• Nenhum resultado encontrado

indireta72. A próxima descrição relevante do espaço ao redor de Sussuca é da sala de sua casa, modesta e quase sem ornamentação, a não ser por uns retratos. Pode-se dizer que a descrição da casa é a própria definição de Sussuca, uma pessoa simples, órfã de pai, que falecera em um acidente de carro quando ela contava com dez anos, vive sozinha com a mãe viúva, sem muitos recursos.

Por estar relacionada a José, como já demonstrado, o espaço social, a violência, interfere em seu destino, mas não através de suas próprias ações. Morre com o noivo seu sonho de se casar.

futuro dos filhos. Que será dos seus filhos? Que será dele próprio talvez?

Baltazer é um destroço. Odeia e ama o Brasil!73.

Parece então que a existência de Baltazar justifica-se na necessidade de um registro da conjuntura da cidade e do país, parece que a personagem existe em função do espaço social.

Outras personagens que merecem destaque são as raparigas da casa de mulheres onde vivia Rizoleta.

Inês do Barulho, “negra (...). É valentosa, usa navalha, tem uma cicatriz na testa, arma distúrbios, anda constantemente às voltas com a polícia”74. Pouco se sabe sobre a mulher, mas assim como Teixieirinha, faz parte do eixo da desordem e foi conduzida coercitivamente à delegacia.

No trecho a seguir, o narrador faz um apanhado geral das mulheres polacas, cujas descrições são feitas sob o prisma de Rizoleta;

Lolote, uma velha. Suzane, outra velha. Frida, avariada, descansava e, aproveitando as férias forçadas, fazia da boca uma fortuna em dentes de ouro. Mariazinha, a única concorrente séria, uma morena aluada, adejava no interior com um ex-caixeiro viajante muito sabido, por quem se embeiçara alucinadamente75.

Posteriormente, o narrador expõe os anseios dessa mulheres;

Ganhavam, armazenavam, Possuía cadernetas nos bancos de enchendo.

Um dia, sim, voltariam pra as suas frias aldeias europeias. Lá haveriam de viver das próprias economias, gordas, consideradas, invejadas, sem o trabalho de atrai fregueses, livres da lide insana do Mangue, talvez placidamente casadas76.

Em nenhum momento o narrador emite juízo moral sobre as atividades exercidas pelas prostitutas, ao contrário, parece tratar com bastante dignidade a situação das mulheres. Assim como Rizoleta, que era uma mulata, as polacas não tiveram tanta opção para manter-se no Brasil. Ocorre que àquela época, a situação do estrangeiro, que viera substituir o trabalho escravo, não era muito promissora no país. Eram todas vítimas de marginalização e preconceito, comprovação disto é a

73 Rebelo, 2012, p. 229.

74 Ibidem, p. 11.

75 Ibidem, p. 12.

76 Ibidem, p. 46.

descrição de Sá Maria, que também trabalhava no bordel, mas não se prostituindo, fazendo a limpeza do lugar e lavando as roupas das outras;

Portuguesa tinha buço carregado e crostas de sujo no pescoço avermelhado pelo sol. Usava coque torcido e brincos – meias libras verdadeiras penduradas por duas correntinhas. Morava perto, numa avenida imunda, amasiada com um marceneiro (...)77.

Peleador, apelido pejorativo de uma personagem de quem não se sabe o nome ou a origem, era benquisto por José, mas é outra personagem que pertence às classes mais excluídas;

Era preto retinto e possuía uma respeitável beiçola. De onde veio ninguém sabia, nem importava. (...) Não pediu a ninguém, mas passou a dormir na escola, sobre um monte de lonas. Prestava pequenos serviços, comia do resto dos outros, participava dos treinos, servindo de armazém de pancada para os pichotes do seu peso. Por causa disso vivia com o beiço ferido, sangrando78.

A prova mais robusta da marginalização de Peleador é a informação de que não sabia ler. Mais uma personagem fadada a uma existência fosca pelo ambiente social que o enquadra.

A última personagem secundária a ser abordada aqui é Sebastião, amigo de Teixeirinha.

Importante relembrar que Marques Rebelo, seguindo a tradição do mestre realista Machado de Assis, descreve com maestria o espaço urbano do Rio de Janeiro e as personagens de seu romance, de maneira que nos permite compreender a motivação e a transição das personagens entre os ambientes mencionados no capítulo anterior.

Esses personagens, “entre o sonho de realização e o temor da miséria, acabam muitas vezes empurrados para o mundo da marginalidade e da violência, daí serem levados a práticas ilícitas”79 e a utilizar-se de manobras que burlam os princípios sociais vigentes.

Segundo Lukács,

77 Rebelo, 2012, p. 13.

78 Ibidem, p. 147.

79 Freire; Oliveira, 2014, p. 2.

a descrição das coisas nada mais tem a ver com os acontecimento da evolução dos personagens. E não só as coisas são descritas independentemente das experiências humanas, assumindo um significado autônomo que não lhes caberia no conjunto do romance, como também o modo pelo qual são descritas conduz a uma espera completamente diversa daquela das ações dos personagens80.

Das personagens secundárias mencionadas até então, Sebastião é a que melhor representa a dualidade das personagens de Marques Rebelo, conforme se demonstra a seguir.

Conta o narrador que Sebastião era um homem casado, com cinco filhos pequenos. A princípio a personagem está relacionada à casa, à ordem, à harmonia, mas sua vida revela-se cheia de trânsitos entre espaços interiores e exteriores, entre o polo da ordem e da desordem.

A primeira aparição de Sebastião foi em um ambiente exterior, à esquina do café. “brilhante de anúncios luminosos, vermelhos e verdes, pisca-piscas”. O narrador, nesta ocasião, o descreve como “um feixe de ossos. Impaciente como camundongo na ratoeira”81, à espera de seu parceiro.

Como informado no capítulo 1 do presente trabalho, na década de 1930, o jogo era uma atividade permitida. Na ocasião do encontro entre Teixeirinha e Sebastião, os dois planejavam abrir um negócio de jogos nos fundos de um sobrado na rua da Harmonia, longe da elegância dos cassinos da Urca, que à época, recebiam celebridades.

Mas não tinham recursos suficientes. É quando Teixeirinha diz ao companheiro que vai conseguir o dinheiro com Rizoleta, como de costume.

Sebastião hesita, mas se vê compelido a aceitar essa condição;

Sebastião não admitia dinheiro vindo por tal expediente. Era o que sempre condenava no amigo. Condenava, mas perdoava. Perdoava, mas repreendia-o – não estava direito, era indecente, um homem é um homem.

Naquela hora, porém – coisa miserável é a vida” -, ele precisava e precisava muito82.

O decorrer da trama revela que não foi a primeira vez em que a personagem foi oscilante e cruzou os polos da ordem e da desordem influenciado pela situação

80 Lukács, 1968, p. 73.

81 Rebelo, 2012, p. 64.

82 Ibidem, p. 65.

que o sitiava. O narrador relata que Sebastião e Teixeirinha criaram-se juntos em uma casa de cômodos da Vila Isabel. Sebastião, assim como o amigo, era safardana e tivera seus problemas com a polícia. Porém, ao apaixonar-se, casou-se trocando a vida irregular pelo trabalho. Mas “a vida era muito dura para continuar com tais escrúpulos”83.

A própria morte de Sebastião é bastante simbólica em relação aos espaços que ocupa. O homem morreu à entrada de sua casa, num beco do bairro Estácio, mal abriu a porta e caiu. Voltava da sua empreitada noturna, mas morreu durante o dia. A descrição a rotina urbana – bondes solancando e buzinas fonfonando -, contrasta com o fim de sua vida e sugere uma existência desprezível ante o progresso urbano.

83 Rebelo, 2012, p. 86.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de pouco divulgados, os textos de Marques Rebelo constituem uma coletânea importante do Modernismo brasileiro. De maneira singular, o autor carioca imprimiu em suas obras o cotidiano urbano do Rio de Janeiro, retratando não o conceito de “capital maravilhosa”, mas as mazelas do subúrbio e das classes não privilegiadas.

Somente nesse espaço suburbano, na efervescência das ruas cariocas, na simplicidade das casas, nas dificuldades da vida urbana, é que as personagens, também suburbanas, de Rebelo têm razão de existir.

A representação do espaço é feita também de maneira peculiar e marca o estilo desse escritor. Com um viés realista, o autor não se excede na descrição, mas utiliza-a de maneira sucinta e de forma que induza o leitor a compreender, com base na vivência comum, uma realidade maior do que a exposta.

Essa representação espacial, que basicamente gira em torno da rua e da casa, cria diversos polos dentro da obra, tais como o da ordem e da desordem, do trabalho e da vadiagem, da família e da falta de laços afetivos, gerando a aqui denominada dialética do subúrbio.

O enredo em Marafa não gira em torno de uma personagem apenas, mas em personagens mais recorrentes, que surgem, desaparecem e retornam repentinamente, cujas vidas se entrelaçam de alguma forma.

O espaço, assim como outros elementos da narrativa, se relaciona profundamente com as personagens, quer seja influenciando nas suas composições, nas suas ações e escolhas ou no seu estado de espírito. Acima de tudo, as personagens são cerceadas pelo espaço social em que estão inseridas.

Apesar de os distintos núcleos se comunicarem na obra e apesar de as personagens transitarem entre esses polos, nenhuma delas consegue romper e passar de fato e definitivamente para a outra extremidade. Nesse quesito o romance se mostra bastante determinista e um tanto naturalista.

Assim, pode-se concluir que, por sua representação espacial e a relação espaço-personagem, Marafa é uma obra que, bem à frente de seu tempo dá voz às classes sociais desprivilegiadas, retratando-as não como contraponto ou

coadjuvantes, mas como protagonistas de um romance. Trata-se, portanto, de uma obra de denúncia, de engajamento social e emancipatória.

Reconhece-se que as características e finalidade deste trabalho não possibilitam uma análise, a não ser que seja absurdamente superficial, de todos os aspectos de Marafa, ou ainda da representação de todos os espaços e de suas relações com todas as personagens.

Assim, não obstante todas as considerações feitas até aqui, este trabalho não tem como intuito pretender o esgotamento do tema. Ao contrário, por ser Marques Rebelo um autor pouquíssimo explorado na academia, o presente trabalho tem como intuito apenas incitar algumas das possíveis discussões sobre os aspectos da obra do autor carioca.

Partindo da temática da relação-espaço personagem, podem-se buscar outras perspectivas relacionando literatura e sociedade, tais como a representação da mulher, a prostituição, a questão racial e também do imigrante. É possível também uma abordagem puramente estrutural, como a constituição do narrador ou a relação narrador-personagens. Todas essas abordagens podem ser elaboradas individualmente ou em comparação com outras obras, tanto de Rebelo quanto de outros escritores.

Espera-se este estudo instigue os amantes das letras a conhecerem melhor as obras de Marques Rebelo, se não como pesquisadores, ao menos como leitores.

REFERÊNCIAS

Academia Brasileira de Letras. Disponível em:

<http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=568&sid=142.>

Acesso em: 2 jul. 2015.

BOURNEUF, Roland; OUELLET, Réal; PEREIRA, José Carlos Seabra. O universo do romance. Coimbra: Almedina, 1976.

Câmara dos Deputados. Disponível em:

<http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/150572-DECADA-DE-30-SURGEM-OS-VOTOS-SECRETO-E-FEMININO.html.> Acesso em: 22 jun.

2015.

CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1965.

________. “Dialética da Malandragem”. In: O discurso e a cidade. 3 ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades, 1998.

CARPEAUX, Otto Maria. In: REBELO, Marques. Marafa. Rio de Janeiro: Ediouro, 1980.

CASTELLO, J. Aderaldo. A literatura brasileira: origens e unidade. Vol. II. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004.

CASTRO, Ruy. In: REBELO, Marques. Marafa. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.

Orelha.

CLAVAL, Paul. Espaço e poder. Zahar. Rio de Janeiro, 1979.

CUNHA, Bruna Araújo; SIQUEIRA, Joelma Santana. A influência do espaço e do ambiente no romance Amor de Perdição. Revista Contemporâneos, n.9, nov, 2011 – abr 2012. Disponível em:

<http://www.revistacontemporaneos.com.br/n9/artigos/Amor%20de%20Perdicao.pdf.

>Acesso em: 22 nov 2015.

DACANAL, José Hidelbrando. O romance europeu e o romance brasileiro do Modernismo. Em: Aspectos do Modernismo Brasileiro. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1970.

DA MATTA, Roberto. A casa & a rua: Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil.

Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

DE OLIVEIRA, Maria Cleidiane e FREIRE, Manoel. A representação do espaço em Marafa, de Marques Rebelo. XIII Congresso Internacional da ABRALIC – Jul 2013.

Disponível em:

http://www.editorarealize.com.br/revistas/abralicinternacional/trabalhos/Completo_Co

municacao_oral_idinscrito_1047_825bfe49fe9d6354391ef8e5be3f4468.pdf. Acesso em 5 Nov 2015.

DIMAS, Antonio. Espaço e romance. 2 ed. São Paulo: Editora Ática, 1998

FREIRE, Manoel e OLIVEIRA, Maria Cleidiane de. Ordem e desordem: a dialética da malandragem em “Oscarina”. Revista Línguas & Letras – Unioeste – Vol. 15 – Nº 29 – Segundo Semestre de 2014. Disponível em: http://e-revista.unioeste.br/index.php/linguaseletras/article/view/10770/7864. Acesso em 2 Jul. 2015.

KAYSER, Wolfgang Johannes. Análise e interpretação da obra literária:

Introdução a ciencia da literatura. 3 ed. Coimbra: Arménio Amado, 1963.

LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.

LUKÁCS, György. “Narrar ou descrever”. In: Ensaios sobre literatura. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

O GLOBO. Zeppelin atravessa o Atlântico em sete dias e pousa na capital federal. 2013a. Disponível em:

<http://acervo.oglobo.globo.com/rio-de- historias/zeppelin-atravessa-atlantico-em-sete-dias-pousa-na-capital-federal-8891105> Acesso em: 15 jun 2015.

______. Multidão participa da inauguração do Cristo Redentor, no Morro do Corcovado. 2013b. Disponível em: <http://acervo.oglobo.globo.com/rio-de- historias/multidao-participa-da-inauguracao-do-cristo-redentor-no-morro-do-corcovado-8890499>. Acesso em: 15 jun 2015.

______. Aeroporto Santos Dumont é inaugurado na Ponta do Calabouço, em 1936. 2013c. Disponível em:

<http://acervo.oglobo.globo.com/rio-de- historias/aeroporto-santos-dumont-inaugurado-na-ponta-do-calabouco-em-1936-8891113>. Acesso em: 15 jun 2015.

______. Com o jogo legalizado pelo governo Vargas, cassinos vivem anos dourados. 2013d. Disponível em:

<http://acervo.oglobo.globo.com/rio-de- historias/com-jogo-legalizado-pelo-governo-vargas-cassinos-vivem-anos-dourados-9062589#ixzz3sBYI0yjx>. Acesso em: 15 jun 2015.

PAMUK, Orhan. O romancista ingênuo e o sentimental. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

REBELO, Marques. Marafa. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.

SALDANHA, Nelson. O jardim e a praça. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1993.

SOUZA, Rafael Lima Alves de. O Rio de Janeiro do esquecido Marques Rebelo:

uma tentativa de revisão. Disponível em:

<http://www.encontro2012.rj.anpuh.org/resources/anais/15/1338061401_ARQUIVO_

Documentos relacionados