• Nenhum resultado encontrado

Um outro olhar sobre a privacidade

3.2. Privacidade: um conceito amplo e confuso

3.2.2. Um outro olhar sobre a privacidade

O comunitarismo surge e desenvolve-se, em especial nos Estados Unidos, como uma reacção contra o crescimento do poder do individualismo. Contrariamente à sociedade liberal que privilegia os direitos e, desse modo, é entendida pelos comunitaristas como desequilibrada, a ideologia comunitarista advoga que uma boa sociedade deve proteger tanto o bem comum como os direitos individuais e assim encontrar o equilíbrio necessário (O’Hara e Shadbolt, 2009). Se na época de Jonh Locke, Adam Smith e Stuart Mill e durante aproximadamente os cento e noventa primeiros anos da história americana, a luta pela expansão da esfera da liberdade individual se justificava plenamente e eram poucas as razões para temer que as responsabilidades sociais fossem abandonadas, segundo os comunitaristas a relação entre direitos e responsabilidades alterou-se de forma drástica na sociedade americana entre 1960 e 1990, assistindo-se a um reforço da autonomia pessoal e do individualismo que provocou uma reacção crescente a partir dos anos 90 para refrear os excessos de individualismo e que conduziu a uma tomada de consciência de que o equilíbrio de direitos com uma nova enfâse nas responsabilidades deve abranger, também, as questões relacionadas com a privacidade (Etzioni, 2012).

Os comunitaristas não se opõem à intromissão naquilo que consideramos as nossas vidas privadas, mas têm pontos de vista particulares sobre o que é legítimo ou não. O controlo governamental é mau, apesar de muitos comunitaristas considerarem que os medos sobre a invasão do governo nas nossas liberdades foram exagerados (O’Hara e Shadbolt, 2009: 160). Para Etzioni (2012) a excessiva defesa da privacidade, os discursos alarmistas de que a privacidade está ameaçada e em perigo e a recusa dos seus defensores em adaptar as suas concepções de privacidade às condições sociais actuais têm tido efeitos negativos e prejudiciais na implementação de algumas políticas públicas de segurança e saúde públicas, entre as quais a instalação de câmaras de vigilância com o objectivo de prevenir a prática de actos delituosos. Numa sociedade livre, para além da privacidade existem outros bens que carecem de ser valorados pois, na prática, é impossível evitar a tensão entre o nosso desejo profundo de privacidade com o nosso desejo crescente por segurança. “Os cuidados de saúde, o ambiente e, claro, a protecção contra o crime e o terrorismo são razões permanentes para a introdução de tecnologias que invadam a privacidade.” (O’Hara e Shadbolt, 2009: 25).

Por outro lado, verifica-se que a reacção às ameaças à privacidade pelo sector privado tem sido muito mais débil por parte da nossa cultura cívica, das nossas políticas públicas e das nossas doutrinas jurídicas que a reacção às ameaças provenientes do Estado que, tradicionalmente constitui o inimigo mais temido para os defensores da privacidade, mas que

68 ao mesmo tempo também tem um papel activo na protecção da privacidade. Efectivamente, o sector privado tem recolhido, armazenado e transaccionado um conjunto de dados sobre muitos aspectos da vida privada de milhões de indivíduos em todo o mundo (Etzioni, 2012). A informação constitui uma fonte de poder e um recurso essencial para as organizações. Daí que a recolha de informações sobre as pessoas, isto é, de dados pessoais seja, hoje, considerada essencial para a eficiência das suas actividades. “Os serviços da administração do Estado, bem como grandes empresas e instituições financeiras, recolhem informações sobre as pessoas e com elas constituem grandes bases de dados pessoais, necessárias ao cumprimento das suas atribuições.” (Vaz, 2007: 51). Nessa medida, o grande problema, centra-se na utilização das informações pessoais para a construção de perfis individuais ou de grupo, cuja utilização e transmissão escapa, na maioria dos casos, ao controlo dos titulares, dado que raramente o cidadão tem a capacidade de perceber o sentido e o verdadeiro alcance da colecta de dados e a real capacidade que as organizações complexas detêm para promover o tratamento dos mesmos e, sobretudo, a perigosidade que pode envolver a posse e o tratamento dos dados por parte dessas organizações. Para termos uma noção dessa realidade bastará pensarmos nos grandes grupos económicos que agregam actividades diversificadas (bancos, seguros, agências de viagens, clínicas de saúde) e no manancial de informações sobre os cidadãos que essas mesmas actividades lhes poderão proporcionar. “As empresas recolhem rotineiramente mais dados do que precisam, mantêm-nos não encriptados e mesmo sem a básica protecção de uma palavra-passe, e fazem-no por demasiado tempo.” (O’Hara e Shadbolt, 2009: 21).

Uma sociedade equilibrada não pode para Etzioni (2012) privilegiar automaticamente um valor fundamental sobre outro, conferindo-lhe o estatuto especial de um bem absoluto, pelo que se impõe que a privacidade seja encarada como um direito individual que deve equilibrar- se com os interesses do bem comum, ou como um bem entre outros, sem privilegiar nenhum deles à partida. Este equilíbrio deve ser alcançado no contexto das condições históricas e sociais de uma sociedade concreta muito mais que em teorias ou modelos abstractos. Para tanto, o autor define quatro critérios para, a partir da análise concreta de determinada política pública ou medida social, aferir se a privacidade e o bem comum estão em desequilíbrio e que tanto podem ser usados para determinar se a privacidade é excessiva como para fundamentar a adopção de medidas de reforço da privacidade. Estes critérios devem ser aplicados sequencialmente e só as políticas públicas e as medidas sociais que satisfaçam o primeiro critério devem ser analisadas à luz do segundo e assim sucessivamente.

69 De acordo com o primeiro critério, uma sociedade equilibrada e comunitarista apenas poderá limitar a privacidade perante uma ameaça concreta ao bem comum “bem documentada e macroscópica” em relação não só à ameaça mas, também, ao alcance das consequências esperadas e não apenas em presença de um mero perigo hipotético. O segundo critério impõe que uma sociedade equilibrada, perante a ameaça de um perigo concreto e macroscópico, apenas adopte medidas restritivas da privacidade depois de esgotadas outras medidas adequadas a fazer face a esse mesmo perigo. O terceiro critério implica que uma sociedade equilibrada deve esforçar-se para que, em caso de necessidade de adopção de medidas lesivas da privacidade, estas sejam o menos intrusivas possível. Por último, de acordo com o quarto critério, aquelas medidas que tratam dos efeitos secundários das medidas que restringem a privacidade são preferíveis àquelas que não tenham em conta tais efeitos. Esta teoria reconduz-nos para uma nova e diferente concepção da privacidade “que proporciona sistematicamente um equilíbrio entre direitos e bem comum.” (Etzioni, 2012: 23).

Apesar de ter o mérito de nos fazer reflectir sobre os pressupostos do Estado liberal de direito e, sobretudo, sobre a noção individualista que está na origem do direito à privacidade; a buscar um correcto equilíbrio entre privacidade e bem comum; e a reflectir sobre a regulação das actividades de recolha de dados e de vigilância exercidas pelo sector privado, esta teoria não está isenta de críticas como, aliás, o reconhece o próprio autor. No entanto, apesar de ter sido publicada há mais de uma década e poder ser considerada controversa, a teoria desenvolvida por Etzioni ainda mantém actualidade no debate contemporâneo sobre a privacidade. (Agustina, 2012: xviii).

Existem evidentemente muitas boas razões que sustentam a necessidade de usar todas as oportunidades oferecidas pelas novas tecnologias para proteger a sociedade dos crimes, fomentar a prevenção das doenças, proteger os mais vulneráveis dos riscos sociais. Deve-se buscar um justo equilíbrio entre uma visão individualista da privacidade e a satisfação de exigências sociais, como ressalta o maior teórico do comunitarismo americano, Amitai Etzioni (Rodotà, 2008: 147).