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2. Entre o falo e a fala: o discurso de Maina irrompe

2.1 Ouve-se Maina em Novas Cartas Portuguesas

Maina inscreveu-se em um projeto de libertação de mulheres, ainda que de maneira, quase que solitária, em tempos em que a voz da mulher estava habituada ao choro contido, ao sussurro, às homilias. Observou-se na obra como as etiquetas sociais disciplinavam a sociedade burguesa do XIX, sobretudo as mulheres, objetificando-as como em vitrines. Em NCP esses temas tão caros a causa das mulheres serão reavivados por meio do fado de Fátima, como se verifica na poesia intitulada com o mesmo nome:

Fátima

Fadada foste ao gesto e à palavra

O corpo tão daninho que te habita mulher que não domaste e te desgosta maina te possui

plácida escondida[...]

de sede fátima devoras a firmeza e tão fecunda ou dor

tornaste a tua fala

que és teu próprio alimento e teu sustento na solidão imensa em que

resvalas [...].

Fadada fostes ao gesto à luz

e às secas margens

aos lisos gestos tão fieis a maina que áridos parecem mas não fáceis[...].

Maligna pois te habita maina ou tu te habitas fátima

em palavras.11/3/71 (NCP, 1998, pp.19-22).

Retoma-se pela poesia o fadário de tantas mulheres que são enformadas e que deveriam conformar-se com os gestos feitos para elas bordejados sempre pelas palavras apropriadas e limitadora da expressão feminina. O corpo, veículo representativo de tantas expressões e, entre elas, a manifestação mais concreta sob a perspectiva do patriarcado do que é ser mulher, dimensiona as reações sociais frente à recusa de ser mulher domada. Se solitária é Fátima, internamente ela possui amparo, pois Maina a habita escondida. A decisão do silêncio ou a apropriação de suas falas tornam-se, por conseguinte, o mantimento das duas mulheres, Fátima e Maina que irradiam sua própria luz, fecundas em sua reinscrição em novos gestos e hábitos pelo resguardo de seus discursos e a recusa aos modelos pré-fabricados para elas e, por isso, seu deslocamento às margens secas do discurso hegemônico patriarcal em que seus gestos são estranhos ao Outro,porque são habitadas pela malignidade,ou melhor, por suas próprias palavras, que, profanas, consagram sua autoria.

Durante o percurso analítico da obra Maina Mendes almejou-se o esclarecimento de que a mudez da personagem não deveria ser compreendida como um achaque histérico ou como devaneios de uma criança adulada, mas preponderantemente como a negação dos significados do mundo burguês com os quais ela não comungava, haja vista que seu mutismo, sabiamente, era circunstanciado, para que pudesse resistir ao confronto entre seu entendimento sobre o que era ser mulher em oposição a definições que reiteradamente eram acatadas por outras mulheres e jamais questionadas. O mesmo é visível na poesia composta pelas Três Marias, as quais retomam a temática do silenciamento em

Fátima, ressaltando ser este um procedimento acionado por muitas mulheres como

estratégia para salvaguardar-se das deformações machistas que recaem sobre o conceito do que é ser mulher desde sempre. Isso posto, clareia-se que tal posicionamento, a mudez, para muitas mulheres, configura-se como um ato consciente e, de que forma alguma, representa recuo ou resignação, mas consistentemente uma apropriação de um outro tipo de discurso, em processo de construção de outros sentidos possíveis, visto que é originado pela aversão aos estatutos dogmáticos e princípios de domesticação feminina. Orlandi (2007) em As

formas do silêncio – no movimento dos sentidos contribui com esse pensamento, a

partir do conceito que formula sobre o silêncio como um tipo de discurso com significação:

O silêncio é assim a “respiração” (o fôlego) da significação; um lugar de recuo necessário para que se possa significar, para que o sentido faça sentido. Reduto do possível, do múltiplo, o silêncio abre espaço para o que

não é “um”, para o que permite o movimento do sujeito. (ORLANDII, 2007,

p.13, grifos nossos).

É justamente o silêncio da mudez verificado em Maina Mendes e em Fátima que residem a multiplicidade das contingências do mundo e uma gama de críveis atuações do sujeito feminino, a partir da recusa da assimilação de um discurso definido e definitivo, compreendido como único plausível de execução. Como se analisou em Maina Mendes e como bem reitera Orlandi tais considerações acerca do movimento do sujeito, a mudez reflete a oscilação do indivíduo para a direção que ele assume como o seu percurso de significação de mundo, que não terá a exigência de possuir os mesmos sentidos há muito sentidos “[...] ou ainda que aquilo que é mais importante nunca se diz, todos esses modos de existir dos sentidos e do silêncio nos levam a colocar que o silêncio é “fundante”. ”(p. 14). Em outras palavras, no contexto de Maina, é a partir da denegação do dito que o silêncio se constitui em outros significados em um discurso de evidente oposição.

Encapsulado pelo corpo, o silêncio torna-se mudez e o que é íntimo e de nenhum acesso ao patriarcado torna-se uma ameaça, como o corpo de Fátima que a habita tão daninho. Importante examinar-se que Fátima parece ser dissociada de seu próprio corpo, como se fosse abrangida em duas partes. O corpo a que o eu poético faz alusão é aquele construído para ela e não por ela. Isso acarreta em um embate entre o corpo ideado pelas instituições religiosas e sociais e o corpo factual, nutrido pela pujança de um discurso concebido na danação do não-dito; espécie de égide que se contrapõe ao corpo dos discursos viciosos do universo masculino.

Abrangendo outros temários acerca da condição da mulher, as escritoras de

NCP desenredam questões que cercavam e cerceavam as mulheres há tempos. O

Estado Novo só fez perpetuar os valores patriarcais que são bem mais antigos que a própria ditadura dos anos de 1970. Maina Mendes e NCP reencontram-se como mulheres que se reuniram para a discussão dos questionamentos que as tolheram por séculos de contenção. Tanto no romance quanto na poesia Senhora

sobressaem as indagações, cada qual com suas características singulares, acerca da dominação masculina e da nomeação das mulheres, segundo os interesses de uma sociedade regida pelo machismo:

Senhora

---- Senhora, o que te faz tão franzida Tão refeita

Tão suspeita?

Quem escolhe a mansa vida Verá bem o que rejeita. ---- Vai e traz-me um cabelo Dum dragão enamorado Pois se me falas de amor Quero vê-lo feito e provado À volta dar-te-ei guarida Sentar-te-ei a meu lado

---- Senhora, o que te traz tão sujeita Tão faltosa

Suspirosa?

Quem fia, borda e ajeita Murcha cedo como a rosa Não tem ciência nem prosa

Não sabe o nome que aceita.

---- Vai roubas o setestrelo A um deus mau e zangado Pois se me dizes a saber Quero prová-lo

À volta dar-te-ei suspeita De que não estás do meu lado. ---- Senhora, o que te jaz tão famosa Tão ausente

Tão pungente?

----Quem escolhe, parte e rejeita Quem parte, vai e não colhe. Quem vai, faz e não ama. Quem faz, fala e não sente. São teus olhos os sujeitos São de granito os meus peitos. Quem fia, borda e ajeita,

Quem espera, fica e não escolhe. [...]. (NCP, 1998, pp.26-27, grifos nossos).

Conforme se apontou ao longo da análise em Maina Mendes, a protagonista recusara desde a infância o assujeitamento destinado às meninas de sua época que deveriam ser constituídas como senhoras para a sociedade. Note-se bem o emprego da preposição para, que endossa claramente o engodo dissimulado na nobreza que o termo assenhora. Maina contrapõe-se ao título da poesia,

delineando-se, primordialmente, como mulher sob sua perspectiva existencial, sendo que por suas atitudes e por seu silenciamento, refuta os nomes pertencentes ao léxico instrumental burguês. Em Senhora verificam-se similitudes com o núcleo temático de Maina Mendes, quanto ao desinteresse da protagonista a categorias sociais. O discurso da poesia configura-se como uma espécie de relação de quesitos que visam ao esclarecimento sobre o que é de fato ser senhora e as sequelas que essa escolha, se houvesse outras, trazem para a vida das mulheres. Atente-se para as questões iniciadas nos primeiros versos de cada estrofe que parecem referenciar um interlocutor atônito com a reação da mulher, certamente um homem, que parece crer que a vida doméstica basta para que uma mulher se sinta plena. Em Maina Mendes, as palavras movimento e oscilação são recorrentes, visto que traduzem as aspirações de Maina com relação ao mundo que deseja habitar, pois na contramão da senhora do poema, Maina escolhe, parte e rejeita, mas não faz, não fala e não sente e, nesse posicionamento frente ao mundo androcêntrico,Maina invade o espaço do universo masculino. Embora não siga os passos de Maina, a voz poética feminina em Senhora partilha com Maina a rejeição das maçantes atribuições passivas de uma senhora que desqualificam a mulher como um sujeito atuante e capaz, sentindo-se tolhida por seu encarceramento em tarefas domésticas. Suas tessituras domésticas não contribuem para a evolução do mundo, apenas servem para a manutenção de sua casa e para a sua alienação diante das sociedades de exclusividade masculina. O mesmo fastio que oscilava no comportamento de Maina movimenta o diálogo da senhora que se lamenta de não

ter sabido, de fato, o real sentido do nome que aceita e que Maina reiteradamente

sempre refutou.

Nítida referência a uma passagem descrita em Maina Mendes, quando da morte de Hortelinda,encontra-se na estrofe em que a senhora pede ao homem o setestrelo, evocando a imagem das sete estrelas principais da Ursa Maior, cuja composição entre as linhas imaginárias que unem as estrelas lembra uma colher ou uma concha. Para Hortelinda, o momento era outro, o de seu fenecimento e em delírio via no mito a grande colher, companheira de uma vida, que de fato,acolhê-la- ia no céu. Já em Senhora a voz poética evidencia que a mulher é cônscia dos embustes masculinos e não acredita mais nos mitos forjados para ela: nem senhora nem companheira.

Na sucessão dos verbos que compõem a última estrofe, apreende-se o movimento impresso por suas transitividades, conferindo ao texto um efeito de causas e consequências que remetem a atuações de um sujeito em um mundo esvaziado de sentimentos e de desprendimento em relação aos da mulher, restando a ela a experimentação de ausências e de negações. Depreende-se tal relação na última estrofe a partir dos dois verbos iniciais dos versos em contraste às negativas dos verbos finais, subentendendo-se que o homem escolhe, parte e como consequência rejeita a companhia da mulher e em seguida, o homem parte, vai e

não colhe porque nada semeou e reitera ciclicamente seu comportamento, pois ele

novamente vai, faz,mas não ama, aqui, possivelmente cumpre apenas o contrato esponsal e, por fim faz, fala e não sente, nulificado em sentimentos, gerando as reações de desconfiança e descontentamento da senhora em um movimento comportamental e textual circulares. A escolha é sempre dos homens que partem e podem ser livres para rejeitar inclusive quem escolhem. Falar e fazer são atributos masculinos, ao passo que sentir e amar são predicativos do hemisfério feminino, não habitam o mundo dos homens, acostumados a agirem e não a sentirem. As senhoras são assujeitadas pelo olhar do homem, teus olhos são os sujeitos que assujeitam e que determinam a ordem dos papeis sociais no mundo, cabendo à senhora aceitar, endurecida e sem escolha, mas plena de sentimentos retesados em seu peito de granito. No último verso da poesia destaca-se o fado de carregar o título de senhora: cabe a ela fiar, mas não acreditando, bordar, colocada à borda e

ajeitar, acolhendo a situação como a ela se apresenta. Dessa forma, seu mundo é o

de espera, fincada e sem escolhas. O destino das senhoras em nada se assemelha com o sentido atribuído a palavra, mais definido pelo seu caráter sociocultural. Assim como Maina, a rigidez dos sentimentos em Senhora origina-se do apartamento que ambas sofrem, ainda que por causas distintas, entretanto, salienta- se que a ilusão da deferência aparente que a palavra traz é desconstruída pelas duas, em virtude da constatação que as palavras nem sempre são empregadas fielmente de acordo com a sua real significação.

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