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Outras representações nas culturas infantis em Cabo Verde

3. BREVES TRAÇOS DA INFÂNCIA CABOVERDIANA

4.1 Ténpu sabi, ténpu di mininu : lembranças

4.1.5 Outras representações nas culturas infantis em Cabo Verde

A presença de sonoridades musicais, ritmos e movimentos corporais nas culturas infantis não se restringem às cantigas de roda no arquipélago onde o violão chora e o rufar dos tambores se impregna na Tabanka ou no Kolá San Djon123. Tida como uma das partes constitutivas da identidade caboverdiana, a música traduz as múltiplas representações do caboverdiano e da caboverdiana sobre os mais distintos aspectos da realidade. A prof.ª Lina Rodrigues rememorou momentos em que recriavam os ritmos tradicionais através da improvisação de tambores com bexiga de porco e latas vazias:

Os meninos com bexiga de porco faziam seus tambores. Puxavam a bexiga de porco punham e amarravam com corda numa lata de leite, ou de banha. Tocavam-se tambores nas noites de luar... Mesmo na minha casa [...] não havia gira-discos, nada disso! Então pegávamos latas de petróleo refinado, eram do formato de um prisma reto, alto e quadrado no fundo e em cima. O material era de aço inoxidável [...]. Não tínhamos luz elétrica, vinha petróleo refinado que púnhamos no candeeiro [...] nem se utilizava vela nessa altura, a vela veio muito mais tarde. Utilizavam-se estas latas para carregar água, era pouca gente na cidade que tinha água canalizada. A gente ia ao chafariz e à ribeira buscar água. Utilizávamos esta mesma lata para fazermos músicas: tocávamos, cantávamos e dançávamos.

(Entrevista da Prof.ª Lina Rodrigues, 58 anos)

Como frisou Sarmento (2004), a cultura produzida pelas crianças exprime a cultura societal em que estão inseridas, apesar de o fazerem de uma forma distinta. Todavia, deixam transparecer feitios especificamente infantis de inteligibilidade, representação e simbolização do mundo. Nesse caso o que não necessariamente seja local, como as latas vazias de leite ou petróleo, uma vez que são importadas, acopla-se a cordas e bexiga de porco, resultando na criação de um instrumento musical empregado para recriar música, situação lúdica que se insere na cultura rítmica local das crianças. Na sequência, destaco o que José Pedro Graça e seus colegas faziam na rua onde moravam, interior da ilha de Santiago, imitando uma banda musical cujo gênero musical principal era o Funaná,

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Inventar? Não inventávamos. Outra brincadeira era fazer conjunto musical: confeccionávamos bateria e viola de latas vazias de azeite, e a parte de cima era revestida com sacola plástica ou pele de cabra. Mas esta última, era mais difícil de encontrar. O microfone improvisávamos com latinhas vazias de suco que recolhíamos. Lembro do teclado... Este era feito com latas de banha, sabe aquelas de 25kg? Para o chocalho, utilizávamos latinhas de suco e por dentro colocávamos pedrinhas, ao ser sacudido produzia o som. Normalmente atribuíamos nome de um conjunto musical conhecido do país. Lembro que a minha banda chamava-se Bulimundu, que era nossa referência na época. O ritmo, claro, era o funaná.

(Entrevista de José Pedro Graça, 37 anos)

Diante disto, tem-se algo peculiar das culturas feitas pelas crianças, a saber, a transposição do real imediato e a reconstrução de forma criativa numa interpretação de algo conhecido (SARMENTO, 2004). Não estariam no “mundo de faz de conta” imitando e recriando um agrupamento musical, os Bulimundu, referenciado no país por ter trazido o ritmo Funaná do campo para meio urbano? O processo da recriação envolvia a recolha dos materiais, a construção dos instrumentos musicais e interpretação das composições, resultantes da criatividade que permeia o universo infantil. Na fala do entrevistado percebe-se que a visão do adulto afugenta qualquer ação inventiva nesse processo de recriação quando criança; isso se entende uma vez que o adulto não atribui às significações cotidianas, outros sentidos, como faz a criança na invenção e na recriação (BROUGÈRE, 1998).

No dia trinta e um de dezembro, ou San Silvestre como é conhecido, o pôr-do-sol, por detrás do monte Cara, é aguardado com ansiedade pelas crianças em São Vicente. Nesse dia, acontece o “Rakordai”, uma manifestação cultural feita pelas crianças, em que vários grupinhos saem pelos bairros, de casa em casa, desejando boas entradas às pessoas. Quando batem numa porta, de alguém conhecido ou não, e são atendidos, o grupo entoa:

Rakordai

Nho San Silvestre manda-m ben li n’ex kaza [Sr. São Silvestre mandou-me vir a esta

casa]

Ali na casa do senhor e da senhora

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Para correr mão lá na xav(e) di banbaú [... chave do bom baú] Para tirar uma oferta grandiosa

Para repartir por todos os nossos companheiros

Ô daka, ô daka si bo ti tâ daka [Dê, se vais dar]

Si bo ka ti tâ daka N te manda Jorji pa remetê [Se não, mando o Jorge tomar]

Purk Jorji ê un om(e) de bon konsiénsia [Porque Jorge é um homem de boa consciência] Ondê kel bai el te tra más el te dexá menes [ Aonde chega, tira mais e deixa menos] Y obrigada p’ex oférta grandioza [Obrigada por esta oferta grandioza]

Txgá nôs n’ot óne k’vida ma seúd pe no torná bem [No próximo ano, com vida e saúde,

voltaremos] (LOPES, 2010, p.1).

O cântico, com frases no português e no Ccv, faz-se acompanhar do rakordai124, instrumento confeccionado pelos meninos e pelas meninas a partir de uma ripa de madeira em formato retangular em que se fixam tampinhas amassadas com pregos, e ao ser chocalhado produz uma sonoridade. Ao terminarem o cântico, a casa agraciada deverá entregar uma moeda ao grupo. O que também não deverá faltar nesses grupos é o “Jorji” [Jorge], um personagem que é assumido pela criança mais nova do coletivo, responsável por guardar todo o dinheiro recolhido. Cessa a brincadeira quando o grupo considerar boa a soma coletada, que será gasta em fatiotas [drops, doces, chocolates], e o horário não mais permitir.

O “Rakordai” não é exclusivo das culturas infantis. Durante permanência na cidade da Praia para pesquisa de campo, no último dia do ano, fui surpreendida por um grupo de homens munidos de viola, violino, cavaquinho e chocalho. No quintal da casa deliciaram os presentes, com o som de duas koládera, como tinham feito em várias outras casas do bairro. No final, para não “quebrar” a tradição, foram agraciados com uma soma em dinheiro.

O batizado das bonecas também era bastante comum entre as brincadeiras, envolvendo crianças e adultos, com recriações do ambiente que se vive por essa ocasião, como deixou transparecer a Fátima Bettencourt:

Até batizado de bonecas a gente chegou a fazer, é uma das coisas que os miúdos fazem muito no campo. Há um menino que se faz de padre, há a madrinha e o padrinho [...]. A gente vai em grande cortejo fazendo batizado de bonecas. As merendas eram as festinhas [...] as mães vão sempre ajudando porque é uma área que os meninos não dominam [...]. (Entrevista de Fátima Bettencourt, 71 anos)

124 Na Boavista este instrumento denomina-se de pander, em Santo Antão de pandier e algumas localidades de

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Tal brincadeira pode ser enquadrada nas brincadeiras de dramatização de papéis (CORSARO, 2009), onde os meninos participavam adotando papéis de padre e padrinho das bonecas e as meninas de mães e madrinhas. Os adultos também participavam, não sendo a atividade um reduto infantil. Numa sociedade cristã, de maioria católica, o batismo é muito valorizado e não necessariamente ocorre na pequena infância. O antropólogo Lopes Filhos registrou que:

Quando acontece o baptizando ser uma criança de colo, para além do padrinho e da madrinha há ainda a contra-madrinha, que é encarregada de transportá-lo até à igreja, onde será entregue à respectiva madrinha; daí ser, também, conhecida por madrinha da

porta da igreja (LOPES FILHO,1995, p.36, itálico do autor).

Após a cerimônia os padrinhos, familiares e amigos são recepcionados pelos pais da criança com festa, seguida de músicas e baile. Esse é um tipo de brincadeira, com dramatização de papéis que coloca a criança em contato com os valores e instituições da comunidade.

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