem acompanhar o desenvolvimento dos projetos, publicações, discussões sobre a nova arte e a busca de colaboradores para a legitimação das ideias. Embora, na carta, a confluência entre as marcas históricas e individuais seja inextricável, procedemos a uma divisão entre estas dimensões para que se percebam melhor como certos assuntos ganham projeção na correspondência de A. de A. M. e, assim, ressaltar a

singularidade de suas análises e os sintomas perceptíveis em seus textos epistolares.

Partimos da avaliação de Mário de Andrade, contumaz epistológrafo modernista, acerca do papel desempenhado pelas cartas durante o Modernismo. Através da leitura da crônica “Modernismo” 25

(07/01/1940) do livro O empalhador de

passarinho, buscam-se os tópicos para a constituição de uma possível matriz

epistolar para a época, quais são os assuntos recorrentes e a problematização do papel da correspondência. A crônica analisa a crítica realizada pelo livro Estética do

Modernismo, de Ascendino Leite, que repete as apreciações negativas sobre o

movimento e lança a dúvida se haveria realmente um legado estético e ideológico para a literatura brasileira. Na avaliação sobre o livro, o escritor paulistano menciona as cartas como prova do processo de criação dos participantes do movimento e que esclarecerão à posteridade o verdadeiro propósito do Modernismo:

Creio ser prematuro decidir desde já o que vai ficar dos oito anos de vida ativa do Modernismo, mas se permanecerem dessa fase que foi eminentemente de ordem crítica, que foi de pesquisa e experiência, que foi um movimento preparatório, destruidor de tabus, treinador do gosto público, arador dos terrenos, se restarem na permanência da literatura nacional três nomes que sejam, o Modernismo já terá feito mais do que lhe competia. Porque, conscientemente ou não (em muitos conscientemente, como ficará

irrespondivelmente provado quando se divulgarem as correspondências de algumas figuras principais do movimento), o Modernismo foi um trabalho

pragmatista, preparador e provocador de um espírito inexistente então, de caráter revolucionário e literário. (ANDRADE, 1972, p. 188, grifo nosso).

Do fragmento, depreendem-se questões de ordem mais geral a respeito da correspondência e algumas mais específicas condizentes com a relação entre a carta e o ambiente cultural brasileiro da década de 1920. Primeiro, o texto marioandradino confirma o horizonte mais vasto a que se destinam as cartas dos intelectuais, com a visada atenta para a posteridade, reforçando o equívoco proposto por Kaufmann sobre a correspondência de escritores: a função comunicativa não é o único motor desses textos. Depois, situa a partilha epistolar no período de auge do Modernismo e as cartas surgem na condição de testemunho do processo de criação e articulação do movimento. Segundo o escritor, elas trazem em seu bojo a divulgação da proposta de ruptura com uma literatura ultrapassada,

25

sendo ao mesmo tempo, expediente e resultado do posicionamento crítico de seus participantes.

Mário de Andrade tem uma apreciação certeira sobre o protagonismo que as cartas assumiriam décadas mais tarde na reconstituição histórica da literatura vanguardista. No entanto, para a devida compreensão do valor assumido pela correspondência, necessita-se mencionar as bases deslizantes que alicerçam a crônica e que culminarão, em 1942, no angustiado retrospecto sobre os vinte anos do Modernismo. O escritor ora dá relevo ao chamado caráter “preparador e provocador” das obras e manifestos, ora assevera a existência de “uma arte dirigida em sentido social, propagadora de ideias” (ANDRADE, 1972, p. 188). É importante que se façam algumas considerações sobre o que o escritor aponta como o verdadeiro legado modernista e a utilização das cartas para comprová-lo.

Há uma tentativa de equilibrar os pratos da balança que pesavam, negativamente, para a imitação fulgurante dos -ismos segundo os opositores do movimento, uma moda de formas esdrúxulas, pouco artísticas, e de parco conteúdo social, acusações que ecoam no texto de Ascendino Leite. A percepção dos contemporâneos — público, jornalistas e escritores de outros direcionamentos estéticos — ajudou a sustentar esta avaliação, dominados que estavam pelo espanto perceptível na dificuldade em nomear aquelas novas manifestações artísticas (BOAVENTURA, 2008). Muito já foi escrito sobre o Modernismo como um movimento experimental proveniente de uma elite, cuja recepção das obras era muito limitada (IGLÉSIAS, 2007), característica a qual não escapa a seus integrantes, às vezes, em revisões e retratações sobre a época.

Assim, de forma ambivalente, a crônica move-se num pêndulo entre a inovação estética e o conteúdo social. Ressalta-se “o espírito insatisfeito com a pasmaceira democrática” (ANDRADE, 1972, p. 188) e o envolvimento com partidos políticos como provas da ação engajada dos artistas, enfatiza-se a sistematização do “estudo científico do povo nacional” (idem, p. 189) pelos modernistas, além de ironizar a afirmação de que o legado é pequeno e que o combate de atualização não tenha sido tão árduo. Porém, pesa mais o cunho preparatório de uma revolução cujo débito seria o possível comprometimento da qualidade das obras, afinal a principal missão foi a de “arar” os latifúndios estéreis do cenário cultural brasileiro, atualizar a literatura nacional.

Ainda que Mário ironize esse comprometimento e compare a quantidade destacada das obras modernistas como superior às produções que sobreviveram de períodos mais longos da literatura brasileira (como o período colonial ou o Romantismo na sua proposta de fundar uma literatura pátria), sua análise encampa a ideia de evolução do Modernismo. É significativo que o escritor encerre sua análise afirmando a condição de “aurora” para o movimento:

O Modernismo foi um toque de alarme. Todos acordaram e viram perfeitamente a aurora no ar. A aurora continha em si todas as promessas do dia, só que ainda não era o dia. Mas é uma satisfação ver que o dia está cumprindo com grandeza e maior fecundidade, as promessas da aurora. Ficar nas eternas aurorices da infância, não é saúde, é doença. E a literatura brasileira aí está, bastante sã. Adulta já? Quase adulta... (ANDRADE, 1972, p.189).

É curioso notar que, apesar dos caminhos distintos, a crítica dos decênios de 1930-1940 e a formulação de Mário de Andrade são convergentes na consolidação da imagem evolutiva das produções modernistas. Ainda que o poeta de Pauliceia

Desvairada intente apontar a consciência crítica como o motor e legado do

Modernismo, a ser comprovada através da futura publicação das cartas, registro de uma comoção criativa e criadora, ambos contribuem para que se fixe a ideia de um desenvolvimento literário progressivo, cujas etapas entraram para a nossa historiografia literária como “fase heroica” e “segunda fase modernista”. A primeira tomada pelo turbilhão de ideias e formas iconoclastas, a segunda comedida, madura, sem arroubos formais e de conteúdo social mais empenhado na discussão do país:

A tensão que se estabelece entre o projeto estético da vanguarda (a ruptura da linguagem através do desnudamento dos procedimentos, a criação de novos códigos, a atitude de abertura e de auto-reflexão contidas no interior da própria obra) e o projeto ideológico (imposto pela luta política) vai ser o ponto em torno do qual se desenvolverá a nossa literatura por essa época. Desse conflito é que nascerá uma opinião bastante comum nos anos trinta: a suspeita de que o Modernismo trazia consigo uma carga muito grande de cacoetes, de “atitudes” literárias que era preciso alijar para se obter a obra equilibrada e bem realizada. (LAFETÁ, 1974, p. 23).

Lafetá indica um processo de diluição em que “a consciência estética, pressionada com violência pela problemática política e social, cede lugar à consciência ideológica.” (LAFETÁ, 1974, p. 24-25). Daí a periodização entre “fase heroica” e “segunda fase” como a superação da iconoclastia estética em prol de um

conteúdo social significativo. Há um processo seletivo que privilegia a interpretação da identidade nacional devido à pressão exercida pelas crises em vários níveis — político (a Revolução de 1930), financeiro (a quebra da Bolsa de Valores de Nova York) e ideológico (a divisão entre direita e esquerda) —, acarretando, consequentemente, o arrefecimento do debate da questão formal.

A apreciação de que o Modernismo, em sua “fase heroica”, tem apenas caráter “preparador e provocador”, sendo mais bem-sucedido no que se concerne à inovação estética — um “violento ampliador de técnicas e criador de técnicas novas” (ANDRADE, 1972, p. 188) —, e ao combate no campo cultural às formas esclerosadas, é uma construção que os manifestos e as cartas revelam muito mais complexa e que o próprio cronista deixa entrever. O esforço em eliminar a preponderância de uma vertente sobre a outra, foi objeto de estudo de João Luiz Lafetá, que busca matizar o antagonismo entre o que denominou como a bipartição entre o projeto estético e o projeto ideológico no Brasil:

Essa distinção, que pretendemos usar no exame de um aspecto do Modernismo brasileiro, é útil porque operatória; não podemos entretanto correr o risco de torná-la mecânica e fácil: na verdade o projeto estético, que é a crítica da velha linguagem pela confrontação com uma nova linguagem, já contém em si o seu projeto ideológico. O ataque às maneiras de dizer se identificam ao ataque às maneiras de ver (ser, conhecer) de uma época; se é na (e pela) linguagem que os homens externam sua visão-de-mundo (justificando, explicitando, desvelando, simbolizando ou encobrindo suas relações reais com a natureza e a sociedade) investir contra o falar de um tempo será investir contra o ser desse tempo. (LAFETÁ, 1974, p. 11-12, grifos do autor).

A dicotomia desenvolvida é de ampla propagação e percebe-se, no panorama dos demais países latino-americanos, análise similar. O ano de 1927 aparece como marco da mudança de rumo nas expressões vanguardistas, onde o “aislamento social y la frivolidad de la primera hora cede terreno a uma mayor proyección sociocultural.”26

(VERANI, 1995, p. 83). Alguns escritores rechaçam a própria participação no período, usando a mesma acusação que pesaria sobre a primeira produção modernista brasileira: as propostas de vanguarda estavam distantes do cotidiano popular e haviam se perdido em malabarismos engenhosos de linguagem. Ou, ainda, o caráter gregário do movimento impedia o pleno desenvolvimento da renovação e liberdade artísticas propostas pela vanguarda. Os pares antitéticos

como vanguarda artística ou vanguarda política passaram a representar o conflito entre a opção autorreferencial e a opção social, sendo que em um momento de radicalização ideológica como a década de 1930, a primeira escolha denotava individualismo e alienação, enquanto que a segunda escolha era a expressão de um caminho intelectual coletivo e engajado, por isso, valoroso (JITRIK, 1995).

Por outro lado, aludimos às tentativas em demarcar o fato de que a opção da vanguarda artística/projeto estético não significa a ausência de conteúdo ou alienação das questões sociais, uma vez que a própria enunciação é uma forma agir no mundo. Segundo Noé Jitrik, a divisão entre o estético e o social implica num julgamento ético e o esforço de endossar a importância da dimensão artística carrega, implicitamente, a dicotomia tradicional que separa “el arte en sí” e “el arte para algo” (JITRIK, 1995, p. 69). Por conseguinte, aceitar a validade de que nenhum ato humano está desprovido de sentido político tem por corolário a concepção de que existem múltiplas formas de se produzir significação, tornando inoperante a oposição formulada que cinde o movimento. No caso da arte de vanguarda na América Latina, não se trata apenas de “transplante” dos novos conceitos artísticos no afã de acompanhar a arte europeia, sendo “corrigido” em um segundo momento por um conteúdo mais adequado à realidade local, como resume Alfredo Bosi:

não parece lícito separar, por espírito de geometria, a assimilação do princípio de liberdade formal e auto-sondagem antropológica, pois ambas as tendências coexistem e se enlaçaram nos projetos mais criativos que se seguiram aos manifestos das vanguardas. (BOSI in SCHWARTZ, 2008, p. 39).

Acrescente-se, ainda, o traço distintivo do Modernismo brasileiro em comparação aos demais movimentos de vanguarda na América Latina. Segundo Jorge Schwartz, “o caráter rememorativo, celebrativo e entronizador” (2008, p. 24) do nosso movimento acentua ainda mais a capacidade de coexistirem “alianças inalienáveis”. É certo que manifestações elaboradas com a estética vanguardista já ocorriam no Brasil antes da Semana de Arte Moderna de 1922, mas a escolha do marco histórico para a divulgação e celebração da proposta renovadora demonstra a aliança indissociável entre o estético e o político. O centenário da Independência recrudesce questões sobre a identidade nacional e a atualização conceitual abriu espaço para que conteúdos recalcados alcançassem legitimidade, conforme aponta Antonio Candido (1976, p. 121).

Apreciação semelhante é feita por Afonso Ávila quando delineia os três grandes ciclos da literatura brasileira — Barroco, Romantismo e Modernismo — como os responsáveis por “saltos da consciência criadora nacional” (ÁVILA, 2007, p. 30). Rechaçando a ideia de que o Modernismo foi um “fato literário autônomo” (idem, p. 29) sem nenhuma correlação com as demais fases da literatura brasileira, Ávila também defende a indissociabilidade entre a revolução formal e expressão de um conteúdo cultural brasileiro da obra modernista:

Nesse quadro, o movimento desencadeado em 1922 passa a inserir-se não apenas pelo caráter de originalidade de que se revestiu a sua proposta estética, mas igualmente pela maneira através da qual repropôs certos elementos de núcleo de nosso processo literário e assimilou elementos tomados às correntes estéticas do pensamento criador da época, ou seja, às vanguardas europeias. O Modernismo, a exemplo do que se dera a seu tempo com o Barroco e o Romantismo, responderia a duas sortes principais de proposições: a de uma linguagem em curso criativo e de uma realidade contextual inseparável de nossa peculiar experiência de expressão. (idem, p. 30, grifos do autor).

Se, conforme visto, a divisão entre estética e ideologia é operativa, a ênfase em um dado aspecto desnuda a estratégia de estabelecimento no cenário cultural. No que tange à oficialização do Modernismo e, principalmente, o acesso às instituições governamentais, pode-se apontar um caminho problemático relacionado com a atitude diante da tradição e as posteriores cisões em suas fileiras. Logo, a divisão entre projeto estético e projeto ideológico, ou vanguarda artística e vanguarda política, é uma construção que, se reproduz o juízo crítico dos decênios de 1920-1930 e permite compreender as discussões nos diferentes textos, não absorve e dirime a mistura entre expressão, conteúdo e ação política envolvida nesta dinâmica do movimento. Postulamos que o papel desempenhado pela correspondência ultrapassa o testemunho do caráter “preparador” do movimento destacado por Mário de Andrade, ainda que esta função seja pertinente.

Para além do registro da consciência da criação artística modernista, as cartas possibilitam adentrar em um campo altamente controvertido, qual seja o da imbricação entre arte e política. A fim de avançar na discussão, partimos dos estudos de Sérgio Miceli sobre os intelectuais e o poder no Brasil, das primeiras décadas do século XX, ponta de lança sobre esta aliança polêmica. Não temos o objetivo de retomar toda a pesquisa realizada pelo sociólogo, mas consideramos dois pontos cruciais ao nosso estudo: o processo de legitimação do Modernismo e a

utilização dos textos autobiográficos como fonte de análise. O sociólogo perscruta o fundo político presente no Modernismo, mesmo na sua “fase heroica”:

Embora tenha surgido em reação aos epígonos do parnasianismo e, em medida menor, ao simbolismo, que na verdade jamais conseguiu firmar-se no campo literário, o alcance político do movimento modernista não se esgota de modo algum pela análise dos padrões formais de “criação” que introduziu e impôs como dominantes. (MICELI, 2001, p. 64).

Refutando a análise de um adensamento ideológico progressivo das obras, bem como a preponderância do estético na primeira fase modernista, Miceli revolve o fato de que a inovação estava respaldada por um mecenato tradicional e aponta como contraditória a associação entre o grupo de artistas e a classe oligárquica de São Paulo. A crescente prosperidade econômica paulistana, cujos rendimentos da produção cafeeira financiaram o processo de industrialização, alicerçava a hegemonia política do Estado. A batalha travada no cenário cultural era pela conquista de uma posição que fosse correspondente ao tamanho do poder político e econômico de um dos pares da República do café-com-leite:

Nas condições da época, os elementos que viriam integrar o “estado-maior” intelectual em São Paulo não puderam se furtar às demandas de um mecenato privado propenso a subsidiar a produção de obras de vanguarda, cujo êxito não dependeu do valor comercial que porventura tivessem. Em consequência, não foi por acaso que os movimentos de renovação surgidos na literatura, nas artes plásticas, na arquitetura, coincidiram com a formulação de um projeto reformista oligárquico. (MICELI, 2001, p. 239).

Naquele momento, o Rio de Janeiro, capital federal, possuía uma pulsante vida literária, com expansão e autonomia da atividade intelectual e de intenso debate sobre a problemática modernização do país e os entraves à plena consecução desse projeto (SEVCENKO, 1985). Prenunciando o aspecto “celebrador” e “entronizador” que Schwartz detecta no movimento, Miceli polemiza a capacidade crítica elogiada por Mário de Andrade. O debate encerra muito mais do que a atualização literária, trata-se da criação de uma supremacia paulistana. São Paulo estava buscando o papel de polo intelectual. A classificação de Pré-Modernismo para as inúmeras tendências literárias indica a vitória do legado de leitura do movimento, o qual se erige como centro de avaliação e legitimação da literatura brasileira:

O termo pré-modernismo constitui um recurso político dos modernistas com o qual dataram os detentores da autoridade intelectual na década de 1920:

seriam os epígonos das escolas dominantes do final do século XIX, os deserdados das grandes causas políticas [...] os importadores otimistas das escolas europeias periféricas ao simbolismo, os descristianizados. Também conseguiu se eufemizar o fato de que a maioria dos autores da primeira geração modernista havia estreado em plena República Velha, alguns bem antes de 1922 [...] tiveram condições para reconverter sua trajetória intelectual na direção do modernismo (MICELI, 2001, p. 16, grifo do autor).

Os “polígrafos anatolianos”, como Miceli denomina os escritores da Belle

Époque carioca, enfrentariam a acusação de um beletrismo artificial e decadente

que jogou em uma vala comum as boas e más produções do período. A autopromoção modernista foi tão forte que a origem “antiquada” dos seus integrantes é atenuada ou “eufemizada”. A busca do efeito de tabula rasa somente via radicalismo estético não é encampada por Miceli. A crítica que acompanhava a renovação artística desvela as controvérsias e as estratégias de oficialização do movimento. Ainda sobre o sucesso alcançado pela associação vanguarda e oligarquia, Miceli indica que a sobrevivência das

iniciativas de “construção institucional” dos grupos dirigentes tornaram o campo regional de produção cultural num dos eixos dominantes na vida intelectual do país, tendo-se firmado uma rede de instâncias de produção, difusão e consagração, cujos padrões de legitimidade duram até hoje. (idem, p. 238).

O sociólogo se detém na guinada feita pelas vanguardas rumo a um conteúdo social mais empenhado que ficou classificada na historiografia literária como a “segunda fase modernista”, o período das obras maduras e de conteúdo social mais proeminente. Miceli a relaciona com a crise que, sub-repticiamente, anunciava-se nos estertores do sistema oligárquico que, embora estivesse sob os auspícios de um crescimento econômico substancial, já enfrentava movimentos de contestação do

status quo. A crise da produção cafeeira e a Revolução de 1930 destruíram a

“esperança de reformar o sistema oligárquico sem alterar as condições de representação política do operariado e dos setores médios urbanos que poderiam lhes servir de sustentação.” (idem, p. 239). Esse empenho reformista foi impulsionado pelos dissidentes da oligarquia que apoiaram o novo governo central, sendo depois rechaçados do mando político. O afastamento dessa elite do poder estadual é o fermento da Revolução Constitucionalista de 1932 que, para Miceli, não percebe a manifestação das novas

demandas sociais que haviam sido represadas por falta de canais de expressão e participação, os dirigentes da oligarquia paulista atribuem as derrotas sofridas em 1930 e 1932 à carência de quadros especializados para o trabalho político e cultural, e escorados nesse diagnóstico, passam a condicionar suas pretensões de mando no plano federal à criação de inesperados instrumentos de luta: a Escola de Sociologia e Política, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, no contexto da nova Universidade

Documentos relacionados