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Os tempos mudados ou depois da República tudo nos causa terror

“Desde que entrou a República

Que o nosso país vai mal, Pois o lençol da miséria Cobriu o mundo em geral Deixando a mão entregue

A palmatória e ao punhal” [à palmatória]

Em um poema datado de 1912, Um Pau com Formigas, 30 Leandro alude com bastante indignação à mudança dos tempos e utiliza dois símbolos − a cartucheira e o rifle

− para representar a República. Do ponto de vista da análise tais símbolos podem ser pensados de imediato como contraposição à representação feminina, adotada como símbolo pela República, de que nos fala José Murilo de Carvalho :

“Chamam este seculo das luzes

Eu chamo o seculo das brigas A epocha das ambições O planeta das intrigas Muitos cachorros num osso Um pau com muitas formigas Então depois da republica Tudo nos causa terror Cacete não faz estudo Mas tem carta de doutor A cartuxeira é a lei O rifle governador”.

30 Folheto LC7020. Este exemplar do poema traz a data manuscrita, 8/1/1912, na primeira página, e a assinatura da filha de Leandro, Rachel Aleixo de Barros Lima.

Tais elementos reaparecerão com freqüência em outros poemas em contextos diversos, mas significando sempre os “tempos mudados” em que o medo substitui a lei e se torna vigente a destituição dos direitos dos cidadãos. Serão substituídos ora pelo punhal, ora pela palmatória, que continuam semanticamente presos à mesma idéia de violência e coerção, tanto pelo lado do poder oficial, quanto pelos que estabelecem uma “lei” específica para o sertão, usando instrumentos próprios. E, nesse caso, não podemos deixar de nos reportar à presença dos coronéis e do cangaço e aos membros das oligarquias locais e a seus prepostos, que são os elementos do sistema político republicano naquele momento. É, portanto, sintomático que os versos da segunda estrofe - “cacete não faz estudo/mas tem carta de doutor” - nos remetam ao posicionamento político do poeta frente às oligarquias, perpetuadas no situacionismo e no poder em todo o Nordeste através dos bacharéis em Direito, oriundos quase sempre das famílias dominantes.

Segundo Robert Levine, “Gilberto Freyre sugere que o grau em Direito correspondia, virtualmente, a um ‘título de nobreza’. Ou, mais exatamente, o título de bacharel era o selo de legitimação que a sociedade conferia, como sinal da sua maior estima, aos produtos de um sistema de educação superior ritualista, que tinha na Faculdade o seu pináculo” 31

Em outro poema de título curioso, Doutores de 60, 32 Leandro alude com ironia à profusão de bacharéis que compraram o diploma por sessenta mil réis e à modificação do

status individual por causa do título falsamente obtido. Mas, descoberto o engodo, o falso doutor acaba levando uma surra e preferia ter usado o dinheiro do diploma para jogar no bicho:33

31 . Levine, Robert M, Op. cit. , p. 107.

32 Folheto LC6070, contendo dois poemas: Conferencia de Chiquinha com Gregorio das batatas e Se algum

dia eu morrer. A publicação data de 1913-1914. Na capa vemos o desenho/clichê de um burro, que ocupa o grupo 3 no jogo do bicho. Ao lado, os números dos animais que formam as dezenas: 09 (cobra), 10 (coelho), 11 (cavalo) e 12 (elefante).

“ É com que mamãe se danna, E vovó falla que esquenta Dindinho fica apitando Vermelho como pimenta,

Com reza de nova-ceita 34 [nova-seita]

E bacharel de secenta [sessenta]

Porque a coisa pençada [pensada]

Paresse até um revez [parece] [revés]

Criaturas que só faltam Andarem de quatro pés, Um desses diz: sou doutor

Graças a secenta mil réis [sessenta] (...)

Por isso não sou dotor [doutor]

Sustento isso a capricho O dinheiro de um diploma, É melhor botar no lixo Talvez aproveitasse mais

Jogando tudo no bixo. ” [bicho]

A continuação do poema mostra a sátira do poeta em relação ao bacharelismo e ao “trampolim social”, que este representa. Sergio Miceli afirma que “não havendo, [nesse

período], posições intelectuais relativamente autonomizadas em relação ao poder político, o recrutamento, as trajetórias possíveis, os mecanismos de consagração, bem como as demais condições necessárias à produção intelectual sob suas diferentes modalidades, vão depender quase que inteiramente das instituições e dos grupos que exercem o trabalho de dominação”. 35

Convém lembrar que essa base sociopolítica bacharelesca da Primeira República será muito criticada pelos revolucionários de 30:

35 Miceli, Sergio. Poder, Sexo e Letras na República Velha (estudo clínico dos anatolianos). São Paulo: Editora Perspectiva, 1977. Págs. 14-15.

“Chamou Chico ponta-pè

Lhe disse pegue o dinheiro No porto tem um vapor Vá logo ao Rio de janeiro, Sem a carta de doutor

Não pise no meu terreiro Pág. 4

O Chico foi ao ministro E disse quero um diploma

Deu os secenta mil reis O ministro disse toma Quando saltou no Recife.

Disse um moleque olha goma! * Goma – Bras. Mentira, fanfarrice “O dotor Chico era medico,

Mas não tinha o que fazer Tinha a grande desvantagem Que não aprendeu a ler Somente em terra de cegos

Elle podia viver”. Pág. 8

Há convergência de opiniões entre diversos autores sobre a forte influência exercida pelo bacharelismo na estrutura de poder da Primeira República. Não seria exagerado dizer que o cultivo ou a presença desse habitus, usando-se a acepção de Pierre Bourdieu na obra Le marché des biens symboliques36, significava um instrumento à disposição da prática política oligárquica. O Recife, sede da administração e da Faculdade de Direito, figurava como destino certo para aqueles que procuravam a ascensão social através de dons e méritos individuais, de acordo com os critérios dessa cultura, que respaldava e legitimava o poder. O mandonismo e o empreguismo encontravam-se entrelaçados nessa época e a cultura do bacharelismo constituía uma saída para aqueles que se achavam numa sociedade em que a mobilidade eraescassa: de 1905 a 1910 o número de formados era quase o dobro em relação ao período de 1901-1904. 37

36 In L'Année sociologique. Paris: PUF, 1971.

37 A informação se encontra na Dissertação de Mestrado em História de Ratnabali Adhikari, intitulada A

campanha salvacionista em Pernambuco: as articulações políticas nos primórdios da Primeira República, defendida na Universidade Federal de Pernambuco, Recife,1988.

Já os dois últimos versos da segunda estrofe de Um Pau com Formigas, “a cartucheira é a lei/ o rifle, governador”, representam o mandonismo e, por isso, o uso da palavra lei em minúscula pode ser tomado como uma referência distante à Lei. Em vez do aparato jurídico - processo, juiz, advogados, etc.- , que indicaria a existência de um sistema democrático de cumprimento de regras e sanções para a sociedade, o que se tem é o prevalecimento do código do mais forte. Daí as referências específicas ao objeto onde se guarda o projétil (a cartucheira) e à arma de fogo (o rifle), que simbolizam quem manda verdadeiramente na República brasileira.