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Nenhum deles contou o tempo gasto naquele lugar. Sabem só que foi de silêncio, de contemplação e de saudade. Não digo, para os não vexar agora, mas é possível que chorassem também. Tinham um lenço na mão, enxugavam os olhos; depois com os braços caídos, as mãos prendendo o chapéu, olhavam aparentemente para as flores que cobriam a sepultura, mas na realidade para a criatura que lá estava embaixo.

Enfim, cuidaram de arrancar-se dali, e despedir-se da defunta, não se sabe com que palavras, nem se eram as mesmas; o sentido seria igual. Como estivessem defronte um do outro, acudiu-lhes a idéia de um aperto de mão por cima da cova. Era uma promessa, um juramento. Juntaram-se e vieram descendo, calados. Antes de chegar ao portão, reduziram à palavra o gesto das mãos feito sobre a cova. Que juravam a conciliação perpétua.

— Ela nos separou, disse Pedro; agora, que desapareceu, que nos una.

Paulo confirmou de cabeça.

— Talvez morresse para isso mesmo, acrescentou.

Depois, abraçaram-se. Gesto nem palavra traziam ênfase ou afetação; eram simples e sinceros. A sombra de Flora decerto os viu, ouviu e inscreveu aquela promessa de reconciliação nas tábuas da eternidade. Ambos, por um impulso comum, voltaram os olhos para ver ainda uma vez a cova de Flora, mas a cova ficava longe e encoberta por grandes sepulcros, cruzes, colunas, um mundo inteiro de gente passada, quase esquecida. O cemitério tinha um ar meio alegre, com todas aquelas grinaldas de flores, baixo- relevos, bustos, e a cor branca dos mármores e da cal. Comparado à cova recente, parecia um renascimento de vida, que ficou deslembrada a um canto da cidade.

Custou-lhes sair do cemitério. Não supunham estar tão presos à defunta. Cada um deles ouvia a mesma voz, com igual doçura e palavras especiais. Tinham chegado ao portão e o carro veio buscá-los. A cara do cocheiro era radiosa.

Não se explica esta expressão do cocheiro, senão porque, inquieto da demora, não cuidando que os dois fregueses ficassem tanto tempo ao pé da cova, entrara a recear que tivessem aceitado o convite de algum amigo e voltado para casa. Tinha já resolvido esperar poucos minutos mais, e ir embora; mas a gorjeta? A gorjeta foi dobrada, como a dor e o amor; digamos, gêmea.

CAPÍTULO CX QUE VOA

Assim como o carro veio voando do cemitério, assim voará este capítulo destinado a dizer primeiro que a mãe dos gêmeos conseguiu levá-los para Petrópolis. Já não alegaram a clínica da Santa Casa nem os documentos da Biblioteca Nacional. Clínica e documentos repousam agora na cova n.o... Não ponho o número, para que algum curioso, se achar este livro na dita Biblioteca, se dê ao trabalho de investigar e completar o texto. Basta o nome da defunta, que lá ficou dito e redito.

Voe este capítulo, como o trem de Mauá, serra acima, até à cidade do repouso, do luxo e da galanteria. Vá Natividade com os filhos, e Aires com os três. Em cima, à noite, voltando este à casa do barão, pôde ver os efeitos da paz jurada, a conciliação final. Não sabia nada do pacto dos dois moços. Pai nem mãe

sabiam coisa nenhuma. Foi um segredo guardado no silêncio e no desejo sincero de comemorar uma criatura que os ligara, morrendo.

Natividade vivia agora enamorada dos filhos. Levava-os a toda parte, ou guardava-os para si, a fim de os gostar mais deliciosamente, de os aprovar por atos, de auxiliar a obra corretiva do tempo. Notícias e boatos do Rio de Janeiro eram objeto de conversação nas casas a que estes iam, sem os convidar a sair da abstenção voluntária. As recreações pouco a pouco os tomaram, algum passeio de carro ou a cavalo, e outras diversões os traziam unidos.

Assim chegaram ao tempo em que a família Santos desceu, ainda que a contragosto de Natividade. Ela temia que, mais perto do governo, a discórdia política acabasse com a recente harmonia dos filhos, mas não podia lá ficar. A outra gente vinha descendo. Santos queria os seus velhos hábitos, e deu algumas razões boas, que Natividade ouviu depois ao próprio Aires. Podia ser um encontro de idéias, mas se estas eram boas, deviam ser aceitas.

Natividade confiava ao tempo a perfeição da obra. Cria no tempo. Eu, em menino, sempre o vi pintado como um velho de barbas brancas e foice na mão, que me metia medo. Quanto a ti, amigo meu, ou amiga minha, segundo for o sexo da pessoa que me lê, se não forem duas, e os sexos ambos, — um casal de noivos, por exemplo, — curiosos de saber como é que Pedro e Paulo puderam estar no mesmo credo... Não falemos desse mistério... Contenta-te de saber que eles tinham em mente cumprir o juramento daquele lugar e ocasião. O tempo trouxe o fim da estação, como nos outros anos, e Petrópolis deixou Petrópolis.

CAPÍTULO CXI UM RESUMO DE ESPERANÇAS

"Quando um não quer, dois não brigam" tal é o velho provérbio que ouvi em rapaz, a melhor idade para ouvir provérbios. Na idade madura eles devem já fazer parte da bagagem da vida, frutos da experiência antiga e comum. Eu cria neste; mas não foi ele que me deu a resolução de não brigar nunca. Foi por achá- lo em mim que lhe dei crédito. Ainda que não existisse, era a mesma coisa. Quanto ao modo de não querer, não respondo, não sei. Ninguém me constrangia. Todos os temperamentos iam comigo; poucas divergências tive, e perdi só uma ou duas amizades, tão pacificamente aliás, que os amigos perdidos não deixaram de me tirar o chapéu. Um deles pediu-me perdão no testamento.

No caso dos gêmeos eram ambos que não queriam; parecia-lhes ouvir uma voz de fora ou do alto que lhes pedia constantemente a paz. Força maior, portanto, e troca de fórmula: "Se nenhum quer, nenhum briga".

Naturalmente os atos do governo eram aprovados e desaprovados, mas a certeza de que podia acender- lhes novamente os ódios fazia com que as opiniões de Pedro e de Paulo ficassem entre os seus amigos pessoais. Não pensavam nada à vista um do outro. Divergências de teatro ou de rua, eram sopitadas logo, por mais que lhes doesse o silêncio. Não doeria tanto a Pedro, como a Paulo, mas sempre era padecer alguma coisa. Mudando de pensamento, esqueciam de todo, e o riso da mãe era a paga de ambos.

A carreira diferente ia separá-los depressa, conquanto a residência comum os trouxesse unidos. Tudo se podia combinar; os interesses do ofício serviriam a este efeito, as relações pessoais também, e afinal o uso, que vale por muito. Vou aqui resumindo, como posso, as esperanças de Natividade. Outras havia a que chamarei conjugais; os rapazes, porém, não pareciam inclinados a elas, e a mãe, quem lhe apalpasse o coração sentiria já um antecipado ciúme das noras.

CAPÍTULO CXII

No documento JOAQUIM MARIA MACHADO DE ASSIS ESAÚ E JACÓ (páginas 118-120)