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O Outro que se apresenta para ser criado “Tudo o que não invento é falso.”

Manoel de Barros

O outro, agora, tem a função de estar no lugar e no tempo “certos”, para ser encontrado.

Winnicott sugere que imaginemos uma primeira “mamada teórica” (1999). O bebê em um estado excitado – com fome, por exemplo – tem como expectativa encontrar algo, em algum lugar, que possa aplacar seu desconforto. “Mais ou menos no momento certo, a mãe oferece o seio” (p. 120). Ela, com sua devoção e sensibilidade, está preparada para essa tarefa.

“A primeira mamada teórica é representada na vida real pela soma das experiências iniciais de várias mamadas. A partir dessa primeira mamada teórica o bebê começa a ter material com o qual criar” (p. 126).

Com a repetição dessas impressões sensuais de alimentação e o encontro do objeto procurado, o bebê adquire memória, e com o tempo alcança um estado de confiança de que o objeto vai ser achado; assim,

pode gradualmente suportar a falta do objeto. O conceito de realidade externa começa a surgir; trata-se de um lugar de onde os objetos aparecem e no qual, após, desaparecem.

A primeira mamada teórica coincide com a primeira mamada real, mas não com a experiência real. O bebê, face à sua imaturidade, não tem como significar essa primeira mamada como uma experiência emocional. A importância dessa primeira mamada é que, a partir dela, o bebê instituirá um padrão de relacionamento com seus estados excitados; se tudo ocorreu satisfatoriamente – do ponto de vista do bebê –, um contato pode ser estabelecido.

No momento dessa primeira mamada teórica, o bebê já tem algumas expectativas. Quando as complicações não são grandes, algo muito simples acontece: pela vitalidade do bebê e pelo desenvolvimento da tensão instintual, o bebê começa a ter expectativa de algo, e então há um impulso para encontrar esse algo, um movimento do braço ou da boca em direção ao suposto objeto.

O bebê está pronto para criar, a partir de um estado excitado; a mãe, adequada às necessidades do bebê, oferecendo o seio para ser encontrado, permite a ele ter a ilusão de que foi ele próprio quem criou o seio. Criar é ato diferente de alucinar, pois, para alucinar, é necessária a existência de algo a ser lembrado.

Nessa ocasião, o ser humano está na posição de criador do mundo, movido por suas necessidades pessoais. Só gradualmente, se as necessidades puderem ser atendidas, se dará a possibilidade de desejar.

Winnicott presume que exista uma criatividade potencial; no momento da primeira mamada teórica, o bebê já teria uma contribuição a fazer. O mamilo e o leite seriam o resultado de sua idéia e de seu gesto de ir ao encontro de algo que dará conta da sua necessidade. O mundo é criado de

novo por cada ser humano, e o que ele cria depende em muito do que lhe é apresentado pela mãe nos momentos excitados.

Portanto, se o seio é – ou a mãe é –, o bebê pode ser.

O bebê não sabe que o mundo já existia antes dele. Nesse início, ele tem a ilusão de que tudo o que encontra foi criado por ele; mesmo em estágios posteriores, onde a desilusão já pode acontecer, essa criatividade primária a ele pertencerá – fará parte dele enquanto estiver vivo.

É a mãe adequada quem permitirá ao bebê essa ilusão. A mãe que foi capaz de satisfazer as necessidades mais primitivas do bebê tem agora uma nova função: ir ao encontro de cada momento criativo e do gesto do bebê, e esperar ser descoberta. Independentemente da mamada, é muito importante que o bebê possa achar o seio, “e o que a mãe faz é colocar o mamilo exatamente ali e no momento certo para que seja o seu mamilo que o bebê venha a criar” (p. 123).

Do ponto de vista da mãe, “(...) o que a mãe necessita é da chance de ser natural e encontrar seu caminho junto ao bebê” (p. 125). É ela quem portará as sutilezas de entendimento do bebê, em virtude do seu amor verdadeiro por ele. Isso a capacitará a cuidar do bebê de uma forma pessoal, simples, espontânea, que vai ao encontro de suas necessidades e constitui uma base segura e constante – portanto, confiável. A mãe terá que ter um suporte – o pai –, fundamental para que cuide de seu bebê à sua própria maneira.

A mãe capaz de prover as necessidades de seu filho pode esperar para ser encontrada, e, fazendo isso bem, promoverá, na saída da unidade mãe-bebê, uma breve experiência de onipotência para o bebê – uma sensação de “eu posso”.

Quando Winnicott fala das capacidades adaptativas da mãe, não está se referindo à sua mera aptidão para satisfazer os impulsos orais do bebê,

ao dar-lhe a alimentação adequada. Nesse momento, ela não pode estar no lugar do bebê; se assim o fizer, estará violando as funções de ego da criança, bem como algo que, mais tarde, será guardado como um tesouro – o seu self: centro da personalidade. O autor usa a palavra “core” para denominar centro; mas “centro” na acepção do lugar onde, nas frutas, se localizam as sementes.

O bebê, ao nascer, irá contar com suas capacidades inatas, com sua vitalidade, com sua motilidade e com o ambiente que o acolhe. Esse será seu ponto de partida.

Ele nascerá imerso no ambiente, que irá se tornando seu; é desse seu ambiente que ele emergirá – se tudo correr bem – como pessoa inteira, separada e diferente das outras – ou seja, apto a diferenciar a realidade externa da interna, a operar a integração do self como unidade a partir de um estado de não integração, e a promover o assentamento da psique no corpo.

Quanto mais voltarmos no tempo, ao início de vida de cada ser humano, mais e mais o ambiente será importante, e maior será a relação de dependência. No começo, o ambiente é condição de existência; a dependência é absoluta. Só na maturidade a capacidade de contribuir e responsabilizar-se pelo ambiente será adquirida.

Um bom ambiente é aquele que perdura durante um espaço de tempo; deve se tratar de um ambiente de suporte e amparo, para que o bebê tenha a sensação e a confiança de existir e poder continuar a existir. O ambiente sustentador proporcionará um bom ponto de partida para a vida, em direção à maturidade e, após, à velhice.

Durante toda a vida, até a morte, sempre estaremos frente ao desafio de sermos existentes. Todas as sensações e experiências se dão primeiro corporalmente. Integrar aos poucos a psique e o soma é uma das tarefas do ser humano. A psique é a possibilidade de elaborar imaginativamente as

sensações, e com isso constituir um ponto central, de onde o self irá se desenvolver; um self alojado no próprio corpo. No entanto, isso só poderá acontecer de forma satisfatória com base na continuidade do ser, ou seja, se a continuidade do ser não for interrompida. Isso será garantido, no início, pelo ambiente humano suficientemente bom, o ambiente onde a mãe está presente de uma forma consistente.

Por meio do desejo mágico, o bebê tem a ilusão de um poder criativo mágico; e a onipotência é um fato gerado pela adaptação sensível da mãe. Esse é o alicerce para um gradual reconhecimento da falta de controle mágico sobre a realidade externa.

Se observarmos um bebê, podemos perceber como ele explora esse mundo ilusório, um mundo que não é a sua realidade externa ou um fato externo. Winnicott se refere a esse mundo de ilusão também como “terceiro mundo” (“third world”). Um bebê chupando o dedo, murmurando sons, segurando um pano, está reivindicando um controle mágico sobre o mundo, prolongando a onipotência encontrada e implementada pela adaptação da mãe. A esse estado temporário – em que é permitido ao bebê o controle mágico sobre a realidade externa, um controle possível pela adaptação da mãe, ainda que o bebê não saiba disso –, Winnicott dá o nome de fenômeno transicional. O objeto transicional – ou primeira possessão – é aquele que o bebê criou até que ele possa, um dia, receber um objeto de um outro e se dar conta do limite do seu controle mágico e da sua dependência da boa vontade das pessoas no mundo externo. Entre o mundo subjetivo e o mundo que se pode perceber objetivamente, há esse espaço transicional.

Até então estávamos falando de um período de ilusão, de dependência absoluta, de uma solidão essencial. A partir daqui, trataremos da desilusão, e de como ela vai se operar; é importante que ela se efetive, mas no momento certo para o bebê. Ao período de ilusão onipotente não se retorna; a desilusão é o estado que se perpetua até o fim da vida. A partir da desilusão o bebê evolui de uma dependência, agora relativa, rumo à independência; da transicionalidade ao poder de usar os objetos; do eu/não-

eu para o eu/outro. Do amor primitivo ao concernimento, ao Édipo, à latência, à adolescência, à idade adulta e à velhice.

Mas, paradoxalmente a ilusão já é uma aquisição, e em condições naturais ela também perdurará durante toda a vida, e é importante que assim seja.

o outro Empático às necessidades do bebê – A