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4.2 Aproximando as lentes: trajetórias em movimentos e os

4.2.3 Outros grupos, novas articulações: o acesso à rede ecológica pela

Liomar de Souza é atualmente proprietário de um restaurante de alimentos ecológicos no centro da cidade de Pelotas. Filho de agricultor, saiu do meio rural em função do ingresso na Universidade Federal da cidade. Ao longo do curso de Ciências Domésticas, especificamente em uma disciplina que chamavam educação do consumidor, a gente começou a se perguntar se não haveria outra forma de trabalhar a consciência do consumidor.

Nesta época as feiras estavam iniciando na cidade, eles começaram em novembro de 95, aí em 96, com esse olhar mais ecológico, a gente começou a se questionar dessa questão do lixo, por exemplo. Orientado pela professora Helga, Leomar começa a fazer parte do projeto de extensão que ela coordenava. Em parceria com as entidades religiosas e os grupos de agricultores, o projeto tinha como foco de trabalho de conscientização dos consumidores. Para isso, o grupo de alunos, ou militantes como Helga os

denomina, se aproximam do trabalho realizado pela cooperativa COOLMÉIA. Em visitas a lojas e feiras da cooperativa o grupo realiza diversos cursos de formação. Da experiência com a cooperativa de Porto Alegre, o grupo de estudantes e consumidores projetam as ações para desenvolverem o trabalho na cidade de Pelotas.

Liomar participa ativamente da construção do espaço dos consumidores nas feiras ecológicas na cidade de Pelotas. Na parceria com integrantes da cooperativa COOLMÉIA, Leomar e outros colegas montam a banca dos consumidores na feira.

[...] aí tu começa entra nesse meio de vivência essas coisas com o pessoal que vinham de Porto Alegre os da COOLMEIA que eles vinham uma vez por semana para ajudar a fazer a feira ecológica e aí nós começamos a fazer a feira ecológica também com o mural do consumidor a gente fez um mural de junco e PVC e colava os cartazes tipo orientação sobre alimentação sobre meio ambiente essas coisas assim que achava que interessava pra esse tipo de consumidor para essas pessoas que estavam se envolvendo com esse consumo [...] (LIOMAR, operador do comércio).

Com a experiência nas feiras, após um ano, um ano e meio de trabalho, o grupo de consumidores percebem a necessidade de dar um melhor aproveitamento para esse alimento, porque a gente começou a ver muita sobra de alimento na feira. Segundo Liomar, o processo de compreensão do significado e da importância desta produção o sensibilizou a ter certo compromisso com esse produto.

Liomar e um grupo de amigos abrem, então, um entreposto de produtos ecológicos no centro de Pelotas. Tem-se, neste momento, o nascedouro da cooperativa de consumidores Teia Ecológica. Entre os anos de 97 e 98, o grupo inicia no entreposto, além da venda de produtos ecológicos, um pequeno restaurante com produtos dos agricultores locais.

[...] e aí começou essa função com o restaurante, com essa relação com os agricultores e cada vez a gente vai se comprometendo mais não sei também se é porque eu sou filho de agricultor, aí meus pais são pequenos agricultores né, a minha irmã ainda é, ela vive no campo, aí a gente vai se sensibilizando assim com esse trabalho, porque ele é um trabalho muito de comprometimento né depois que tu entra assim é difícil de tu dar pra trás, porque é um trabalho que [...] precisa fazer e tu tem que ter uma visão, um sentimento de compromisso pra tu fazer esse trabalho, porque esses produtos são... tem as épocas, são produtos de épocas então tem épocas que não

tem o produto, tem época que vem o produto com problema de bicho aí tu tem que tá tirando o bicho, tem que tá tirando a parte estragada tem que sempre assim, tu não pode discriminar o produto, assim ó, porque tá feio não pega na feira, porque o agricultor ele sempre traz o melhor que ele pode, obvio que é um produto que ele quer vender né, e esse comprometimento ele cada vez vai aumentando mais né [...] (LIOMAR, operador do comércio).

A organização da Cooperativa de Consumo, Trabalho e Produção Teia Ecológica LTDA. se formou a partir do modelo da cooperativa de Porto Alegre, sendo que o associado poderá ser trabalhador, produtor ou consumidor na Cooperativa33. A cooperativa foi fundada com quarenta e três associados. Um dos objetivos que se colocou na formação da cooperativa é a defesa, divulgação e aplicação dos princípios cooperativistas, trabalhando a cultura ecológica, visando a defesa e bem estar econômico, social e de saúde de seus associados, comunidade e da natureza como um todo.

Neste modelo de organização o estatuo frisava a participação dos três tipos de associados da cooperativa em todas as instâncias de ação. Enquanto proposta de ser um espaço de formação além de comercialização, os associados tinham enquanto deveres auxiliar nos cursos ofertados pela cooperativa e propor ações educativas em outras instâncias além da cooperativa. Além disso, havia reuniões da cooperativa nas quais os associados deveriam participar. Nesse sentido, associar-se à cooperativa exigia um estar junto, um estar presente ao trabalho cotidiano. Unir as diferentes pontas da rede era, para o grupo de consumidores/militantes, a possibilidade de colocar em prática o projeto de um trabalho coletivo, mas a prática cooperativa é bem diferente de uma estrutura que tem o nome cooperativa a prática é diferente a questão da cooperação e da multiajuda.

[...] O trabalho de cooperativa eu adorava assim as relações que a gente constrói nesse tipo de trabalho e tal, mas a cooperativa é uma estrutura alternativa dentro de um sistema convencional, então isso é uma dificuldade muito grande que a gente encontrou. Então, enquanto é uma coisa mais artesanal fica tranquilo, mas aí quando começa a ficar mais sério que começa a circular mais dinheiro, mais nota e mais compra começa a ficar mais complexa a organização [...] (LIOMAR, operador do comércio).

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Trecho sobre a organização e estrutura da cooperativa foi retirado do Estatuto da referida Cooperativa.

Liomar conta que a intenção do grupo era aproximar os diferentes trabalhos e atores da rede ecológica através do cooperativismo. Nesse sentido, era necessário ter um comprometimento dos diferentes tipos de associados com as atividades da cooperativa. Além disso, ao passo que o trabalho da cooperativa foi aumentando, a burocracia do gerir o negócio aumentou também.

Em meio aos entraves de organizar-se na forma de cooperativados, uma das dificuldades que Liomar aponta era a resistência de conseguir incorporar o consumidor nas ações da cooperativa. Em inserções pontuais, poucos consumidores participavam ativamente das reuniões, cursos e oficinas de formação por dentro da cooperativa.

[...] depois houve uma série de conflitos ali nesse trabalho de cooperativa, porque a gente sempre se empenhou muito na questão de fazer o trabalho e essa parte burocrática a gente sempre deixou muito pra trás, aí isso foi virando um rolo tão grande que pra mim virou um estorvo assim na sequência [...] (LIOMAR, operador do comércio).

Ainda pautado na perspectiva de trabalhar com a agricultura ecológica, Liomar monta seu próprio negócio. Após, aproximadamente, dez anos de trabalho na cooperativa, exercendo funções principalmente na cozinha do restaurante, Lili decide abrir outro restaurante ecológico no centro da cidade de Pelotas. Além dos alimentos utilizados no cardápio serem da produção local, há a inserção de carnes e peixes no cardápio além das hortaliças e verduras.

[...] mas bueno, aí houveram os conflitos e aí isso fez com que eu decidisse de montar o meu negócio, eu consegui essa casa aqui, aluguei, aí eu tinha uma outra casa minha que eu vendi comprei o material todo e botei o restaurante faz três anos, aí aqui a gente abriu com essa opção de carne e peixe. Então acabou dobrando o consumo com esses alimentos né, porque agora tem dois espaços, então eu acho que a gente cresceu nesse aspecto do comércio né [...] (LIOMAR, operador do comércio).

Nesse sentido, apesar das dificuldades enfrentadas na forma de cooperativa, Liomar continuou acreditando na proposta do restaurante, afinal eles só plantam se tiver quem consuma. Apesar de parte de sua trajetória se constituir no meio rural, Liomar conta que foi o trabalho no restaurante e a proximidade com a produção ecológica que o sensibilizou em relação ao

alimento. Apesar de serem poucos produtos ofertados e, às vezes, o alimento não ter uma compatibilidade estética com o convencional, a importância que se dá a este alimento está no valor que tu dá para ele.

[...] tem uma garota que planta três hectares de pera orgânica, ela bem jovem assim, e as peras dela tudo cheia de problema num olhar convencional, mas num olhar assim ecologista, para um ecologista, aí aquilo ali tem valor né [...] então isso que eu acho que é um processo de conscientização [...] (LIOMAR, operador do comércio)

A partir de um cardápio desenvolvido com aquilo que tem, o restaurante ecológico configura uma proposta de organizar-se em torno dos alimentos das estações do ano. Não é desses tipos de cardápio que tu decide o que quer vai ao supermercado e deu, o que orienta a gente não é o que quer fazer é o que tem na feira, a gente sempre parte do que tem. Definindo-a enquanto uma cozinha mais artesanal, o restaurante ecológico dá muito mais mão de obra, exige muito trabalho daqueles que preparam o alimento. Entretanto, Liomar conta que é um trabalho prazeroso, a gente tá sempre aprendendo, de vez em quando vem uns alimentos com bicho, se fosse em outro restaurante ia acabar colocando fora.

[...] então tudo que tem que envolver concentração assim de estar presente parece que é mais dificil, tu se tu não tem necessidade de comprar esse tipo de comida, tu pode comprar comida em qualquer lugar em qualquer horário, agora se tu tem consciência de comprar alimentos ecológicos, tu vai ter que ir nas feiras, tem o dia certo, tem a hora certa, se tu quer determinado produto na época da escassez tu tem que ir bem cedo então acho que tudo isso aí envolve um estar presente e acho que isso que é dificil na nossa mudança, isso aí envolve um trabalho, aqui tudo é mais trabalhoso, nessas coisas, esse alimento para preparar, é tudo mais trabalhoso, para comprar, para plantar, olha aí a trabalheira que é, mas é o preço né, é a vida, mas vale a pena, isso aí é uma coisa maravilhosa. [...] (LIOMAR, operador do comércio).

Na trajetória de Lili, este processo de reeducação em relação ao alimento se formula a partir da experiência cotidiana com o seu beneficiamento e também através dos cursos ministrados no tempo em que esteve presente na Cooperativa Teia Ecológica. Para o interlocutor, a relação com o alimento ecológico transforma as escolhas no sentido de que ao invés de consumir a partir da aparência do produto ela se transfere para o conteúdo dos alimentos.

Numa relação intermediária entre consumo e produção, o trabalho de Liomar no restaurante aciona a possibilidade de troca entre os diferentes componentes da rede, principalmente no que se refere a definição da produção dos alimentos. Então acho assim, tem esse feedback no trabalho do restaurante, tu prepara serve se a pessoa vai comendo eles vão produzindo. Além disso, Liomar compreende o trabalho na cozinha como a possibilidade de ser um tipo de vitrine dos alimentos da agricultura ecológica. Vai dando um corpo assim para o trabalho, visibilidade né, que se eles venderem tudo de atacado não vão enxergar né e aqui as pessoas vem experimentam, comem.

Com cerca de quatro anos de funcionamento, o trabalho no restaurante vai bem. Liomar compreende que nesse tipo de trabalho se tu não te doar de coração tu não vai para frente. Assim, apesar de sua saída da cooperativa, o cozinheiro e também proprietário do restaurante decidiu seguir trabalhando com a alimentação ecológica, afinal depois que tu entra e te compromete aí tu não sai mais. Além disso, esse é um trabalho em movimento, ele já é uma coisa tão estruturada tão enraizada que se eu sair entra outro e parar, ah não vai parar mais, a tendência é só crescer mesmo.

4.3 E A REDE (CONTINUA) EM AÇÃO: ENTIDADES, CONTROVÉRSIAS E A