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2. Os Estudos Queer: a luta política no palco das identidades

2.2 Pós-identidades: da história e dos pressupostos

A categoria homossexual é uma criação do Século XIX, nascida dos dispositivos médicos e dos discursos em torno das sexualidades. É a partir da segunda metade daquele século que nascem os aparatos para definir o homossexual como sujeito, as discussões sobre o desvio desse desejo, sua suposta anormalidade. A homossexualidade é assim posta em discurso, como o oposto da heterossexualidade e no intuito mesmo de demarcar os limites dessa última. Com a ascensão do Nazismo e a eclosão da Segunda Guerra Mundial, a caça aos homossexuais recrudesce, apesar dos avanços do início do Século XX. Tido como perverso, doente, amoral, o homossexual divide com os judeus o status de sujeito que deve ser eliminado. Com o final da guerra, já nos anos 50, começam a surgir organizações de defesa dos homossexuais nos EUA, com o objetivo de lutar pela igualdade de direitos, a tolerância e o respeito.

A partir dos anos 60 e 70 o movimento gay ganha corpo, reforçando a noção de uma identidade baseada no desejo entre pessoas do mesmo sexo e abandonando a palavra homossexual, em função de sua carga medicalizada, advogando assim a aceitação da diferença. É a partir desse período que se inicia uma mercadologização do estilo de vida gay, transformado em produto. Nos anos 80, surgem, então, os Estudos Queer, que denunciam a cultura gay como fundamentalmente masculina, branca, de classe média alta e americana – uma espécie de nova burguesia – em contraponto a toda uma multiplicidade de práticas e comportamentos sexuais – atravessados por questões de classe, raça, religiosas, nacionais – que permanecem excluídos da lógica integracionista gay.

Enquanto a nova ordem busca ser assimilada e tomar parte no paraíso capitalista, os Estudos Queer não advogam a tolerância, o respeito, nem a integração como estratégias políticas, mas sim a explosão do marco heterossexual e da identidade gay na direção de uma estratégia política que, apropriando-se de um insulto – a palavra queer (anormal, estranho) -, busque desmontar a idéia de normalidade e anormalidade e utilize as sexualidades desviantes como arma para contestar a ordem vigente. Aqui, mesmo que tardiamente, faz-se importante ratificar o porquê do uso da palavra queer como lugar de contestação:

Queer pode ser traduzido por estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário. Mas a expressão também se constitui na forma pejorativa com que são designados homens e mulheres homossexuais. Um insulto que tem, para usar o argumento de Judith Butler, a força de uma invocação sempre repetida, um insulto que ecoa e reitera os gritos de muitos grupos homófobos, ao longo do tempo, e que, por isso, adquire força, conferindo um lugar discriminado e abjeto àqueles a quem é dirigido. Este termo, com toda sua carga de estranheza e de deboche, é assumido por uma vertente dos movimentos homossexuais precisamente para caracterizar sua perspectiva de oposição e de contestação. Para esse grupo, queer significa colocar-se contra a normalização – venha ela de onde vier. Seu alvo mais imediato de oposição é, certamente, a heteronormatividade compulsória da sociedade; mas não escaparia de sua crítica a normalização e a estabilidade propostas pela política de identidade do movimento homossexual dominante. Queer representa claramente a diferença que não quer ser assimilada ou tolerada e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e perturbadora. (Louro, 2001: 546)

Assim como a luta gay, o movimento feminista também tem um de seus marcos no mesmo período, com a publicação de O Segundo Sexo (Simone de Beauvoir, 1949). Grosso modo, o feminismo está fundado na idéia de uma opressão universal da mulher e numa tentativa de compreender e expor os processos históricos que levaram a esse estado de subordinação. É fora de dúvida que o feminismo tenta desnaturalizar a identidade feminina, baseado na idéia de Beauvoir de que a “mulher não nasce, torna- se”. O trabalho de desnaturalização, no entanto, não é sinônimo de desessencialização e, à medida que se supõe a existência de uma mulher universalmente oprimida, supõe-se também a existência de uma essência feminina.

Nesse primeiro momento, a visibilização da mulher como uma categoria universal correspondia a uma necessidade política de construção de uma identidade coletiva que se traduziria em conquistas nos espaços públicos. No entanto, os perigos ou os limites dessa concepção estão na essencialização das identidades, por um lado, e na vitimização do sujeito mulher, por outro. (Bento, 2006: 73).

Numa perspectiva queer, o esforço teórico feminista que se funda na idéia de uma identidade compartilhada não é suficientemente satisfatório para desconstruir as normas de gênero, mas, em oposição, acaba reproduzindo a lógica interior dessa normatividade, reforçando binarismos, lugares, pertencimentos, gerando assim tantas outras margens.

Além de estar baseado na criação da identidade mulher - classificando a experiência feminina, delimitando-a, hierarquizando-a -, o feminismo de base Beauvoiriana funda-se na existência de dois corpos, dois gêneros e duas subjetividades diferentes e radicalmente opostas, homem X mulher / masculino x feminino. Aqui, o corpo é tido como essencialmente dimórfico, pensamento que reproduz um sistema binário sobre os sexos e os gêneros, cuja crença é a de que existem algumas características compartilhadas, de um lado, por todos os homens; e de outro, por todas as mulheres. Para as teóricas alinhadas a esse pensamento, o corpo é uma base pré- discursiva comum que será marcada pela cultura.

Em oposição a esse olhar universalista, surge dentro do próprio feminismo uma corrente teorizante de base relacional, cujo projeto é desconstruir a mulher universal e pensar as identidades de gênero a partir de outras variantes: sociais, nacionais, étnicas, religiosas, etc. A perspectiva relacional não considera que o gênero mulher tenha como determinante na sua construção um outro absoluto, o homem, mas que várias funções produzem diferenças radicais na experiência da mulher: brancas e negras, pobres e ricas, do Sul e do Nordeste, católicas e muçulmanas, etc.

Entretanto, mesmo na perspectiva relacional, ainda se trabalha com base na idéia de uma diferença sexual primária, segundo a qual o corpo-sexuado representa um estágio pré-discursivo que a cultura organizará. A diferença sexual pré-social continua sendo, assim, um pressuposto a partir do qual os gêneros passam a ser inteligíveis. Nesse ponto, as perspectivas universal e relacional se encontram.

Mas elas ainda possuem um outro ponto de interseção, a exclusão da sexualidade lésbica ou de qualquer sexualidade divergente. Embora busquem reverter a opressão feminina, essa teorias carregam uma aporte profundamente heterossexista, que supõe uma coerência absoluta na tríade corpo-sexuado, gênero, sexualidade (fêmea, mulher, hétero) e que exclui qualquer experiência que ouse deslocar ou desmembrar um desses pilares. Essa omissão gera, dentro do feminismo, a necessidade de articular o campo de estudo dos gêneros com o campo das sexualidades, uma vez que os desenvolvimentos sobre a opressão de gênero não davam conta da experiência de opressão sexual. A partir de então, os três elementos - sexo, gênero e sexualidade – começam a se apartar e a gerar debates que sugerem novas combinações, como “a sexualidade do gênero, o gênero do corpo sexuado, o corpo sexuado da subjetividade e a sexualidade do corpo sexuado” (Bento, 2006: 79).

Nasce, então, dentro do feminismo, uma crítica sistemática pautada nas insatisfações e insuficiências expostas anteriormente: são os Estudos Queer. Para seus pensadores, a luta política das feministas não necessita de uma identidade comum, não carece de um aparato que vá em busca de uma essência feminina - homogeneizando as experiências - para obter êxito. Essa teorização propõe, ao contrário, a instabilidade, o não lugar, a desessencialização como estratégias de enfrentamento.

A perspectiva universalista de Beauvoir é a de que a cultura produz os gêneros, inscrevendo-se dessa forma sobre uma natureza. Esse pensamento considera, portanto, que o sexo é a natureza e que o gênero é a cultura. Dessa forma, o sexo passa a ser um dado, um fato, uma fundação que está antes da cultura e que será moldada pelo social. O equívoco dessa posição, segundo a crítica queer, está em conceber algo que não tenha sido tocado pela cultura, algo que exista fora ou antes dela. Para Butler (2003: 25),

O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de um significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos. Resulta daí que o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele também é o meio discursivo/cultural pelo qual “a natureza sexuada” ou “um sexo natural” é produzido e estabelecido como “pré-discursivo”, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual age a cultura.

O projeto queer é, portanto - e também - o de desconstruir o binarismo natureza x cultura. Isso porque é o sexo que torna os seres humanos inteligíveis. Na verdade, o sexo é uma condição do humano, portanto, o corpo está desde sempre tocado pelo gênero e o sexo não é uma massa inerte anterior a ele. Quando se pergunta, “é um menino?” ou “é uma menina?” nos exames de ultra-sonografia, desde já aquele corpo ganha existência na cultura a partir dessa operação de encaixe, sendo ininteligível se não pertencer a nenhum desses gêneros, ou melhor, não sendo humano.

Conceber o sexo como uma situação ou como um fato anatômico pré-discursivo é permanecer na lógica normativa, segundo a qual o gênero seria uma manifestação ou expressão da natureza. Essa concepção está enraizada na heterossexualidade compulsória, que imagina sexo anatômico, gênero e sexualidade numa relação causal, expulsando para o território da patologia todo gênero e toda sexualidade que não sejam tomados como conseqüência da anatomia.

Os Estudos Queer articulam formulações desenvolvidas a partir dessas insatisfações. Para o teórico queer, mesmo os argumentos biológicos e científicos

utilizados para definir e classificar os gêneros e as sexualidades são construções culturais, revelando não uma natureza ou essência dos objetos que nomeiam, mas sim interpretações que imputam um significado a uma matéria sem qualquer significado anterior. Baseados nessa elaboração, é que os pesquisadores do queer questionarão os binarismos em que estão fundados os discursos de gênero e sexualidade (homem/mulher, masculino/feminino, homossexual/heterossexual), postulando uma teoria e uma política que coloquem em xeque as relações de poder implícitas nesses dualismos, propondo sua revisão radical.