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3 PORTUNHOL NA ESCRITA E ESCRITURA EM PORTUNHOL: A

3.2 Portunhol na escrita a partir do olhar teórico da Semântica da Enunciação

3.2.1 Enunciação e(m) portunhol

3.2.1.1 Outros lugares de dizer: a polifonia na enunciação

O fenômeno da polifonia chamou a atenção de diversos estudiosos, colocando em questão a identidade do sujeito enunciador ao evidenciar as diferentes instâncias enunciativas instauradas em um texto. Jaqueline Authier-Revuz, por exemplo, tratou desse fenômeno ao ocupar-se da heterogeneidade mostrada do discurso (FIORIN, 2010).

Segundo Fiorin (2010, p.62), “a questão da polifonia concerne ao fato de que várias vozes se apresentam no interior de um discurso. Essas vozes aparecem objetivadas ou não.”. Ao discorrer sobre a responsabilidade pelos enunciados, distingue níveis de produtores, quais sejam o enunciador, o locutor e o narrador.

De acordo com o linguista, quando um enunciado é produzido, podem ser incorporados enunciados de outros sujeitos. Desse modo, a partir de um mesmo enunciado, é possível identificar diferentes responsáveis pela enunciação. Nesse sentido, Fiorin (2010) estabelece a seguintes categorias, distanciando-se explicitamente da posição de Ducrot:

Narrador e interlocutor são instâncias que tomam a palavra, que falam, que dizem eu. Locutor é a voz de outrem que ressoa num enunciado de um narrador ou de um interlocutor. Assim, o locutor é a fonte enunciativa responsável por um dado enunciado incorporado no enunciado de outrem. (FIORIN, 2010, p.70)

A partir do exposto, percebe-se que o que para Ducrot seria a figura do locutor, para Fiorin, surge sob o nome de narrador. A fim de explicitar tais diferenças, Fiorin (2010) toma o exemplo do discurso indireto. Para ele, este consiste em um enunciado em que, no interior da fala de um narrador, subsiste a fala de um locutor.

Além disso, relaciona a noção de locutor com os diferentes fenômenos que Authier-Revuz denomina heterogeneidade mostrada, destacando o caso das palavras entre aspas: “Nesse caso, não há uma ruptura sintática entre o discurso citante e o citado. Apesar disso, a palavra entre aspas não pertence a quem pronuncia, mas a um locutor.” (FIORIN, 2010, p.70-71). Segundo esclarece, trata-se de palavras cuja responsabilidade não pode ser imputada àquele que chama de narrador.

De acordo com Fiorin (2010), a heterogeneidade é um modo essencial de funcionamento do discurso54, tomado como espaço de conflito e homogeneidade, de

concordância e discordância, constituído por diferentes vozes e instâncias enunciativas.

Entre as formas de manifestação da heterogeneidade, destaca-se o discurso reportado, em que uma enunciação é incluída em outra, havendo um discurso citante e um discurso citado. O discurso direto, por exemplo, é uma das modalidades tradicionais de discurso reportado em que “o narrador delega voz a um actante do enunciado. Possui duas instâncias enunciativas, dois níveis de eu: o do narrador e do interlocutor.” (FIORIN, 2010, p.72). Em se tratando do discurso direto na escrita,

54 Para Fiorin (2010, p.30), o discurso constitui “um todo de significação. [...] Considerado como totalidade, o discurso é constituído pela enunciação.”.

caracteres como dois pontos e o travessão, dois travessões ou aspas, marcam onde inicia um discurso e termina o outro.

A propósito das marcas que assinalam a heterogeneidade enunciativa, trazemos algumas considerações de Authier-Revuz (1990, p.25), a respeito das formas de “heterogeneidade mostrada”, assim denominadas por “inscreverem o outro na sequência de discurso.”. Entre essas formas, menciona o discurso direto, as aspas, formas de retoque ou de glosa, a ironia, etc.

Entre os modos de inscrição do outro na cadeia discursiva discutidos por Authier-Revuz (1990), destacamos a autonímia simples, em que ocorre uma ruptura sintática. Nesta situação

O fragmento citado no interior de um discurso relatado direto ou introduzido por um termo metalinguístico (a palavra, o termo, a expressão, a fórmula “X”), nitidamente delimitado na cadeia discursiva, é apresentado como objeto; é extraído da cadeia enunciativa normal e remetido a outro lugar; aquele de um outro ato de enunciação (Z disse: “X”, na expressão de Z, “X”) [...] (AUTHIER- REVUZ, 1990, p.20)

Em acréscimo à autonímia simples, tem-se o que a linguista chama de “conotação autonímica”, isto é, quando “o fragmento mencionado é ao mesmo tempo um fragmento do qual se faz uso: é o caso do elemento colocado entre aspas, em itálico ou (às vezes) glosado por uma incisa.” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p.29).

Nas formas de autonímia descritas, ao mesmo tempo em que se assinala explicitamente a inserção de um fragmento atribuído a outro sujeito, este é evocado, remetendo a uma exterioridade. A entrada de outra língua, outro registro, outra palavra, por exemplo, interferem na enunciação como um “ponto de heterogeneidade”, nos termos de Authier-Revuz (1990, p. 30). A localização deste ponto tem como efeito uma diferenciação em relação ao restante da cadeia, pois, delimita-se um “corpo estranho”, revelador de uma dada relação com o outro.

Tais formas de polifonia, isto é, as determinadas por Fiorin (2010) e Authier- Revuz (1990) e aqui retomadas, ajudam-nos a identificar outros modos de manifestação do que compreendemos como a divisão do sujeito. Pois, de acordo com a Semântica da Enunciação, o sujeito assume a palavra enquanto falante em um dado

espaço de enunciação, um espaço de relação entre sujeitos e línguas, sendo, por isso, determinado pelas línguas que fala.

No caso da distribuição das línguas operada no espaço das publicações analisadas, sujeitos estão representados como origem dos dizeres em portunhol na enunciação. Ao mesmo tempo, as publicações organizam outras vozes, mobilizam figuras que enunciam em outras línguas, como o português e o espanhol. O próprio locutor, falando a partir de lugares sociais, divide-se ao mobilizar mais de uma língua em diferentes textos. Estes nos mostram modos de entrada nas línguas e das línguas em um espaço de enunciação, sinalizadas nas “marcas” produzidas na escrita, isto é, pelo emprego de sinais gráficos como as aspas, uso de itálico ou outros recursos que revelam formas de “heterogeneidade mostrada”.

Tal distribuição nos remete à complexidade das relações linguísticas fronteiriças, às disputas entre línguas e falantes constitutivas dos espaços de enunciação, em que se produz uma clivagem específica a qual possibilita a emergência de uma escrit(ur)a em portunhol. A seguir, passamos a melhor definir esta última noção, fundamental para entender o portunhol na perspectiva teórica a que nos filiamos.