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m palavras cruzadas, encontrei algumas vezes “moçambicano” para “nacionalidade do cineasta Ruy guerra”; por vezes ele se apresentou como “sou um cineasta brasileiro que nasceu em Mo- çambique”. De família bem constituída – pai alto funcionário por- tuguês na colônia – lá viveu até os vinte anos. Desde adolescente foi parte de um grupo de jovens revoltados contra a dominação colonial e o racis- mo; sua indignação se expressava em contos, poemas, críticas de filmes, um do- cumentário sobre os trabalhadores do cais do porto. A maioria do grupo constituiu a “geração da diáspora”, espalhados pelo mundo. Ruy partiu para se formar cine- asta no Idhec, em Paris. Poucos anos depois, um poema: “A minha saudade / é tão intensa / tão fisiológica / tão crua / que um pedaço de terra moçambicana / eu a comeria / Neste medo/ De perder a lembrança de seu sabor”.

em busca de sua grande paixão – filmar – deslocou-se por vários países em três continentes. Mas foi no Rio de Janeiro que se tornou cineasta e adquiriu prestígio internacional, sendo o primeiro dos cinemanovistas a filmar fora do Bra- sil. Aqui suas saudades amainaram, sentia-se em casa com clima, língua, alimen- tação, presença do negro. Voltou à sua terra natal a cada quarto de século. entre 1976 e 1986 a fim de colaborar na criação de um cinema moçambicano; para o governo de Samora Machel, a tela do cinema seria a lousa que explicaria ao povo iletrado a nova nação, onde se construiria sua memória. Voltou depois por duas semanas em 2011, para ser homenageado por seu trabalho nesse período. Na re- vista Le Nouvel Observateur em junho de 2000 há uma reportagem sobre Les Vies de Ruy guerra. Referindo-se a esse momento diz: “Dez anos se passam, mar- cados por alguns filmes engajados, sem que se saiba exatamente se guerra se tornou um revolucionário que faz cinema ou um cineasta que faz a revolução”. Nesses intermitentes dez anos, realizou uma produção quase que desconhecida.

quando se deu a revolução nacional e socialista realizada pela frelimo e vi- toriosa em 1975, Ruy era um homem de 44 anos, cineasta experimentado e pre- miadíssimo; com passado em Lourenço Marques, no então presente de uma Ma- puto de ponta-cabeça. Na época, gostava de citar a frase do amigo L. C. Patraquim:

“A África precisa tanto de imagens quanto de proteínas”. em entrevista recente, disse ter voltado “numa missão de resposta à minha juventude […] sentia-me obri- gado a estar lá, mas era uma obrigação profundamente agradável. Redimi-me um pouco de estar ausente das lutas da independência […] tinha saído antes [doze anos] e começado a vida noutro caminho. e também muito feliz de ter sido requi- sitado pela frelimo”. No início esteve bastante ligado ao Instituto Nacional de Ci- nema (INC), sem cargo administrativo; como função, a preparação de quadros e a adequação para produção de filmes pela compra de máquinas e material. encar- regado de estabelecer contatos internacionais, recebeu credencial que o levou em missões de serviço fora do país. Segundo se disse na época, procurou criar condi- ções para se fazer cinema, distribuí-lo e exibi-lo “em atitude anti-imperialista”. Para Ros gray, a influência de Ruy foi “decisiva na visão e nas políticas do INC […] o elemento central para explorar as intersecções entre o cinema enquanto arte das massas, as raízes da memória coletiva e a prática revolucionária”.

em entrevista durante festejos da Revolução dos Cravos, Ruy afirmou: “Não nego a necessidade do cinema político em certos contextos, pode ser válido”. fil- mou documentários de curta-metragem sobre a realidade que o país vivia. Opera- ção Búfalo (1978) tratou do abate ecológico de búfalos na região do gorongosa, enorme parque nacional. Cobre o percurso do búfalo desde seu hábitat natural até a comercialização do couro e chifres. um povo nunca morre (1980) mostra a transladação da tanzânia para Maputo dos restos mortais de combatentes da frelimo, durante a comemoração do Dia dos heróis.

Ruy considera tênues as fronteiras entre documentário e ficção. Mueda, memória e massacre (1979) é descrito como o primeiro longa de ficção do Moçam- bique independente, mas parece desafiar qualquer categorização. Registra um espetáculo teatralizado da comemoração anual do massacre dos chamados “indí- genas” num protesto, perpetrado pela polícia colonial em Mueda, norte do país. ganhou prêmios em festival russo, sendo exibido em festivais de hong kong, Los Angeles, Sidney e Melbourne. Recebeu crítica elogiosa na revista americana Va- riety, da qual Ruy muito se orgulha.

em 1982, deu-se sua última filmagem em Maputo: Os comprometidos – Actas de um processo de descolonização. Registrou trinta horas do julgamen- to, durante mais de uma semana, dos indivíduos comprometidos com estrutu- ras do antigo sistema colonial que tinham permanecido no país após a revolução. O governo pensava em filmar só alguns momentos do processo; percebendo seu sentido histórico e seu possível alcance, Ruy sugeriu que se filmasse tudo. Comentou décadas depois: “era uma catarse, um processo psi- canalítico do colonialismo, uma festa, tudo misturado”. Os episódios passa- ram durante dias na tVe, sempre à mesma hora, antes ou depois do noticiário. No início dos anos 1980, tornou-se o elemento-chave na implementação de uma nova fórmula de produção com a criação da produtora kanemo. A produção do INC não ia adiante, arrastada, com dificuldades de material e de infraestrutura; os membros eram funcionários do estado, muita burocracia, muita dependência da frelimo. A empresa se organizou sob tríplice parceria: a maior parte ficou com o governo de Samora Machel, parte com o INC e parte com a Austra, uma produ- tora formada por Ruy no Rio de Janeiro. quando Samora morre, em 1986, Ruy já estava com um pé fora do país. em crônica dos anos 1990 relembrou o que se passou: “uma emoção, que vem da tristeza do fracasso do generoso projeto de uma sociedade não racista e socialista, roída pela guerra, pelo banditismo, pela ingenuidade, pela corrupção, e pelos interesses políticos e econômicos mais po- derosos das potências internacionais”. em 1981, em Maputo, tinha escrito na agenda: “A vontade de reescrever/ Não os versos/ A vida”. No mesmo ano compôs o poema “Meu país”: “eu tenho como país /uma asa negra de vento/ eu tenho como país/ Migalhas de acácias rubras/ eu tenho como país/ espadas fugazes de madrugadas/ eu tenho como país/ um veludo satânico de mulher/ eu tenho como país/ uma bússola gangrenada de esperança/ Na verdade eu só tenho como país/ essa insônia teimosa dentro de um sonho vivo”. e assim foi-se embora de vez. VAVy PACHECo BoRGES é historiadora e autora de Ruy guerra: paixão escanca- rada, no prelo pela editora Boitempo.

“que a luz