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B) O R USSET W ITCH !

1.4. P ORQUÊ AINDA TRADUZIR F ITZGERALD ?

Todas as traduções se revelam, mais cedo ou mais tarde, imperfeitas, acabando por ser consideradas provisórias. Ou assim alega Susan Sontag no ensaio “The World as India”. Incontornável é que as grandes obras da literatura são frequentemente retraduzidas. Parece impender sobre as traduções um “prazo de validade”. Ou porque se coloca em causa a sua qualidade ou porque a linguagem utilizada se tornou obsoleta ou simplesmente porque importa renovar o interesse dos leitores e promover a literatura.

Aliás, a escolha de traduzir uma obra é já dignificá-la, prestigiá-la. De acordo com o ensaio de Sontag, a arte da tradução literária é uma reivindicação do valor da própria literatura, uma duplicação do seu papel, sendo que, para fazer chegar uma obra literária a um elevado número de leitores, é necessário não só traduzi-la em várias línguas, mas retraduzi-la. É pois através da tradução, testemunho importantíssimo da vida das obras, que o texto dito original «alcança o seu desenvolvimento último, mais amplo e sempre renovado.» (Benjamin 2015:94). A tradução contribui, portanto, para assegurar a sobrevivência de uma obra. É inegável a relevância cultural e até o papel social da tradução no seio da sua “comunidade”: trata-se de um espelho que não só reflete, mas gera uma nova luz, como sugere Steiner (1998). Assim, por muitas vezes que uma obra tenha já sido traduzida numa determinada língua de chegada, haverá sempre algum elemento de novidade. Trata-se, afinal, de um novo texto, que poderá até expandir ou modificar os modelos de tradução existentes na cultura de chegada.

The Great Gatsby, por exemplo, é hoje considerado um clássico da literatura norte-americana e mundial, de modo que existem variadíssimas traduções em língua portuguesa. Aliás, não só de Gatsby, mas de todos os romances de Fitzgerald (incluindo o inacabado The Last Tycoon) e de alguns ensaios. Mas qual a relevância da obra completa de Fitzgerald, cujos contos sobrevivem hoje como poucos de autores da sua geração, mais de setenta anos passados sobre a sua morte? Porquê traduzi-la ainda? Ou porquê continuar a retraduzi-la?

O mais antigo registo de um conto de Fitzgerald publicado em Portugal data de 1963, de acordo com a base de dados do projeto “Intercultural Literature in Portugal (1930-2000): A Critical Bibliography”29. O conto, “A Dança”, insere-se numa antologia

policial publicada pela Editorial Ibis intitulada 40 “best-sellers” do conto policial. Outros dois contos, “O Mistério da Hipoteca Raymond” e “Uma Pequena Viagem a Casa”, surgem em outras duas antologias do género em 1967 e 1972, respetivamente. Tanto quanto se

29 Projeto de investigação do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura, da Universidade Católica Portuguesa (CECC) e do Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa (CEAUL/ULICES-UL) que teve início em 2008 e que pretende constituir «uma bibliografia crítica da literatura traduzida para português a partir de qualquer língua estrangeira, e publicada em forma de livro, em Portugal, entre 1930 e 2000». Disponível em http://www.translatedliteratureportugal.org.

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conseguiu apurar, no período abarcado pelo projeto, não se encontram contos de Fitzgerald noutras antologias30 traduzidas em língua portuguesa que reúnam textos de

vários autores31, o que poderá ser manifestação de uma certa desvalorização do autor e/ou

da sua contística em particular.

Ainda assim, são alguns os volumes de contos de Fitzgerald editados em Portugal, sendo que nenhum coincide com os volumes publicados em vida pelo autor. De acordo com a Base Nacional de Dados Bibliográficos (PORBASE), o primeiro volume de contos de Fitzgerald publicado em território nacional data da mesma época, de 1965. Intitula-se Sonhos de Inverno: antologia de contos, com tradução de H. Silva Letra e edição da Portugália. A mesma antologia foi republicada em 1986 e 2011 pela Relógio d’Água, sob o título Sonhos de inverno e outros contos. Esta última edição, de 2011, constitui, até à data de redação do presente relatório, e segundo os dados da PORBASE, a mais recente publicação de um volume de contos de Fitzgerald em Portugal.

Não será então tempo de dar novo fôlego à sua obra, que em muito ultrapassa o romance, seja retraduzindo-a, seja, o que é talvez mais imporante, trazendo a público traduções inéditas dos seus contos e ensaios?

De facto, ao escrever nos anos 1920, e sobre eles, Fitzgerald construiu uma herança muito relevante, impregnada de uma nostalgia que se vai adensando com a passagem do tempo e que parece atrair e unir os leitores. Em 1941, poucos meses após a morte do autor, Glenway Wescott afirmava:

for other reasons – obscurity of sentiment, facetiousness – a large part of his work may not endure, as readable reading matter for art’s sake. It will be precious as documentary evidence, instructive exemple (1964:326).

Embora a afirmação de Wescott não esteja totalmente desfasada da realidade atual, uma vez que boa parte da obra fitzgeraldiana não parece ter passado a barreira do tempo, talvez se afigure um pouco redutor classificá-la como mera documentação de uma época. Enquanto tal, é de facto inquestionável o seu valor, até porque Fitzgerald se envolveu na «história como consciência da década» (Bradbury 1971:14). No entanto, a distância temporal desse momento histórico parece contribuir para a valorização dos seus escritos: Mahjongg, crossword puzzles, Freud, bathtub gin, Warren G. Harding, and Fitzgerald are inextricably one; the time amounts to a consistent betrayal of the man. Yet the distance that separates his time from ours enables us to rediscover him in a fresh focus and to see in the important things he wrote that other dimension, always there, but obscured until now by the glitter of his surfaces (Aldridge 1963:40).

30 Sendo que «anthologies are a privileged site for intercultural exchanges» (Assis Rosa 2013:3). 31

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Ademais, talvez seja prudente colocar a hipótese de que a obra de Fitzgerald, em particular os seus romances, suscita interesse ainda hoje, continuando a ser traduzida, não só por retratar uma época – a ascensão e queda do idealismo americano –, mas também por ter por base temas “universais”, que dizem respeito à natureza humana. O narcisismo, o fracasso, o poder, a depressão (económica e pessoal), a busca pela beleza e juventude e a eventual consciência da inutilidade dessa demanda são antíteses que acabam por se fundir na ficção fitzgeraldiana e com as quais a maioria dos indivíduos se poderá identificar. Além disso, não raras vezes, são enigmáticas as motivações das personagens, que, deixando-se guiar por fantasias, expectativas e ilusões, acabam desiludidas e/ou arrependidas.

No século XXI, em especial nesta segunda década, época de domínio das redes sociais, de crise social, económica e de valores, época em que impera o narcisismo, questões desta natureza dificilmente seriam mais relevantes. Mas, porque aparentemente frívolos, dir-se-ia que estes temas – a busca pela juventude, riqueza e sucesso, os interesses românticos de jovens – combinam melhor com uma ficção popular do que com uma literatura duradoura. No entanto, refletem os interesses da sociedade e a cultura norte-americanas da época – e possivelmente da atual –, auxiliando assim a construção de uma identidade. A seguinte afirmação de Piper, ainda que datada de 1965, mantém-se relevante hoje:

The great resurge of interest in Fitzgerald’s work is undoubtedly due in part to the fact that the urban values and problems which he describes are more representative of society today that when his work first appeared (Piper 1965:292).

Assim sendo, importa, de facto, continuar a traduzir Fitzgerald. Não apenas os seus romances, mas também os seus contos, que tendem a ser esquecidos, não obstante constituírem uma componente de inegável relevância para o estudo e a preservação da obra do autor, até porque serviam de “oficina” para a restante prosa. O presente relatório procura, assim, contribuir para esse estudo e essa preservação, sendo que alguns dos desafios apresentados pela tradução dos contos em análise se prenderam, além de com questões relacionadas com a própria estilística do autor, com a preocupação de manter atual a obra de Fitzgerald sem ignorar o contexto histórico e social em que foram criados.

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