IV. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA / REVISÃO DE LITERATURA:
2. OTOTOXICIDADE DOS SOLVENTES E EFEITOS DA EXPOSIÇÃO COMBINADA AO RUÍDO
Como descrevem BRUCKNER et al., (2012), para os demais riscos tóxicos, o
maior desafio para a avaliação e o gerenciamento do risco é o de trabalhar de forma
interdisciplinar para demonstrar a plausibilidade biológica e a significância clínica das
conclusões dos estudos com compostos que possam apresentar efeitos adversos. Tal
consideração se aplica também à saúde auditiva.
Com intuito de gerar informações relacionadas às causas, aos fatores de risco e
aos efeitos à saúde auditiva em trabalhadores, as investigações têm sido conduzidas nas
mais variadas áreas ocupacionais com a associação de métodos diferentes para medidas
de exposição. Assim, ambientes que oferecem exposição a produtos químicos como a
indústria petroquímica, refinarias de petróleo, farmacêutica, de cosméticos, de
rotogravura e impressão; os setores de abastecimento de aeronaves e automóveis;
fabricação e uso de agrotóxicos, móveis, tecidos, plástico e borracha, laboratórios de
histologia, entre outros, têm se tornado importantes campos de estudo (ABBATE et al.,
1993; MORATA et al., 1993, 1995, 1997a; MORATA et al.,1997b; SCHAPER et
al.,2003; KOWALSKA et al.,, 2005; CHANG et al.,2006; HOET e LISON, 2008;
JOHNSON e MORATA, 2010; FUENTE et al., 2012). As estimativas do número de
expostos a solventes e outros contaminantes potencialmente ototóxicos como metais
33 Entretanto, apesar das recentes discussões, permanecem insuficientes as
informações geradas com as investigações sobre a avaliação do risco ototóxico dos
agentes químicos e, particularmente, aquelas sobre a interação com o ruído em
condições industriais reais, ainda que bem documentadas (SULKOWISK et al.,2002;
VYSKOCIL et al.,2012. Com o conhecimento atual ainda não é possível quantificar
com exatidão as relações de dose-resposta ou dose-efeito em humanos, inerentes a
exposições isoladas e principalmente das interações, mesmo para as substâncias
ototóxicas que constam das listas de órgãos reguladores ou agências de pesquisa
(DIRECTIVA 2003/10/CE; EU-OSHA, 2009).
A base das relações quantitativas entre exposição a um agente tóxico e a
incidência de um efeito adverso é a avaliação dose-resposta (FAUSTMAN e OMENN,
2012). A caracterização das relações dose-resposta limítrofes incluem o menor nível em
que o efeito adverso é observado (lowest observed effect level – LOEL) e o nível onde o
efeito adverso não é observado, ou seja, está ausente (no observed effect level – NOEL),
ambos investigados em experimentos envolvendo animais. Não há níveis definidos de
LOELs e NOAELs para substâncias químicas, referentes aos efeitos ototóxicos
(JOHNSON e MORATA, 2010), porém a identificação de interações aditivas atribuídas
à exposição combinada a químicos e ruído, sugerem modificações no LOEL e NOEL
(MORATA e ALMEIDA, 2013).
Essas características da exposição são divergentes entre ambientes controlados
(laboratórios de pesquisa) e ambientes laborais, e sua associação ao desfecho parece ser
diferente quando se trata de humanos (VYSKOCIL et al., 2011), sobretudo pela
dificuldade em se obter um histórico confiável e preciso dos numerosos fatores de
confundimento ou possivelmente modificadores de efeito que podem estar presentes nas
34 ALMEIDA, 2013). Esses fatores dificultam o consenso quanto às características da
exposição e do desfecho auditivo (VYSKOCIL et al.,2011) e torna difícil caracterizar o
risco e separar os efeitos de cada agente em um cenário ocupacional de exposição
combinada (JOHNSON e MORATA, 2010).
Devido ao seu metabolismo comparável ao dos humanos, o rato é o principal
modelo animal usado nas investigações sobre as propriedades ototóxicas dos solventes
aromáticos (CAMPO e MAGUIN, 2007). Contudo, em contraste com animais de
laboratório, os seres humanos são caracterizados por grande variabilidade, desde as
diferenças genéticas que criam susceptibilidade individual para a PA até as diferenças
individuais nos históricos médicos e de exposição (JOHNSON e MORATA, 2010).
Diversos autores envidaram esforços para a investigação das propriedades
ototóxicas dos agentes químicos em animais e têm demonstrado evidências claras dos
efeitos ototóxicos provenientes da exposição isolada a algumas substâncias químicas ou
combinada a outros agentes de risco, em níveis elevados de concentração, por um curto
período de tempo (JOHNSON et al., 1990; LATAYE e CAMPO, 1997; LATAYE et
al., 2000). Também têm sido encontradas alterações auditivas em populações humanas
expostas à mistura de solventes em níveis elevados de concentração, isoladamente ou
me combinação com outros agentes de risco (MORATA et al.,1997a; SLIWINSKA-
KOWALSKA et al., 2003; SLIWINSKA-KOWALSKA et al., 2004; SLIWINSKA-
KOWALSKA et al., 2005; MOHAMMADI et al., 2010; RATNASINGAM e IORAS,
2010).
Em outra direção, vários estudos epidemiológicos indicam níveis muito mais
baixos em ambientes industriais e muitas vezes inferiores aos limites de exposição
ocupacional preconizados, tanto para químicos quanto para o ruído, associados à
35 Pesquisas recentes em animais demonstraram que esta diferença entre os
resultados dos estudos experimentais e epidemiológicos está associada à adição de
outros estressores comuns às exposições ocupacionais como: o ruído, a demanda física
ou a associação a outros produtos químicos e até mesmo ao uso de fármacos ototóxicos.
A associação a estes estressores pode reduzir o menor nível de exposição a solvente
necessário para induzir um efeito auditivo adverso (JOHNSON e MORATA, 2010).
Os obstáculos encontrados pelos atores envolvidos na prevenção da PA em
populações expostas a agentes químicos começam pela inexistência de dados precisos
sobre ototoxicidade em humanos. Características como a grande variedade de produtos
novos utilizados no meio industrial e suas variadas combinações nos diversos cenários
laborais, dificultam definições nessa direção. Recomendações científicas orientam que,
na ausência de informações suficientes sobre o potencial ototóxico de determinada
substância, sejam consideradas informações sobre sua toxicidade geral, órgãos-alvo
(SNC, rins etc.), produção de radicais livres e, como medida de precaução, avaliações
do sistema auditivo sejam de antemão ponderadas (MORATA e ALMEIDA, 2013).
A ototoxicidade dos solventes foi sugerida em estudos publicados a partir dos
anos 60, mas não fora claramente demonstrada até os anos 80 (MORATA et al., 2002).
Bergström e Nyström (1986), durante um estudo de seguimento de 20 anos, sobre a
audição de trabalhadores de uma fábrica de transformação de madeira, encontraram uma
grande proporção de trabalhadores da divisão química com PA indenizável.
A partir da década de 90, quando efeitos neurotóxicos nos sistemas periférico e
central foram sistematicamente identificados, progressos consideráveis ocorreram na
compreensão dos efeitos auditivos decorrentes da exposição a metais, solventes,
asfixiantes, nitrilas, policlorados (PCBs) e pesticidas, bem como em suas interações
36 Atualmente, pesquisadores defendem a hipótese de que a provável ação dos
solventes orgânicos aromáticos é um envenenamento químico das células ciliadas,
resultando em uma desorganização das suas estruturas membranosas, podendo
desencadear a morte dessas células (MAGUIN et al., 2009).
Assim como o ruído,
“compostos químicos que adversamente afetam o metabolismo de energia celular, a homeostase de Ca²+, o estado redox e, em última análise, causam necrose, podem também, induzir apoptose. Enquanto as células necróticas são caracterizadas por edema e lise, as células apoptóticas são caracterizadas por encolhimento, condensação do material nuclear e do citoplasma e subsequente quebra dos fragmentos da membrana (corpos apoptóticos) que são fagocitados. Em contraste com a sequência aleatória de múltiplos defeitos metabólicos que a célula sofre quando desencadeia necrose, para a apoptose, as rotas são ordenadas, envolvendo a ativação da cascata do processo catabólico que finalmente desmonta a célula.”
(GREGUS, 2012)
Porém, um acometimento mais central do sistema auditivo também é esperado,
devido à neurotoxicidade geral dessas classes de produtos químicos (JOHNSON e
MORATA, 2010). Esses efeitos dos solventes sobre a audição podem ser observáveis a
partir de três (MORATA et al., 1993; BOTELHO et al., 2009) a cinco anos de
exposição crônica (JACOBSEN et al., 1993) e podem estar presentes antes mesmo de
serem detectáveis à ATL, atualmente considerada o padrão ouro da avaliação auditiva.
Porém, a audiometria convencional tem se mostrado um indicador tardio nas disfunções
auditivas centrais (EU-OSHA, 2009).
Estudos experimentais com ratos demonstraram que a exposição combinada a
ruído e tolueno ocasionou maior dano auditivo sobre a cóclea, bem como PA mais
37 semelhantes também foram descritos em estudos experimentais com ruído e estireno
(LATAYE et al., 2000; MAKITIE et al., 2003). Estudos epidemiológicos com ruído e
dissulfeto de carbono, ruído e tolueno, e ruído e estireno confirmaram evidências da
ação combinada entre dois agentes (CHANG et al., 2003; MORATA et al.,1993,
CHANG et al., 2006; JOHNSON et al., 2006). Outros estudos também encontraram
alterações auditivas em populações expostas a mistura de solventes isoladamente,
mesmo sem a presença de ruído (MUIJISER et al., 1988; SALAZAR et al., 1991;
SULKOWSKI et al., 2002; ELSHAZLY, 2006; TRIEBIG et al., 2008;
ZAMYSLOWSKA-SZMYTKE et al., 2009).
A ação química sobre o funcionamento coclear durante a exposição a ruído pode
ser potencializada pela modificação da permeabilidade vascular. De forma contrária, o
ruído pode tornar a cóclea mais vulnerável à ação tóxica devido ao desencadeamento de
hipóxia local (FERRITE e SANTANA, 2005).
Outra hipótese para o aumento da susceptibilidade à PAIR baseia-se na ação
tóxica à via auditiva central. Além dos danos sofridos pela cóclea, decorrentes da
exposição às particularidades de cada agente agressor (químico e ruído), estudos
descrevem a possível ação dos solventes na gênese do reflexo acústico estapediano,
modificando o mecanismo de proteção à entrada de níveis elevados de pressão sonora,
mediado pela orelha média. Uma perturbação desse reflexo permitiria a entrada de sons
em intensidades elevadas na orelha interna quando da co-exposição a solventes e ruído
38