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TEOLOGIA DE PAUL TILLICH PARA A LEITURA DE CLARICE – UMA PROPOSTA DE TEOLOGIA DA LITERATURA

3.4 Outros temas de “A via crucis do corpo”

Os temas dos contos seguintes serão analisados sem a preocupação de um agrupamento ou de uma sintonia temática, abordando assim os assuntos que se apresentam de maneira mais singular no livro ―A via crucis do corpo‖.

Ainda assim o princípio de análise continua sendo o mesmo, buscar-se-á entender o que há de religião na expressão cultural de Clarice Lispector aplicando nos contos o conceito de coragem de ser de Paul Tillich.

3.4.1 “Ele me bebeu”

O conto ―Ele me bebeu‖ narra a história de Aurélia do Nascimento, que era amiga de seu maquilador, Serjoca.

É. Aconteceu mesmo. Serjoca era maquilador de mulheres. Mas não queria nada com mulheres. Queria homens. E maquilava Aurélia Nascimento. Aurélia era bonita e, maquilada, ficava deslumbrante. Era loura, usava peruca e cílios postiços. Ficaram amigos. Saíam juntos, essa coisa de ir jantar em boates (VCC, p.41).

O conto aborda um determinado evento no qual conheceram um homem, pelo qual ambos demonstraram interesse. Conheceram o homem na mesma ocasião, enquanto esperavam inutilmente por um táxi. Depois de o conhecerem passam a se encontrar com ele, sempre os dois juntos como bons amigos, sem que se diga diretamente que estão disputando a atenção dele.

Quando a personagem Aurélia do Nascimento percebe que Serjoca havia conquistado o homem o qual ela tinha interesse, se sente desconsolada. O sentimento dela é piorado pelo fato de ter pedido para que Serjoca a maquilasse antes de um encontro com tal homem. Entretanto, Serjoca pareceu não fazer a maquilagem como costumava fazer, ou seja, deixando-a mais bela. A impressão que Aurélia teve foi que, com a maquiagem, Serjoca havia lhe tirado a beleza, nos termos usados no conto é como se Serjoca tivesse

―bebido‖ a beleza de Aurélia, colocando-a assim em situação desfavorável na disputa pelo homem.

A narrativa conta que Aurélia:

Sentiu-se mal. Pediu licença e foi ao banheiro para se olhar ao espelho. Era isso mesmo que ela imaginara: Serjoca tinha anulado o seu rosto [...] ele está me bebendo, pensou, ele vai me destruir. E é por causa do Affonso. [...] Serjoca marcou encontro com Affonso para a noite [...] chegou em casa tomou um longo banho de imersão com espuma, ficou pensando: daqui a pouco ele me tira o corpo também. O que fazer para recuperar o que era seu? A sua individualidade? [...] foi ao espelho. Olhou-se profundamente. Mas ela não era mais nada. [...] no espelho viu um rosto humano, triste, delicado. Ela era Aurélia Nascimento. Acabara de nascer. Nas-ci-men-to (VCC, p.44).

O sentimento de Aurélia do Nascimento passa por duas etapas. Primeiro com relação à decepção com sua própria imagem, com aquilo que ela fitava de fronte ao espelho. Em segundo lugar ela sente que confiou erroneamente em Serjoca para ficar bela o suficiente para conquistar tal homem, e de fato não conseguiu conquistá-lo.

Há uma forte tomada de consciência mostrada pela narradora do conto: Aurélia nasce novamente. Esse nascer que Aurélia do Nascimento experimenta está relacionado com o vazio que ela encontra em sua existência quando se vê condicionada pelo talento de Serjoca para parecer mais bela. Aurélia perdeu uma disputa e nesse momento percebeu que tinha perdido também o entendimento de quem ela própria era. O conto diz que ―ela não era mais nada‖. O vazio que Aurélia do Nascimento sentiu na derrota deu-lhe a possibilidade de refletir sobre seu próprio ser e lhe deu a perspectiva de um novo nascimento.

O novo nascimento de Aurélia do Nascimento é uma forte expressão da coragem de ser. É o momento no qual o ser humano se encontra com o nãoser. Por mais que pareça fútil dizer que há um encontro com o nãoser na situação específica de Aurélia do Nascimento, personagem que vive um drama relacionado à imagem de seu rosto e do seu relacionamento com seu maquilador, é essencial que se entenda que também esses momentos de aparente futilidade proporcionam o fator de percepção da própria existência que leva em conta a participação do nãoser, do vazio e do desespero no ser humano. A coragem de ser se dá sempre em detrimento de algo, a coragem aparece em relação a

alguma coisa. No caso de Aurélia do Nascimento a coragem de ser apareceu a partir de sua situação particular, de sua relação com seu maquilador, e exatamente nessas circunstâncias o vazio e o desespero humano se tornou para um objeto experienciável.

3.4.2 “Praça Mauá”

O conto ―Praça Mauá‖ fala sobre Luísa, uma dançarina de cabaré e prostituta. Nessas funções era conhecida como Carla. Luísa era uma mulher casada, mas que pouco se relacionava com seu marido. Ele trabalhava de dia, enquanto ela dormia, e ela trabalhava de noite, enquanto ele dormia. Com o que ganhava no cabaré Luísa comprava roupas, jóias, e outros artigos de sua vontade.

O ponto alto deste conto acontece no cabaré que Luísa trabalhava. Lá ela tinha um amigo, ao que indica travesti. Esse amigo era Celsinho, conhecido no cabaré como ―moleirão‖.

– você, vociferou Celsinho, não é mulher coisa alguma! Nem ao menos sabe estalar um ovo! E eu sei! Eu sei! Eu sei! Carla virou Luísa. Branca, perplexa. Tinha sido atingida na sua feminilidade mais íntima. Perplexa, olhando para Celsinho que estava com cara de megera [...] ficou de pé, de preto, na Praça Mauá, às três da madrugada. Como a mais vagabunda das prostitutas. Solitária. Sem remédio. Era verdade: não sabia fritar um ovo. E Celsinho era mais mulher que ela. A praça estava às escuras. E Luísa respirou profundamente. Olhava os postes. A praça vazia. E no céu as estrelas (VCC, p.64-65).

A perplexidade que atingiu aqui a personagem Luísa está diretamente relacionado com o choque que a mesma teve ao compreender sua própria posição no mundo. O que Celsinho disse para ela a impactou profundamente por ser verdade, mas não uma verdade evidente para ela, e sim algo que ela não tinha conhecimento ou não dava importância em sua vida. Quando ela ouve que não sabe estalar um ovo não se ofende por isso, mas sim pelas conseqüências gerais que tal afirmação indica. É trazido à tona a limitação de sua vida, inclusive sua limitação enquanto mulher. A personagem sofre de um colapso de auto- compreensão. Além disso o fim da narrativa nos mostra que a questão da sua limitação existencial é aberta. Quando ela percebe que possui limitações que podem ser ditas contra ela, então se sente mal, e percebe o mundo ao seu redor. A personagem percebe a noite, a

praça e o céu estrelado. Ou seja, ela se vê dentro de um contexto mais amplo do que aquele que anteriormente via.

3.5 Conclusão do capítulo: o existencialismo como chave de leitura da religião na