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3 AS PRIMEIRAS CANÇÕES

3.3 Outras canções

Se o ser amado é apresentado intencionalmente de forma vaga e ambígua no primeiro texto, a partir do terceiro poema das Canções de 1922, tal figura é revelada de forma desassombrada ao leitor:

Ele olhava-me cismando;

E eu,

Placidamente, fumava, Vendo a lua branca e nua

Que pelos céus caminhava. (BOTTO, 2010, p.47-48, grifo nosso).

Estrategicamente, é nesse ponto que o leitor percebe(-se ) o sujeito lírico envolvido em um ritual de iniciação homoerótico. Notamos, no fragmento acima, a maneira explícita e natural com que Botto manifesta seu “erotismo inconvencional” (CORREIA, 1966, p.433). Os poemas seguintes reiteram essa preferência do sujeito lírico pelo canto ao corpo masculino. Logo na epígrafe das Canções de 1932, Botto já anunciava – nas palavras de Winckelmann, a preferência pela beleza masculina:

Como é confessadamente a beleza do homem que tem que ser concebida sob uma ideia geral, assim tenho notado que aqueles que observam a beleza só nas mulheres, ou pouco e nada se comovem com a beleza dos homens, raras vezes têm um instinto imparcial, vital, inato, da beleza na arte. A pessoas como essas a beleza da arte grega parecerá sempre falha, porque a sua beleza suprema é antes masculina que feminina. (WINCKELMANN apud BOTTO, 1932, p. 07).

savoureuse et incommunicable habitude de leur passion.» (ZUMTHOR, 1972, p.192-193, grifos do

Um dos poemas mais expressivos de Botto, que já figurava na edição de

Canções do Sul (1920) e que posteriormente seria mantido nas Canções de 1932, é

o décimo poema das Canções de 1922, que segue transcrito abaixo:

Quem é que abraça o meu corpo Na penumbra do meu leito? Quem é que beija o meu rosto, Quem é que morde o meu peito? Quem é que fala da morte, Docemente, ao meu ouvido? És tu, Senhor dos meus olhos,

E sempre no meu sentido. (BOTTO, 2010, p.56).

Composto em oitava, notamos no poema uma notável construção musical. Além da composição em versos heptassílabos e da disposição das rimas graves em forma alternada, estas ganham maior ressonância quando combinadas como aliterações entre os versos. A partir da ideia de que a aliteração em si pode ser considerada um tipo de rima, mormente na construção dos chamados “versos aliterativos”, que repetem determinado(s) fonema(s) ao longo do verso, como no caso dos musicais versos de “Um sonho”, do simbolista português Eugênio de Castro: “Na messe, que enlourece, estremece a quermesse... / [...] Fogem fluidas, fluindo à fina flor dos fenos...” (CASTRO, E., 1974, p.38).

Diferentemente dos versos aliterativos, no interior dos quais se organiza a repetição do(s) fonema(s), Botto opta por uma construção inusitada, que dispõe entre os versos os sons semelhantes:

Quem / é /que a / bra /ça o/ meu/ cor /po A (toante) 1 2 3 4 5 6 7

Na / pe /num / bra / do/ meu/ lei /to? B

Quem / é / que / bei / ja o / meu / ros /to, A (toante) Quem / é / que / mor /de o / meu / pei /to? B

Quem / é / que / fa /la /da / mor /te, C (branco)

Do /ce /men /te, ao / meu / ou /vi /do? D

És / tu /, Se /nhor / dos / meus / o / lhos, E (branco) E / sem /pre / no / meu / sen /ti /do. D

O predomínio significativo dos fonemas nasais e das vogais nasalizadas organiza os versos em uma cadeia sonora que, harmonicamente, ressoa em melodia ajustada ao compasso musical.

Observamos a repetição das estruturas sintática e semântica, que recompõe aquele paralelismo típico das cantigas de amigo medievais. Nas três primeiras duplas de versos, a repetição da frase interrogativa, cujo sujeito é expresso pelo pronome interrogativo “quem”, retoma o questionamento sobre a figura do ser amado, introduzido desde o primeiro poema. No penúltimo verso, entretanto, a referência ao ser amado é explícita: “És tu, Senhor dos meus olhos,”.

Em uma primeira leitura, o referido verso poderia expressar a submissão do sujeito lírico em relação ao amado (“Senhor”). Uma análise mais atenta, em particular se considerarmos a sua estrutura paralelística, revela justamente o oposto: a dominação exercida pelo sujeito lírico em relação ao amado. O sujeito lírico, ao receber as ações verbais (“abraça”, “beija”, “morde”, “fala”), é, na verdade, servido pelo ser amado; o que parece atualizar o verso camoniano, “[Amor] É servir a quem vence, o vencedor;” (CAMÕES, 1982, p. 155). Outro índice deste protagonismo é a repetição, em quase todos os versos, dos pronomes possessivos referentes a elementos do sujeito lírico, e não do ser amado: “meu corpo”, “meu leito”, “meu rosto”, “meu peito”, “meu ouvido”, “meus olhos”, meu sentido”.

Isto posto, o amante é apresentado como o indivíduo que tem o privilégio de usufruir a companhia e os prazeres proporcionados pelo sujeito lírico que, simulando sujeitar-se, manipula o amante.

Ao reunir as publicações anteriores nas Canções de 1932, Botto reescreveu e reordenou os poemas. A primeira parte de seu novo arranjo, composto pela maior parte dos poemas das Canções de 1922, recebeu o nome de “Adolescente - Livro Primeiro”. Doze composições das antigas canções foram suprimidas (os poemas 02, 05, 06, 07, 12, 13, 14, 18, 19, 20, 21 e 24) e outros seis poemas foram acrescentados, totalizando vinte composições neste novo conjunto.

Um procedimento de Botto que merece destaque é a substituição do primeiro poema das Canções de 1922 pela canção que segue transcrita abaixo:

I

NÃO. Beijemo-nos apenas, Nesta agonia da tarde. Guarda

Para um momento melhor Teu viril corpo trigueiro. O meu desejo não arde; E a convivencia contigo Modificou-me – sou outro... A névoa da noite cahe. Já mal distingo a côr fulva Dos teus cabelos – És lindo! A morte,

Devia ser

Uma vaga phantazia!

Dá-me o teu braço; – não ponhas Esse desmaio na voz.

Sim, beijemo-nos apenas,

Que mais precisamos nós? (BOTTO, 1932, p. 15-16).

O poema primeiro das Canções de 1922, que analisamos no início deste capítulo como um “poema-iniciação”, é o poema segundo nesta nova configuração. Tal substituição revela a preferência de Botto por um poema que anunciasse de modo explícito, logo na abertura da nova obra, a figura masculina do ser amado com quem o sujeito lírico, também masculino, contracena o texto amoroso.

Tal reajuste é apenas um dos procedimentos adotados por Botto na passagem das Canções de 1922 para as Canções de 1932. Estudar as outras estratégias do poeta ao longo das publicações de Canções (1941; 1944; 1956) merece um outro e minucioso estudo, que naturalmente caminharia para a edição crítica da poesia bottiana.