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Pós-escrito Escuridão e lucidez

4: Vasta solidão e pensamentos imperfeitos

4.2 Pós-escrito Escuridão e lucidez

Vimos que diversas são as imagens apontadas por Benjamin (2000a) a partir de sinalizações, sugestões, e mesmo de registros de intenções baudelairianos. O flâneur, o trapeiro, o transeunte, o basbaque, o dândi e outras são algumas dessas figuras. No entanto, vimos que as imagens do flâneur e do trapeiro se destacam entre as demais e até se confundem, com bem anota Rouanet (1993), informação esta já antecipada na Introdução da tese.

Se essas duas imagens se interpenetram, se complementam, se confundem, se uma se reflete na outra, é sumamente difícil distingui-las, discernir forma, alcance e extensão de uma delas – se é que este procedimento é mesmo possível, ou desejável. Talvez, não. Pensamos que a confusão das imagens é mesmo proposital, habilmente engendrada pelo poeta. Realmente, o que seria mais importante, mais significativo? Algum material em si, a cuidadosa observação da sua estrutura, ou a

sua seleção e preservação? O que teria mesmo maior impacto estético: seria o olhar minucioso, investigativo do flâneur sobre algum material social, ou a sua guarda, seleção criteriosa, preservação desse material por uma mão trapeira?

A leitura de “A matéria do sonho”, neste último capítulo da tese, no nosso entender nos leva a entendimentos ainda mais largos, mais complexos das imagens baudelairianas, em especial a do trapeiro, (aqui, correndo o risco de separá-la, isolá- la), que a realidade social produz.

O próprio Baudelaire, - por meio das anotações de Benjamin (2000a) –, nos dirá que o trapeiro é um recolhedor de trapos, de dejetos, do lixo diário que a cidade desdenha e rejeita. Ainda associará a imagem do poeta à do trapeiro, sugerindo que aquele, movido por sua sensibilidade social e estética, simbolicamente repete o trabalho deste. O poeta é também um recolhedor de detritos, um examinador atento do lixo social. E por isso mesmo: à semelhança do trapeiro, cava fundo, recolhe, seleciona criteriosamente, preserva e, melhor, transforma a escória, a lama social em matéria da sua poesia.

A cidade moderna desenvolve os seus próprios caminhos. Alguns são bem mais visíveis, estão expostos, à vista dos passantes. Outros, nem tanto. Para percebê-los é necessário um olhar ainda mais atento. E o poeta precisa sentir, perceber, se possível, todos eles. A leitura do conto “A matéria do sonho” nos sentencia: sob o lixo social aparente, há ainda mais lixo.

O conto nos indica que a ação trapeira do poeta deve ser mais profunda, não ignorando ou desprezando também os caminhos submersos, subtérreos da cidade. Isto é, sob a pretensa e aparente ordenação da realidade social, há também o gesto clandestino, aquele que se retrai, se esconde. A história e as personagens de “A matéria do sonho” assim nos dizem.

Acompanhemos o trecho da fala de Benjamin, em que ele cita o próprio Baudelaire a discorrer sobre a ação trapeira do poeta:

Eis aqui um homem encarregado de apanhar os detritos de um dia da capital. Tudo o que a grande cidade rejeitou, tudo o que ela perdeu, tudo o que ela desdenhou, tudo o que ela quebrou, ele

cataloga e coleciona. Ele compulsa os arquivos do passado, os cafarnaúns dos dejetos (BENJAMIN, 2000a, p. 44).

O chamado cidadão comum, privado de uma sensibilidade mais aguçada, rejeita, não quer consigo aquilo que considera lixo. Ele quer mais é livrar-se do entulho, e por isso desdenha de qualquer importância atribuída àquele material. Não é assim com o poeta, de quem se espera maior sensibilidade e intenso envolvimento humano. A este cabe a missão de melhor examinar, restaurar, preservar todos os arquivos sociais – inclusive aqueles ligados ao passado. E o mais interessante, esteticamente: o poeta deve redimensionar o lixo da sociedade, reaproveitá-lo, trazê-lo à tona, expô-lo publicamente, alterando-lhe os seus valores.

A literatura de Rubem Fonseca nos apresenta um escritor incessantemente preocupado com aquilo que socialmente costuma ser encoberto, segredado, ou ainda negado. Com espírito feroz, ou brutalista, esta literatura explode em cenas de fúria contra o desmazelo moral, o desvio ético, a corrupção social. E o trabalho do escritor Fonseca se mostra, por vezes, ainda mais apurado, sensível, arrebatando de debaixo do acúmulo de lixo da cidade, ainda mais lixo.

A sua obra, particularmente a sua contística, se apresenta palimpséstica, com camadas múltiplas, todas elas ambientadas na cidade. E o poeta Fonseca não somente percebe as camadas externas, aquelas que estão expostas na via pública, mas ele também vai em busca das primeiras camadas, aquelas outras, submergidas, esquecidas no tempo, ou hipocritamente censuradas em sociedade, escondidas por debaixo do chão da cidade.

“A matéria do sonho” é um desses momentos. A narrativa mostra ao seu leitor que aquilo que convencionalmente não se revela, que se costuma segredar em sociedade, muito provavelmente estará ligado à história íntima do indivíduo, aos seus instintos mais primitivos – à sua alma.

E aí, diante do leitor, algumas amarrações narrativas mais complexas, alguns itinerários de cenas desconcertantes. Talvez o leitor não compreenda muito bem o encontro (silencioso, secreto) de dois homens amplamente distintos. Pactuados, o homem interiorano e o homem urbano; aquele que confessa que não estudou e o

outro, formado, estudado; um pobre, e o outro, de posses; o empregado e o seu patrão; um mais espontâneo, desinibido, palrador e o outro, retraído, tímido, silencioso. No entanto, se juntam por suas histórias sexuais. São histórias que, por serem proibidas de vir a público, se desenvolvem isoladas, em ambientes fechados, escondidos, preenchidos com a presença de substitutos eróticos, como bonecas de plástico.

É importante perceber que se homens, em quartos alugados, se deitam com alguma amante, ou prostituta, ou ainda se envolvem mutuamente em alguma relação homossexual, já teríamos aí um quadro clássico da chamada literatura realista. As pressões dos anos mais recentes nos recomendam que também mudemos o sexo dos envolvidos. Isto é, imaginemos a mesma situação, nucleada por mulher(es). Mas o trapeiro Fonseca optou, como se vê no conto, por trazer à tona lixo ainda mais profundo. Os homens da história se relacionam com bonecas eróticas, mulheres infláveis.

E intensamente. Até rasgá-las, explodi-las. Para o leitor, fica a sugestão de contínua substituição daquele brinquedo erótico.

Rubem Fonseca não esquece, no conto, de expor, digamos, outras escórias sociais. Algumas já conhecidas, bem mais visíveis, como a solidão nos grandes centros urbanos, estados solitários dos seus habitantes, como por exemplo o desamparo de idosos, situação também presente no conto “Lar onze de maio”. Ou ainda, a necessidade de uma viúva alugar um dos quartos da sua própria casa para estranhos, para continuar sobrevivendo.

Vejamos, a título de ilustração, o que nos diz Ariovaldo José Vidal, em texto voltado para a obra de Rubem Fonseca, não deixando, todavia, de compará-la com outras da chamada literatura urbana:

Fonseca não é um miniaturista como Dalton Trevisan, nem seu conto é geométrico como o de Osman Lins. Ocorre uma situação curiosa em seu estilo: há nele uma obsessão em conhecer a vida [...], a intensidade das paixões, de tal modo que se poderia usar para os seus contos a velha expressão da literatura realista: são pedaços de vida. A solidão, por exemplo, é tratada de maneira pletórica, com personagens carregados de motivos e desejos; e se não falam entre si, mostram-se avidamente para os leitores. (VIDAL, 2000, p. 127).

Vimos, a propósito, que o conto “A matéria do sonho” nos apresenta histórias dificultadas socialmente, mas bravamente enfrentadas, desenvolvidas. Ao final, a impressão de que a chamada vida real não pode ser impedida, nem mesmo retraída em seu fluxo natural. Em sua força inevitável, a vida, que é matéria-prima para a literatura, também se faz de muitos sonhos – e todos eles, tangíveis.

Numa outra relação com as palavras do próprio Rubem Fonseca em seu blog, descritas na Introdução da tese, vimos que o escritor, numa livre associação com o termo kindler, define o livro digital como “fogo de palha”. Estaria ele a dizer aos leitores que o livro de papel, ou seja, a literatura em modelo tradicional, seria fogo durável, mais luzente e mais abrasador? Muito provavelmente. Nesta direção interpretativa, ou noutra, diríamos, a pretexto do conto ora analisado, que a literatura é matéria ideal para muitos sonhos, tanto de escritores quanto de leitores. E até que nos convençamos do contrário, parece que em qualquer veículo de expressão.

Finalmente, repetiríamos que a mão trapeira do poeta não pode se esquivar de lixo social nenhum. Deve mesmo buscá-lo, restaurá-lo, expô-lo, redimensioná-lo esteticamente. A sexualidade é matéria de muitos matizes; alguns muito secretos e profundos – entranhados na alma, repetiríamos. Tratá-los honestamente, a todos eles, é o mínimo que se espera de um bom texto de ficção.