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Essas imagens representam dois momentos distintos no bairro de Anhumas. A imagem do lado esquerdo reporta-se à máquina de costura utilizada por uma moradora para uso doméstico. Essa moradora é uma antiga meeira que, quando se deslocou para o bairro costurava suas roupas e de sua família em casa, no seu ambiente doméstico. Podemos atentar também para a marca da máquina de costura – Singer – que nos remete ao modo de vida rural antigo, já conectado ao desenvolvimento das forças produtivas. Inventada no fim do século XIX, antes de 1913 a máquina de costura era importada, depois sua produção foi internalizada no Brasil e em 1955 a indústria foi erguida em uma antiga fazenda que fora comprada no município de Campinas, SP. A diferença que estamos procurando destacar é justamente na forma de uso dessa máquina. Inicialmente, seu uso era circunscrito ao âmbito doméstico e familiar, para atender às necessidades de vestimentas da família, como as necessidades básicas. Na imagem do lado direito, no entanto, registramos outra máquina que está em uso por outra moradora. Essa outra moradora, também é oriunda do meio rural, no passado morava em seu sítio com o marido, mas o medo da violência e a distância de um “centro comunitário” levou-os a procurar um lugar com mais movimento e acesso aos ônibus circulares, estabelecendo sua residência no bairro de Anhumas. Nesse caso, a senhora e sua filha trabalham durante todo o dia em casa, costurando vestidos de bonecas para entregar em uma fábrica localizada em Laranjal Paulista. Não possuem registros em carteira de trabalho, recebem de um atravessador o tecido como matéria prima, e em troca de cada peça pronta, recebem um valor em dinheiro. Muitas moradoras do bairro realizam essa atividade, costuram em casa e recebem da fábrica um valor ínfimo por produção. Anhumas/Piracicaba-SP, 22/05/2012. Por Alice Miguel de Paula Peres.

3.2 Os loteamentos

Para explicar os loteamentos das terras no bairro de Anhumas vamos considerar alguns aspectos. Como vimos, antigos sitiantes foram vendendo parte de suas terras como única alternativa para o pagamento das dívidas acumuladas, em razão ora da perda de safra, ora pela dependência de um padrão tecnológico que se modificara. Nesse movimento, alguns venderam o que denominaram vender partilha, e construíram suas casas nas vilas. O que salientaremos a seguir são alguns outros efeitos desse processo.

Ao realizar a pesquisa descobrimos que partes das terras das propriedades também foram compradas por antigas famílias de meeiros que trabalhavam nas fazendas vizinhas. Portanto, as mudanças na configuração social do bairro de Anhumas, no início, deram-se por meio da coexistência de dois processos: ao mesmo tempo em que as leis trabalhistas, sem reforma agrária, expulsaram os meeiros das fazendas; a modernização da agricultura encolhia a capacidade de reprodução social dos sitiantes tradicionais, que, para sobreviverem, vendiam parcelas de suas terras na forma de lotes. Nesse contexto, as famílias de antigos sitiantes e de meeiros, ao contrário de migrarem para a cidade, optaram por permanecerem no meio rural. Podemos dizer que no bairro de Anhumas os brilhos da cidade não atraíram parte de uma população tradicionalmente rural. Dona Rosalina nos oferece seu testemunho de quando trabalhou com sua família de meeiros em uma fazenda.

Dona Rosalina: Nasci aqui mesmo, na fazenda seguinte. Sabe aquela colônia que

tem ali embaixo, naquele alojamento? Então. A gente aqui chama de Jiboia. Até você está passando no meio da pista, você vai ver. Tem um calipiá, depois bem na curva tem umas árvores. Bem ali, tinha uma casa, eu nasci bem ali. Dali fui embora pra uma fazenda que chama fazendinha, lá pra cima. Daí fui criada nessa redondeza. Daí, quando eu estava com dezenove anos fui embora pra cidade. Morei três anos. Daí casei e voltei pra cá de novo. [...]

Alice: E eles eram donos da terra?

Dona Rosalina: Não, Não. Eles eram empregados. A fazenda era do Nicola do

Marco, que era o patrão. E depois, na outra fazenda que eu fui criada, era Bento Dias Gonzaga. [...]

Alice: E lá o pai da senhora fazia lavoura?

Dona Rosalina: Lavoura. Trabalhou como meeiro lá muitos anos. De lá que nós

saímos, foi embora no último ano. Só que daí parou de fazer lavoura e daí nós trabalhávamos na de café. Daí, ele começou a plantar café e daí depois nós fomos embora. Daí meu pai vendeu toda as ferramentas, a criação que nós tínhamos, e nós fomos embora pra cidade. Daí eu fiquei três anos e voltei pra casa.

Alice: E lá nessa fazenda que vocês trabalhavam, na Jiboia, e depois na outra, o seu pai era meeiro?

Dona Rosalina: De meeiro, é. Alice: Ele plantava?

Dona Rosalina: Algodão, milho, arroz e feijão. Num tinha cana, num tinha um pé

Alice: E qual o motivo de terem saído?

Dona Rosalina: Nós saímos de lá porque, já nessa, meu pai resolveu parar né, com a

lavoura. Falou "Vamos embora pra cidade que", disse que estava dando mais. Trabalhava menos e ganhava mais. Tudo a mesma coisa.

Alice: Foi tudo a mesma coisa?

Dona Rosalina: [entristecida] Tudo a mesma coisa [silêncio] E daí casei e vim

embora pra cá. E daí estou aqui já vai fazer trinta anos que eu estou aqui. Só nesse lugar aqui. E o marido eu conheci numa festinha que teve aqui no bairro. Daí eu vim da cidade e era a casa do tio deles, a festa. Daí que eu conheci ele, aqui. Eram daqui do bairro. Foi nascido, foi criado aqui no bairro também. Também faziam lavoura

Alice: Também faziam. E eram donos de terras?

Dona Rosalina: [interrompendo] Não, não. Eles arrendavam. Que nem, meu pai já

era diferente. Meu pai, ele era meeiro. Então ele plantava era de meia. Dividia tudo. O que era de lucro e o que era de dívida. Então era meeiro. E o meu marido não. Meu marido ele arrendava e plantava, e era só deles. Pagava só a renda da terra.

Alice: E a senhora trabalhava?

Dona Rosalina: Lavoura também. Arroz, milho, feijão, algodão, vassoura, tudo eles

plantavam.

Alice: Tudo? Dona Rosalina: É Alice: E tudo por aqui? Dona Rosalina: Tudo

Alice: E na terra de quem que o marido da senhora plantava?

Dona Rosalina: Nas fazendas por aqui na redondeza. Eu, eu num sei direito o nome

dos homens, mas tinha um homem que já faleceu, e esse eu conheci porque eu fui trabalhar no sítio dele também. Quando eu casei e vim embora, e eles faziam lavoura lá, plantava algodão, arroz, eu ia também trabalhar. Era Germino[?] ele chamava

Alice: Guilhermino?

Dona Rosalina: Guilhermino, é. E esse daí eu cheguei a conhecer. Agora, os outros

não, os outros morava nas fazendas aí, pela redondeza também. Mas foi assim, foi tudo aqui mesmo. Foi nascido e criado por aqui. Foi plantando lavoura, não era cana.

(Entrevista realizada com moradora de 53 anos, dia 26/04/2013)

Como Dona Rosalina nos explicou, nas fazendas da região não havia o cultivo da cana-de-açúcar, e as famílias de meeiros e os que arrendavam da terra viviam e trabalhavam na terra produzindo também para subsistência. No caso de Dona Rosalina, sua família foi para a cidade, mas voltaram e, como disse essa senhora, voltaram para casa, para o bairro de Anhumas, para o bairro rural. Descobrimos então que, como prática costumeira, os terrenos do bairro foram vendidos pelos sitiantes tradicionais sem registros oficiais, e os contratos e acertos foram firmados pela palavra, como contratos orais firmados pelas relações pessoais. Dessa maneira, as famílias de meeiros e as famílias daqueles que arrendavam as terras puderam comprar pequenos terrenos para a construção de suas moradas, e o bairro viveu o primeiro aumento demográfico. Nesse percurso, entre idas e vindas, mesmo aqueles que haviam buscado sobreviver na cidade acabaram voltando. É nesse contexto que devemos compreender o porquê de os moradores antigos do bairro que não eram sitiantes não possuírem os registros oficiais dos lotes onde foram construídas suas moradas. Está aí a

origem da prática do que o poder público chama de vendas ilegais em relação aos terrenos dentro da vila. A seguir, uma moradora do bairro nos explica como ocorreram as primeiras mudanças na configuração do espaço social:

Dona Tervina: [...] E sei como começou o bairro de Anhumas. Bastante gente não

sabe. Às vezes até a própria pessoa que começou não sabe que começou, como ela começou e porque começou esse bairro de Anhumas, com todos esses terrenos picados. E eu sei. Não tinha bairro era só sítio. Agora, que eu vinha descendo ali, que eu vinha lembrando disso. Aí o meu tio, que é o sogro dela, estava na venda e falaram para ele, um homem [um sitiante]: “Eu queria tanto fazer uma casa, mas não tenho dinheiro. Como que eu faço?” Ele dava um terreno para a pessoa que começasse a fazer uma casa para ele. Aí tem um filho do meu tio, que morava na cidade, correu, veio aqui em Anhumas, fez a casa do homem, e o homem deu um terreninho para ele e tá lá, a primeira casinha feita lá, no terreninho dele. Terreninho dele, acho que de 5 por 25. Quem deu o terreno foi o... eu não sei o nome dele. Tem até o nome, mas o nome dele, eu não sei. Eu sei o... É Toledo também. Mas ele falava Ticão Furtoso. [...] Aí veio outro homem ali, vizinho dele, e falou com meu primo, se meu primo fizesse mais um serviço para ele, ele dava para o meu primo mais um terreninho também. A troco de tijolo. Meu primo dava o tijolo para fazer, meu primo fazia olaria, fazia tijolo na Jiboia. “Você dá o tijolo para mim, eu dou um terreninho para você”. Aí deu um terreninho para o meu primo Bingo, irmão, irmão do Raul. Meu marido o Bingo, irmão do Mariano. Deu um terreninho. [...]

Alice: Para lá da igreja, para cima. Primeiro começou a picar lá em cima? Dona Tervina: Lá em cima. Começou a picar lá. Aí depois foi picar..

Alice: Onde tem aquela igreja cinza, que é congregação? Dona Tervina: Ali eram os meus parentes, era.

Alice: Ali era dos Toledo.

Dona Tervina: Dos Toledo. Da Laura. Ali mesmo. Nós começamos a picar ali

mesmo. Ali que o bairro começou. Em sessenta e seis. Eu tinha doze, treze anos.

Alice: E como que a senhora lembra disso, quem contou para a senhora? Dona Tervina: [enfática] Mas eu vi! Vi. Pois eu sei, é o cheiro, o olfato! [risos]

[silêncio].

(Entrevista realizada com moradora de 60 anos, dia 17/04/2013)

Dona Tervina nos explicou em sua narrativa o início de tudo. Segundo a depoente, o pequeno sitiante não queria mais sua casa de barro, mas não tinha recursos monetários para comprar tijolos. Para compreender sua explicação vamos dar profundidade para a cena social descrita, e levar em conta os elementos já discutidos anteriormente. Antes de considerar a troca do lote por tijolo, devemos nos perguntar o porquê disso. Por que a terra, tão fundamental para a reprodução da vida do sitiante, aparece nesse contexto como um meio de troca? Podemos considerar o seguinte aspecto: nesse momento, a terra já não tinha seu valor de uso vinculado ao modo de vida tradicional. Com a modernização, a terra não garantia mais a subsistência das famílias, ademais, com os solos já desgastados, paulatinamente as terras vinham perdendo seu valor de uso, e carregando consigo a esperança da garantia de reprodução familiar. Mas, há também outro detalhe presente na narrativa de Dona Tervina. Essa senhora alega que os sitiantes não desejavam mais morar em suas casas de barro,

almejavam casas de tijolos. Nesse caso, as considerações de Candido (2001) nos ajudam na compreensão, quando chamou atenção para o “ajustamento” do caipira quando as mudanças sociais atingiam as necessidades de consumo e as hierarquias de prestígios influenciadas pelo padrão urbano e “moderno”. Dona Tervina retratou na figura do sitiante a imagem de uma família empobrecida, sem recursos monetários suficientes para acompanhar as mudanças nos padrões de consumo que chegavam até a área rural. O único recurso que possuíam era a terra, e esta vinha perdendo valor de uso. Dessa maneira, na formação dos primeiros lotes dentro da vila, identificamos a realização de uma troca que foi efetuada entre parentes e compadres, por pessoas que viviam próximas e tinham um passado comum compartilhado. Uma prática que não tem relação com as trocas efetuadas em mercados impessoais mediadas pelo dinheiro, e muitas vezes motivadas pela especulação imobiliária.

Enquanto conversávamos, Dona Tervina desenhou o Bairro em um papel, apontando onde estava o bico de Anhumas, lugar onde tudo começou, ou seja, o local onde se iniciaram os lotes. Dona Tervina preparou nosso almoço em seu fogão de lenha. Comentou: só preparo o alimento aqui, não gosto dos fogões de cozinha a gás. Anhumas/Piracicaba-SP,17/04/2013. Por Alice Miguel de Paula Peres.

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