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CAPÍTULO 4. ANÁLISE DE DADOS E DISCUSSÃO DE RESULTADOS

4.2. Os sujeitos e o processo judicial: de números processuais à dualidade entre

DE NÚMEROS PROCESSUAIS À DUALIDADE ENTRE SER SUJEITO OU OBJETO DE DIREITOS

“Criança indefesa Eles te pegam pelas mãos para satisfazerem às suas próprias vontades. Você será a mesma? Um sorriso impudente Para roubar de você a inocência que sangra. Eles sentirão sua dor?” James LaBrie (1997, p.10).18

Como se trata de um processo judicial de caráter cível, houve maior menção à Bianca nos procedimentos adotados e ações realizadas pelos operadores do direito. A primeira referência a ela e as implicações geradas pelo abuso e processo judicial são feitas pela DPCA, em ofício encaminhado à Vara da Infância. Destacam-se, como já mencionado anteriormente, frases como “Que [Caetano] não empregava [no abuso] violência ou grave ameaça”, “que [Caetano] lhe dava [a Bianca] mais liberdade e presentes”, “Que [Bianca] não contava [sobre os abusos] porque tinha medo da mãe se separar [de Caetano]” e “Que os abusos ocorriam quando os pais brigavam”.

Em um primeiro momento, a citação “Que [Caetano] não empregava [no abuso] violência ou grave ameaça” revela o interesse inicial do processo formal em legitimar possíveis violências explícitas, como a física, por exemplo. Conforme já foram discutidas neste trabalho as inferências do tomador de depoimento e a possível desqualificação do abuso enquanto violação de direitos, percebe-se que o termo violência pode ter sido utilizado de forma divergente para com o que sentia Bianca durante a revelação do abuso. No entanto, o termo violência é comumente empregado com denotação pejorativa e com forte carga negativa, o que pode dar a entender a aversão de Bianca em falar do abuso como uma violência.

No momento de inquirição de Bianca, especialmente quando interrogada pelo delegado da DPCA, ela consegue descrever o abuso e a dinâmica familiar com grau relativamente alto de detalhes, contanto com minúcias as práticas que ocorriam ou não ocorriam, como sexo anal, oral, felação, etc. Entretanto, esse detalhamento, em se

18 Trecho da canção Anna Lee, do grupo musical Dream Theater, que conta a história de uma menina

66 tratando do primeiro momento formal de coleta de informações, aponta para a questão sobre a forma que as informações são retiradas das vítimas. Não há como verificar com acuidade se a adolescente realmente descrevia as práticas sexuais e, mais importante, nos remete a pensar se é de fato pertinente adentrar o foro íntimo de uma adolescente de forma tão diretiva. Uma vez havendo a denúncia, comprovação da mãe e da própria vítima e confissão do agressor, a DPCA realmente poderia adentrar tantos assuntos sem saber como tratar de todos eles, ou dar atenção profissional a possíveis feridas que seriam abertas ao serem diretamente provocadas? Antes de “abrir” um assunto, a ação terapêutica deve considerar se conseguirá “fechar” as questões que possivelmente aparecerão, e não foi esse o caso do depoimento de Bianca no ambiente policial (Dobke, 2001; Penso & Cols, 2008).

Nesse contexto, no qual pode haver apenas um momento para se ouvir os sujeitos, o entrevistador/inquiridor tem que aproveitar ao máximo a ida deles ao local de entrevista (Costa, Guimarães, Pessina & Sudbrack, 2007). No entanto, é insuficiente uma intervenção que busque apenas o rigor pericial ao lidar com a fala dos sujeitos, o que demonstra a não preocupação em cuidar da vítima e sua saúde mental, evitando possíveis revitimizações, mas sim em colher provas contra o agressor. Dessa forma, a vítima é vista apenas como objeto de prova de algum crime e, possivelmente, peça processual de condenação de alguém (Santos & Gonçalves, 2008).

Embora para o sistema judicial brasileiro crianças e vítimas não são consideradas testemunhas, ainda sim seus depoimentos são considerados nos processos judiciais (Santos & Gonçalves, 2008). Entretanto, o inquiridor inicial, como foi o caso do profissional da DPCA, não pode simplesmente optar por não ouvir a criança ou adolescente, pois para além de não haver certeza se a família comparecerá para novos depoimentos, conforme anteriormente mencionado, essa atitude pode agir como parte da síndrome do segredo em torno do abuso sexual, no qual a família por muito tempo compactuou em resguardar o não-dito. Assim, novamente, é negada à criança a oportunidade de quebrar o silêncio e, consequentemente, romper com as violências sofridas. Essa suposta atitude de proteção (ao não inquirir), age aparentemente como postura dos outros membros da família ao não publicizarem o abuso ou simplesmente não tocar no assunto (Dobke, 2001).

No entanto, a primeira formalização da fala em âmbito da justiça nem sempre é dada a um profissional capacitado para agir dentro da perspectiva acima. Este trabalho

67 não visa desqualificar a atuação dos profissionais da DPCA, que são importantes agentes sociais no combate às diversas formas de violência. No entanto, observou-se que a inquirição inicial privilegiou questões aquém das necessidades imediatas da vítima e da família, demonstrando uma vocação positivista e redutora da realidade e do sofrimento de pessoas em situação de violência sexual (Costa, Penso, Almeida & Ribeiro, 2008).

Em casos de abuso sexual, o comparecimento à justiça pode evocar sentimentos de medo, insegurança e repulsa, especialmente quando alguma ação judicial já foi adotada, como é o caso do afastamento do agressor do lar (Goodman, Ogle, Troxel Lawler & Cordon, 2008). Nesse sentido, Costa e Cols (2007) propõem uma metodologia para atenção à família cujo contexto psicossocial demonstra a pouca efetividade de trabalho a médio ou longo prazo, com três eixos principais de intervenção: colher informações psicossociais para uma compreensão mais ampla dos sujeitos; compreender a dinâmica familiar e possíveis elementos que sustentam ou não a crise e; estimular a família a construir novas formas de relacionamentos contrárias às que levaram à crise (Costa & Cols, 2007).

Entretanto, essas dimensões não têm espaço em uma inquirição policial, principalmente em relação ao modelo jurídico brasileiro (delegacias, tribunais, etc). É nesse sentido que a inquirição inicial deve privilegiar questões pontuais, essencialmente importantes ao processo, motivando a família e a vítima a continuarem disponíveis a buscar a ruptura completa com a situação de sofrimento vivida. Caso se obtenha sucesso nesse momento, profissionais qualificados poderão agir para garantir um cuidado ético às questões para além do formalismo da lei ou colheita de provas de delito (Brito, 2007).

Como adendo, pode-se inferir que em situações nas quais o agressor é alguém tão próximo a vitima, como é o caso de Bianca e Caetano, afastamento do ofensor é deveras importe e determinante para romper o abuso que pode vir se repetindo há bastante tempo. Nesse sentido, não está em discussão a necessidade dessa medida, pelo contrário, esta deve ser adotada sempre que existir os chamados fumus bonis júris e periculum in mora, mencionados anteriormente.

Mas, uma vez ocorrendo o afastamento do agressor da moradia comum, como restabelecer a proteção já violada pela ocorrência do abuso? É perigoso pensar que a proteção da vítima pode reduzir-se ao não contato com o ofensor, principalmente

68 quando este exerce outros papeis na vida dela, como discutido anteriormente (Viodres Inoue & Ristum, 2008).

Dessa forma, o processo judicial de afastamento de Caetano do lar ensejou dois pontos a serem conciliados: responsabilização do agressor e proteção da vítima, já entendendo que a ocorrência de um não garante a efetivação do outro. Vale salientar que o aparato legal de responsabilização tem como objetivo diminuir a dicotomia entre os aspectos público e privado do abuso sexual, mas essa consideração demanda a compreensão de que esse viés legal deixa brechas para que haja a preservação de discursos desqualificantes em relação às reivindicações legítimas das vítimas que, no caso de Bianca, ficam em dúvida quanto a manter a decisão de proteção já adotada pelo juiz, ou mais grave quando sequer chegam a fazer a denúncia devido à manipulação que impede a divulgação dos fatos ou punição e tratamento do agressor (Darlan, 2006).

Nesse sentido, tentativas de anular o ato do abuso perante os mecanismos legais de responsabilização são igualmente contraditórias a não-inclusão do agressor na perspectiva do enfrentamento da questão, pois o simples fato de não haver conclusão da ação criminal, não faz com que a questão seja compreendida de forma sistêmica e em acordo com a Doutrina da Proteção Integral, conforme explicitado pelo caso em estudo.

Por seu turno, o agendamento da temática do agressor na pauta de discussão sobre os direitos da infância e juventude ganha força, por mais que insipiente. No Brasil, essa perspectiva de inclusão de um ator que é socialmente condenado - o que nem sempre ocorre em termos de punibilidade legal – como sujeito importante tanto na perspectiva de acompanhamento psicológico da vítima (seja pela afirmação da necessidade de se manter afastado da vítima, seja por participar ativamente do processo de (re)adaptação ao convívio social que não permite a ocorrência de tais atos), quanto no que diz respeito a garantir o direito de plena defesa e de possível tratamento, caso considere-se esse ofensor como um doente mental ou portador de algum distúrbio da personalidade (Cohen, 2005).

Nesse sentido, a observância apenas do aspecto legal age como um processo que tende a camuflar a violência e se respalda em possíveis lacunas na lei para desviar o foco do processo de construção da violência sexual e legitimar, de certa forma, os atos do agressor, protegendo-os de possíveis sanções penais e, um agravante, desviar unicamente para a vertente legal do problema uma situação que demanda todo um estudo e envolvimento de diversos profissionais, que após ou durante o processo penal,

69 trabalhariam no intuito de ampliar e articular a rede de proteção de direitos, tanto das vítimas quanto dos agressores. No caso em questão, a observância apenas das medidas legais possibilita que a vítima entre em contato com o agressor pouco tempo depois de seu afastamento, pois no período de tramitação do processo foi cogitada a volta ao lar, ainda que condicionada ao tratamento, mas que efetivamente não acontecera.

Essa segunda discussão escamoteia a real intenção dos princípios da prioridade absoluta da infância e da Doutrina da Proteção Integral do Estatuto da Criança e do Adolescente. Concomitantemente aos atos abusivos em contexto intrafamiliar, os ofensores geralmente se valem de artifícios, amparados em discursos de negação e minimização de sua responsabilidade, que supostamente lhes tiraria sua responsabilidade pela violência (Furniss, 1993; Sanderson, 2005).

Essas argumentações agem em dois aspectos prejudiciais ao enfrentamento da violência sexual intrafamiliar. O primeiro diz respeito ao cerceamento dos direitos da vítima, a partir do momento que sua palavra é ignorada ou desqualificada pelo agressor, conforme se observou na fala de Caetano, o que causa a revitimização e, conseqüentemente, atua no sentido de reproduzir as práticas abusivas. Ainda nesse sentido, dificulta o aparato jurisprudencial de proteção por meio de mecanismos burocráticos faz com que a criança, ao ter que narrar repetidas vezes o ocorrido, muitas vezes para pessoas não qualificadas, faz com que o foco da intervenção se perca nessa teia de burocracias (Santos & Gonçalves, 2008).

O segundo refere-se à compreensão de que forma a responsabilização do agressor pode reparar o dano causado pelo abuso sexual. Os procedimentos legais, embora tenham em sua maioria o caráter punitivo, não são de fácil escolha entre punir ou tratar. Tilley (1989) expõe que mesmo no entendimento que ambas as ações devem ser consideradas, cabe o argumento de que nem sempre essa articulação é o melhor a ser feito uma vez que há várias formas de se intervir, assim como há inúmeras categorias de agressores, mas não há diretriz universal que abarque o trato de forma geral para todos os casos. No entanto, o mais importante aspecto da punição ao agressor fica a cargo de evidenciar a não aceitação da sociedade quanto à prática do abuso sexual (Tilley, 1989).

Fica, assim, evidente que o cunho punitivo do afastamento do agressor do lar é, de certa forma, relevante apenas se o acusado tem em seu discurso a aceitação e reconhecimento de que cometera algo repreensível, como é o caso de Caetano, que se mostrou aberto à possibilidade de tratamento, mesmo ciente que isso não teria ligação

70 com a parte criminal do seu indiciamento por abuso sexual. Entende-se que no processo pós-abuso sexual deve haver respeito integral ao ser humano, e que o agressor sofrerá punição por ter infringido uma norma ou lei da sociedade. Dessa forma, pode-se argumentar que o agressor “merece” uma punição proporcional ao seu ato, independentemente do seu reconhecimento quanto a isso (Tilley, 1989). Porém, novamente ao considerar o abuso sexual como sendo resultado de uma relação, mesmo que desigual, o ato de punir apenas seria totalmente reparador se isso implicasse num resultado totalmente satisfatório para a vítima, para o agressor e para a sociedade que repudia certas condutas.

Pode-se alegar que a punição vai disciplinar ou reparar o agressor e que trará proteção à vítima ao manter o acusado afastado do lar. No entanto, é importante mencionar que a medida protetiva prevista no Art. 130 do ECA visa não somente a proteção da vítima, mas manter em vista o percurso punitivo com o intuito de reparar o comportamento socialmente inaceitável. No entanto, satisfazer os preceitos legais do crime não é totalmente suficiente, especialmente em casos de abuso sexual, na qual as medidas aplicadas, sejam na perspectiva de proteção, sejam visando punir, terminam por penalizar a família.

Com efeito, punir o abuso sexual de crianças e adolescentes não deve impedir o acompanhamento – seja cível ou criminal - individual do agressor, pelo contrário, ambas as ações devem ser feitas de forma articulada. No entanto, esse tipo de ação se dá em poucos casos, nos quais uma vez iniciado o processo penal, é mais comum que haja o afastamento do lar ou o encarceramento preventivo (Oliveira & Sousa, 2007). De fato, pode-se argumentar que associar qualquer atenção profissional à punição já determinada (seja ela o afastamento ou detenção) pode infringir os direitos dos autores do crime, já que o caráter da ação legal deveria ter em foco a natureza do crime, não do agressor.

Destarte, obrigar o tratamento concomitante à punição ignoraria a integridade do agressor como agente social que, em última análise, já estaria pagando pelo crime que cometera. Alguns agressores sexuais, por exemplo, uma vez que aceitam o direito do Estado em puni-los por infringir uma lei, ainda sim podem não aceitar que exista algo moralmente errado no seu ato, o que torna menos possível uma abordagem terapêutica ou ação psicossocial diversa dos andamentos formais da legislação. Essa perspectiva reitera que o reconhecimento do agressor enquanto sujeito de direitos é fator fundamental para um trato humanizado da questão, considerando todas as

71 especificidades do abuso sexual (Jesus, 2007; Tilley, 1989), pois a aplicação de uma medida de proteção não garante automaticamente a garantia de direitos da infância.

Nesse sentido, a revelação do abuso sexual demanda, no caso em estudo, pontos de discussão distintos. O primeiro refere-se à idade que Bianca começou a sofrer abuso. Aos 11 anos de idade, uma criança tem menos capacidade de vincular a relação abusiva à violência propriamente dita (Sanderson, 2005). No entanto, com o passar do tempo, Bianca vivenciou momentos de ambivalências emocionais, que fazem parte do contexto afetivo de toda a família. Tal ambivalência pôde ser observada em diversos momentos em cartas que Bianca endereçava a Caetano quanto este cumpria a medida de afastamento: “Os meus olhos procuram os seus. Eu te amo e o meu coração dispara quando encontra o teu sorriso. Eu te amo e sinto ternura e carinho em seus braços”.

De fato, o intenso contato sexualizado entre Caetano e as filhas/enteada é terreno fértil para que a ocorrência do abuso seja vista por Bianca como algo contraditório. Dessa forma, o abuso ocorrido, por mais que gere aversão a ponto de ela externar o desejo de que este cesse, há o sentimento de culpa subjacente. Considerando que Bianca tinha quase 16 anos á época da revelação do abuso, essas ambivalências são ainda mais fortes. Conforme menciona Sanderson (2005):

“Quando a criança experimenta prazer sexual e orgasmo, o impacto disso é que ela se sente traída por seu corpo por ter ficado sexualmente excitada. O sentimento de culpa é reforçado se a criança tem um orgasmo, levando-a a concluir que possivelmente quis a atividade sexual. O fato se soma à confusão da criança e faz com que ela se sinta traída, não apenas pelo abusador, mas também pelo seu próprio corpo” (Sanderson, 2005, p. 174).

Nesse sentido, Bianca queria se desfazer do mal que o abuso causava a ela, não necessariamente ao homem a quem ela nutre tanto afeto e carinho. Assim, ao afirmar “que [Caetano] não empregava [no abuso] violência ou grave ameaça” é de certa forma, proteger o agressor e não querer que ele seja punido, embora tendo apresentado “sentimentos de tristeza e ansiedade associados ao relato de suas experiências de abuso sexual”.

Notadamente, a relação vertical de poder que o homem exerce sobre a criança é repleta de significações relativas ao funcionamento da família (Rangel, 2009). Nesse sentido, dada a ambivalência existente na relação entre Bianca e Caetano (ora paternal, ora conjugal), o poder simbólico do agressor é duplamente exercido de forma contraditória, pois o autoritarismo não tinha a mesma intensidade para com as outras

72 filhas e, por outro lado, tampouco era o mesmo da relação do agressor com sua esposa. Assim, vítima e agressor estabeleceram objetivos em comum para manutenção do segredo a fim de que as relações ambivalentes se colocassem em uma aparente normalidade, embora o movimento de mudança estivesse em constante presença (Costa, 2010).

Esse duplo vínculo entre agressor e vítima, alimentado durante quatro anos, tem um viés estático, no que tange a manutenção da relação abusiva, e um viés evolutivo, pois permite que surjam novas interações que entram em equilíbrio com as demais funções sociais de seus membros, fazendo com que as práticas violentas sejam entendidas como parte da vida cotidiana, ou seja, sua ocorrência não é entendida como algo estritamente antagônico às relações familiares, mas, sobretudo, são ações que podem ou não ocorrer cotidianamente (Calil, 1987).

Esse equilíbrio de forças nas relações familiares possibilita que, em havendo diminuição do nível de estresse e conflito da família em razão da relação abusiva entre uns de seus membros, algum outro sintoma aparece em outro membro da família, justamente pelo caráter cíclico das interações nos subsistemas familiares. Essas interações, especialmente no caso em análise, são caracterizadas como tendo alto grau de permeabilidade, que podem ser entendidas como as relações que envolvem níveis diferenciados de dependência entre os membros e a variabilidade e indiferenciação no exercício dos papeis familiares, além de baixa ou nenhuma autonomia de seus membros para lidar com questões específicas da sociabilidade familiar (Calil, 1987).

Quando houve normatização da relação abusiva como parte integrante da dinâmica familiar, conflitos existentes no casamento de Caetano e Renata eram colocados como um sintoma negativo da relação marital dos dois, porém não era discutido, o que levava a certa distância emocional entre o casal, concomitante à aproximação afetivo-sexual com Bianca. Dessa forma, a vítima participa de uma relação triangulada com o padrasto e a mãe, rompendo a fronteira geracional que impede a troca de papeis dentro da família, a saber, o de filha pelo de amante/esposa (Calil, 1987).

Essa perspectiva se reforça na medida em que Bianca menciona no processo que sofria violência também quando o padrasto se desentendia com sua mãe. Essa constatação remete a dois questionamentos iniciais que demonstram mais ambivalências para o padrasto: 1) com a relação conjugal de Caetano e Renata estando ruim, ele buscava alívio com outra mulher. Nesse caso, fica em primeiro plano a relação de

73 homem e mulher que era estabelecida com Bianca, que poderia, inclusive, compreender que ela estaria disputando espaço com a própria mãe; 2) o abuso poderia representar uma forma de vingança de Caetano à esposa, que seria atingida por meio do sofrimento de sua filha. Nesse caso, se evidencia a colocação de Bianca como objeto das ações do padrasto.

Entretanto, não se trata simplesmente de obter alívios sexuais, ou construir um relacionamento afetivo com outra mulher, como compreensão da triangulação amorosa entre Caetano, a esposa e a enteada (Calil, 1987). Bianca, ao assumir um sentimento de culpa para com a mãe e irmãs, demonstra uma maturidade não observada em Caetano, pois a literatura especializada sustenta que problemas conjugais são relativamente comuns e, em alguns casos, a imaturidade e dependência emocional da esposa são fatores ligados à busca de satisfação sexual com crianças. Essa perspectiva é evidenciada quando há um movimento de independência emocional por parte de Bianca, que ao adentrar a adolescência começou a vivenciar necessidades e vontades que não tinha quando era criança, já com a ocorrência dos abusos (Furniss, 1993).

O sentimento de Bianca em restaurar a união da família mesmo que ela se valha de sofrer as conseqüências da relação abusiva é reforçado pela forma que se deu a