Ocorreu que Picasso fez uma coisa muito grave. Pegou uma camisa suja e fixou sobre uma tela com fio e agulha. E com ele tudo se transforma em guitarra, aquilo ficou sendo uma guitarra por exemplo. Ele fez uma colagem com pregos que saíam do quadro. Teve uma crise, há dois anos, uma verdadeira crise de colagem: ouvi-o então se queixar, porque todas as pessoas que vinham vê- lo e que o viam animar velhos de tule e de papelão, cordas e chapa de ferro ondulada, trapos juntados na lata de lixo, acreditavam fazer-lhe bem, trazendo retalhos de tecidos magníficos para deles fazer quadros. Ele não queria nada disso, queria verdadeiros resíduos da vida humana,
alguma coisa de podre, sujo e desprezado.
Aragon, Les Collages, Hermann (1965, p.67 apud SAMOYAULT, 2008, p.37)
Oswald Thomas está na trama de Som & Fúria como antagonista, um vilão caricaturado.
De acordo com Beth Brait, o antagonista é “ [...] o opositor, o protagonista às avessas”, enquanto
a caricatura é uma “personagem plana marcada por uma qualidade ou por uma ideia que, levada
ao extremo, funciona como uma distorção proposital a serviço da sátira, da crítica ou do
cômico” (BRAIT, 1985, p.88). Na teledramaturgia brasileira o herói e o vilão são quase sempre
bem delimitados em suas características psicológicas; em Som & Fúria, o personagem Oswald
oposição: a confirmação de que estamos diante de um vilão se mostra a partir do exagero de
seus trejeitos antagônicos. Mas a caricaturização ocorre não somente para afirmar sua oposição
a Dante. Vem, ao que parece, estabelecer uma sátira ao dramaturgo brasileiro Gerald
Thomas178, reconhecido não somente por seus espetáculos, mas por sua anglofilia, evidenciada
pela tradução de seu nome para o inglês e pelo uso espontâneo do idioma no Brasil.
O prenome Oswald estabelece a intertextualidade com o escritor e dramaturgo brasileiro
Oswald de Andrade (1890-1954), criador do M anifesto Antropófago (1928) e um dos líderes
do movimento modernista brasileiro, iniciado na década de 1920. O manifesto oswaldiano tem
por principal objetivo a apropriação radical - mas com alegria, como é anunciado no próprio
texto do manifesto179 - da(s) cultura(s) do(s) colonizador(es), assimilando suas características de modo não a reproduzi-las, mas recriá-las em proveito da própria cultura brasileira. Em um
de seus melhores momentos, Oswald de Andrade anuncia: “ Contra a M emória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.”
Em Liberating Calibans: Readings o f Antropofagia and Haroldo de Campos ’ poetics
o f transcreation, a professora Else Vieira explica como o M anifesto passou a ser utilizado nos
Estudos da Tradução. Vieira trata, ainda, dos processos sociais que estão por trás desse
‘casamento filosófico’ e como Haroldo de Campos, com suas traduções e reflexões sobre o
trabalho de tradução, consolidou uma nova filosofia nesse campo de estudo, permeada por
neologismos que a fortalecem em seu discurso. Vieira comenta: “ [...] o próprio projeto do grupo
Antropófago: não negar as influências ou inspirações estrangeiras, mas absorvê-las e
transformá-las através da adição de elementos autóctones.” 180 (VIEIRA apud BASSNETT et
TRIVEDI, 1999, p.98, tradução nossa). Percebemos, assim, um forte movimento de
desconstrução das ‘origens’ e de quaisquer ideias hierarquizantes, em benefício da vivência de
uma cultura plural, criativa, plena em seu hibridismo - o que dialoga, filosoficamente, com o
conceito de Genealogia de Foucault, que remete aos caminhos da impossibilidade de uma
178 De acordo com a informação encontrada na Wikipedia, “Geraldo Thomas Sievers (Rio de Janeiro, 1954) é um diretor de teatro brasileiro. Ao longo da sua vida, Gerald Thomas esteve sempre dividido entre o Brasil, a Inglaterra, a Alemanha e os Estados Unidos. [...] Encenador polêmico, criador de uma estética que elabora de forma particular os recursos teatrais. Gerald Thomas renova e questiona a cena brasileira nas décadas de 1980 e 1990. [...] Suas peças já foram apresentadas em vários países, em teatros como o Lincoln Center em Nova Iorque, o Teatro Estatal de Munique, o Wiener Festwochen de Viena e eventos como o Festival de Taormina”. cf. Informação disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Gerald_Thomas_Sievers>. Acesso em 25 fev. 2011. A informação sobre a nacionalidade do diretor não está explicitada em seu blog pessoal. Disponível em: <http://geraldthomasblog.wordpress.com>. Acesso em 20 fev. 2011.
179 Cf. texto integral, comentado, em: <www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf > Acesso em: 25 fev. 2011. 180 Nossa tradução de “the very project of the Anthropophagy group: not to denyforeign influences or nourishment,
origem. Em um determinado momento de suas reflexões, o filósofo volta-se para as relações entre o corpo e a história:
O corpo - e tudo o que diz respeito ao corpo, a alimentação, o clima, o solo - é o lugar da Herkunft181: sobre o corpo se encontra o estigma dos acontecimentos passados do mesmo modo que dele nascem os desejos, os desfalecimentos e os erros; nele também eles se atam e de repente se exprimem, mas nele também eles se desatam, entram em luta, se apagam uns aos outros e continuam seu insuperável conflito. O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos (enquanto que a linguagem os marca e as ideias os dissolvem), lugar de dissociação do Eu (que supõe a quimera de uma unidade substancial), volume em perpétua pulverização. A genealogia como análise da proveniência, está portanto no ponto de desarticulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo (FOUCAULT, 2009, p.22).
A reflexão de Foucault (2009) suscita a ideia de que a própria dinâmica espaço-temporal
que rege história/corpo demanda a ‘devoração’, num movimento em que a história devora o
corpo que a escreve, e que nela se inscreve: da mesma forma que o texto demanda interpretação.
Quando Oswald de Andrade anuncia a devoração da história, de todo um processo de seleção
e imposição do centro para a periferia, a devoração de um jogo de dominação e inferiorização,
o faz utilizando a metáfora do corpo que devora outro corpo. Então, o corpo do tradutor
devorará este outro corpo textual.
Como o corpo elaborado por Foucault (2009), a obra canônica apresentará as marcas de
sua devoração: cada suplemento, cada texto em diálogo com Hamlet, por exemplo, a cada
enunciação de seu ‘to be or not to b e \ em qualquer idioma, em qualquer linguagem textual,
traz a memória da anterioridade - que já marcou o presente e o futuro com seu rastro - e
continua sua existência. Um ‘m arca’ o outro. Else Vieira analisa Haroldo de Campos, flagrando
um movimento de troca na antropofagia, uma dialética de ‘dar e receber’:
A tradução como transtextualização ou transcriação ‘demitifica’ a ideologia da fidelidade. Se a tradução transtextualiza, já não é um fluxo unidirecional, e de Campos conclui seu texto com duas metáforas antropofágicas. Uma deles é 'transluciferação', [...]; a outra nos traz de volta à dupla dialética antropofágica de dar e receber [...]: "A tradução como transfusão. De Sangue" (VIEIRA apud BASSNETT et TRIVEDI, 1999, p.110, tradução nossa)182
181 Do alemão ‘Início’.
182 Nossa tradução de: “Translation as transtextualization or transcreation demythicizes the ideology of fidelity.
I f translation transtextualizes, it is no longer a one-way flow, and de Campos concludes his text with two anthropophagic metaphors. One is ‘transluciferation’, [...]; the other brings us back to the anthropophagic double dialectics of receiving andgiving [...]: ‘Translation as transfusion. Of Blood’. "
Em uma das primeiras cenas em que aparece na minissérie, o personagem Oswald
refere-se ao escritor, confirmando a alusão:
Oswald: Hello everybody.
Dante: Olá a todos. Me pediram, na verdade, me exigiram, pra apresentar o novo diretor de vocês. Um colega meu. Todos estamos muito FELIZARDOS de tê-lo aqui. E eu tenho certeza de que vocês vão achar suas ideias muito interessantes. Com vocês, Osváááldo Tomáááás! Osvaldo!
Oswald: É Oswald. Como em Oswald de Andrade. E Thomas. Sem o acento no ‘A’.” 183
Essa tradução/deslocamento elaborada por Dante proporciona, na trama e para a plateia
televisiva, a quebra de hierarquias do discurso elitista iniciado pelo outro, quando impõe um
idioma estrangeiro aos demais. Podemos traduzir esse gesto como uma crítica à anglofilia do
tradutor Oswald. Nesse caso, Dante estaria evidenciando que a apreciação do antagonista pela
língua inglesa o caracteriza como um artista ‘colonizado’. O fato também fica explícito quando
Dante, em um gesto de oposição a Oswald, cumprimenta os atores em português - afirmando
a sua identidade e a do grupo.184
A primeira característica antagônica de Oswald é negar o ponto de vista alheio e
prosseguir com um projeto estético e poético que tem em mente - como os ingleses impuseram
sua cultura às colônias, promovendo um apagamento sistemático do Outro. Em diversos
momentos da narrativa, flagramos Oswald ignorando a opinião e o trabalho dos atores sob sua
direção. Oswald opõe-se a tudo e a todos na trama, defende seus argumentos como definitivos,
não se envolve com o olhar do outro, é refratário por convicção, como se outras leituras
pudessem contaminar as suas, constituir
uma ameaça. Essa rigidez de ponto de vista dialoga, de certa forma, com o projeto de
englishness analisado por Stwart Hall em A identidade cultural napós-modernidade:
[...] o fortalecimento de identidades locais pode ser visto na forte reação defensiva daqueles membros dos grupos étnicos dominantes que se sentem ameaçados pela presença de outras culturas. No Reino Unido, por exemplo, a atitude defensiva produziu uma "inglesidade" (englishness) reformada, um "inglesismo" mesquinho e agressivo e um recuo ao absolutismo étnico, numa tentativa de escorar a nação e reconstruir "uma identidade que seja una, unificada, e que filtre as ameaças da experiência social" (Sennett, 1971, p.1S). Isso frequentemente está baseado no que antes chamei de "racismo cultural" e e evidente, atualmente, em partidos políticos legais, tanto de direita quanto
183 DVD 1, Episódio 3, aos 24’45’’.
184 Essas tensões entre os personagens atingem o clímax quando Dante decide armar uma luta semelhante a uma clássica luta capa-e-espada dos filmes representativos shakespeareanos.
de esquerda, e em movimentos políticos mais extremistas em toda a Europa Ocidental (HALL, 2006, p.85).
Som & Fúria mostra essa posição de alheamento do personagem através de traços
cômicos. Em contrapartida, Oliveira - outra força antagônica ao herói - estabelece negociações
e disputas com Dante de forma mais íntima, dada sua condição de fantasmagoria onipresente.
Poderíamos dizer que a inserção do personagem Oswald Thomas em Som & Fúria
constrói, então, uma espécie de triângulo filosófico entre os olhares tradutores de Oliveira e
Dante. Haveria, dessa forma, uma quebra na dicotomia das relações de antagonismo na trama:
passamos de um sistema linear de oposição [ou, ou], conflito em que só pode restar uma solução
tradutória, de acordo com o sistema de crenças evidenciado pelo personagem Oliveira - e
passamos a observar um movimento [e, e, e]: onde coexistem uma voz tradicionalista, uma voz
limiar e uma voz desconstrutora. Esse triângulo tradutório configuraria uma perspectiva de
simultaneidade, de coexistência de outros vetores, engendrando, cada um deles, mais olhares
possíveis sobre a Tradução. Estes não se eliminam, mesmo em disputa. Enriquecem o processo
de releitura: no discurso da minissérie, os pontos de vista de Oswald e de Oliveira são
transformados para se adequarem, no fim da trama, à perspectiva popularizante de Dante,
limiar, transitória - portanto, aberta à negociações e menos radical que os outros dois. Como
muitas produções televisivas, onde o maniqueísmo é evidente, é preciso que ‘o bem vença o
m al’ e que, se o ‘m al’ não terminar punido, que ao menos se dê por vencido, em um gesto de
redenção, ou, no caso de Som & Fúria, de libertação e transformação dos antagonistas, para seu
‘próprio bem ’.
O surgimento desse terceiro olhar desconstrutor de cunho antropofágico, o de Oswald,
evidencia, por contraste, os projetos tradutórios dos outros dois dramaturgos. Oswald é um tradutor em constante movimento, não se vale completamente nem de um olhar nem de outro.
Quando estuda o teatro de Bertolt Brecht (1898-1956), procura aplica-lo em suas traduções de
palco. Quando estuda os conceitos de Ferdinand de Saussure (1857-1913) e de Roland Barthes
(1915-1980), cria exercícios de desconstrução do significante para os atores. Se acaba de vir
da Inglaterra, inclui o léxico inglês em sua fala; se estava na Alemanha, também marcará sua
fala: ele brinca com o rastro derridiano, dá pistas de uma seleção de suas vivências, dos textos
com os quais esteve em contato. Ao traduzir seus pensamentos, marca o território a que gostaria
bruxas das histórias de fadas, “frequentemente traídas por seus apetites” 185, Oswald é ‘traído’
pelo que diz.
Os professores e tradutores Susan Bassnett e Harish Trivedi, em Post-Colonial
Translation: Theory andPractice, afirmam que, no gesto canibal, há admiração: “ Afinal, não
se come uma pessoa a qual não se respeita e, em algumas sociedades, a ‘devoração’ dos
inimigos mais fortes ou dos anciões mais dignos, tem sido visto como um meio de adquirir os
poderes que tinham exercido em v id a .” (BASSNETT et TRIVEDI, 1999, p.1, tradução
nossa)186.
É o desejo de nutrir-se do poder do outro e tornar-se ‘u m ’ com o outro, traduzir o Outro
em si mesmo, para se tornar um novo ‘texto’. Oswald faz isso com suas vivências, especialmente suas vivências em outros territórios. Poderíamos dizer, então, que o nome
Oswald Thomas é, também, resultado de um projeto antropófago: é como se o personagem tivesse devorado os dramaturgos Oswald de Andrade e Geral Thomas, configurando, ele
mesmo, uma tradução amalgamada em um só - a tradução de um tradutor.
Poderíamos interpretar Oswald como colonizador e colonizado, simultaneamente: em
átimos de pedantismo, usa o idioma estrangeiro para, supostamente, destacar-se entre seus
pares, num artificialismo de intelectualidade. Enquanto isso, se esquece do próprio idioma e
busca no estrangeiro as bases para seu trabalho no Brasil - está sempre endividado com a
técnica do colonizador que, por ser importada, é reconhecida por ele como a melhor técnica.
Seu símbolo, sua fígura de síntese, poderia ser quase qualquer dos seres híbridos descritos por
Borges em seu O Livro dos Seres Imaginários. Poderia, ainda, ser representado pela esfinge,
pronta para devorar não aquele que não o decifra, mas os textos que se colocam à sua disposição
- sendo ele mesmo, sua postura de tradutor, também enigmática e de difícil resolução:
A esfinge grega tem cabeça e peitos de mulher, asas de pássaro e corpo e pés de leão. Outros lhe atribuem corpo de cachorro e cauda de serpente. Conta-se que assolava o país de Tebas, propondo enigmas aos homens (pois possuía voz humana) e devorando aqueles que não sabiam resolvê-los. A Édipo, filho de Jocasta, perguntou: "Que ser tem quatro pés, dois pés ou três pés,e quantos mais tem, mais fraco é?" (BORGES, 2007, p.90).
185 Nossa tradução de “witches are often betrayed by their appetites”, trecho do poema Instructions [Instruções]. Nesse poema, Neil Gaiman oferece ao leitor uma espécie de manual de leitura do gênero fantasia. Trecho dsiponível em:< http://www.endicott-studio.com/cofhs/cofinstr.html>. Acesso em: 20 mar. 2008.
186 Nossa tradução de “After all, one does not eatpeople one does not respect, and in some societies the devouring
of the strongest enemies or most worthy elders has been seen as a means of acquiring the powers they had wielded in life.”
O personagem Oswald condensa, como a esfinge, uma variedade de características,
demonstrando a impossibilidade de síntese por estar inacabado, em movimento, em um
constante estado de construção e desconstrução de suas ideias, opiniões, olhares.
Possivelmente, Oswald, em suas irresoluções que o levam à mudança constante, seja o
personagem mais próximo do possível na contemporaneidade fluida em que nos encontramos.
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman dedica seu livro Vida Líquida à reflexão sobre a
inconstância da contemporaneidade:
A "vida líquida" e a "modernidade líquida" estão intimamente ligadas. A "vida líquida" é uma forma de vida que tende a ser levada à frente numa sociedade líquido-moderna. "Líquido-moderna" é uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir. A liquidez da vida e a da sociedade se alimentam e se revigoram mutuamente. A vida líquida, assim como a sociedade líquidomoderna, não pode manter a forma ou permanecer em seu curso por muito tempo (BAUMAN, 2005, p.7).
De acordo com Bauman (2005), não teríamos mais, na contemporaneidade, a chance de
nos ater a um conjunto único e fechado de ideias. Em Som & Fúria, podemos ler essa liquidez
do personagem Oswald tanto como uma crítica ao ritmo urbano ao qual nos submetemos, como
um diálogo com a transgressão - a transgressão que ‘não admite impedimentos’, para
parafrasear Shakespeare.
De acordo com Vieira, o M anifesto Antropófago de Oswald de Andrade influenciou as
mais diversas linguagens no Brasil, é uma metáfora que foi se transformando ao longo de
décadas após o M anifesto, com reverberações no cinema, na música, no movimento da crítica:
“ [...] um novo discurso crítico sublinha a diferença, não a dívida e a imitação, como o único
valor crítico. E ele187 conclui que, embora a submissão possa constituir uma forma de comportamento, a transgressão to rn a-se a form a de expressão.” 188 (VIEIRA apud
BASSNETT et TRIVEDI, 1999, p.102, tradução nossa). Poderíamos considerar o conceito
antropofagia também como ‘líquido’, sujeito à transformações através de constantes
apropriações e diferentes usos. A antropofagia oswaldiana foi se traduzindo e se articulando de
acordo com o momento e o lugar. O que propomos aqui é a reflexão desse tradutor como
metáfora de um tradutor antropofágico, em movimento constante entre filosofias, isto é, um
187 O escritor, professor e crítico literário Silviano Santiago.
188 Nossa tradução de “[...] a new critical discourse stresses difference, not debt and imitation, as the only critical
value. And he concludes that, while submission may be a form of behaviour, transgression becomes the form of expression.”
tradutor que, ao mesmo tempo em que traduz criativamente o texto - a partir da abordagem de
Haroldo de Campos - acaba por articular um discurso que resulta num afastamento ainda maior
do texto canônico, especialmente em seu segundo momento.
N a trama, Dante evita ser o tradutor de um texto que vai conduzi-lo de volta a uma
narrativa passada que o enlouqueceu. Demonstra, assim, a sua percepção de que traduzir é
relacionar-se consigo mesmo e que parte dessa relação estará no palco, virá a público. Por essa
razão, Oswald surge para substitui-lo como diretor, na montagem de Hamlet. A partir de então,
dividimos a análise de Oswald em dois momentos principais: a transcriação de Hamlet,
elaborada a partir de seu olhar antropófago e, em seguida, a hermetização de Romeu e Julieta,
a partir de um projeto de tradução pautado em conceitos semiológicos caricaturados em Som &
Fúria. Esse personagem, de fato, nos deixa com pouco material a ser observado se o
compararmos aos dois outros tradutores principais da narrativa, devido à sua brevidade de atuação na minissérie (o tradutor em movimento está ‘de passagem’ também em Som & Fúria).
De Hamlet temos apenas algumas cenas, onde vemos a montagem dos cenários e as exigências do diretor. Não sabemos, por exemplo, como seria o olhar desse tradutor sobre os solilóquios
da peça, como é detalhado em Dante, em cenas posteriores. Em Romeu e Julieta a nova proposta
de Oswald fica mais clara. É como se, nesse intervalo, passasse de Oswald para Thomas: uma
caricatura estaria mais evidente, em dois momentos distintos do diretor.
4.3.1 M o[vi]m ento 1: ‘O sw ald’ canibaliza H am let
Era uma vez, no século XVI, no que hoje é o Brasil, uma tribo Tupinambá que devorou um padre católico. Este ato provocou tremores de horror por Portugal e Espanha, representando, dessa forma, o último tabu para um cristão europeu. O próprio termo 'canibal' foi associado às Américas; originalmente referia-se a um grupo de Caraíbas, nas Antilhas, e entrou no idioma Inglês definitivamente no ano de 1796, significando "um comedor de carne humana", e posteriormente passou para outras línguas europeias. O nome de uma tribo e o nome dado aos
povos selvagens que comiam carne humana foram fundidos em um único termo.189 (BASSNETT et TRIVEDI, 1999, p.1, tradução nossa)
Tupi, or not tupi that is the question190.
Oswald de Andrade
189 Nossa tradução de: “Once upon a time, in the sixteenth century, in what is now Brazil, members of the