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2. ASPECTOS PSICOSSOCIAIS DA VIVÊNCIA DO PACIENTE RENAL CRÔNICO

2.3 O paciente e o transplante

O transplante em geral surge para o paciente renal como esperança de vida e de futuro, possibilidade de uma melhor qualidade de vida, ou até mesmo recurso para se livrar da máquina de hemodiálise. Dessa forma, o desejo da realização do transplante está presente para a maioria os pacientes que se

submetem a realização da hemodiálise. A perspectiva de um transplante por vezes torna a hemodiálise suportável, considerada uma etapa de tratamento a ser ultrapassada pelo transplante.

Entretanto, várias são as exigências impostas para a realização do transplante, como a obrigatoriedade de que seja o doador da própria família ou somente de cadáver, o que de certa forma impossibilita a realização do transplante para a maioria dos pacientes. Há ainda a longa espera, que ocorre a partir do momento em que o nome do paciente é incluído na lista para a espera do rim de cadáver.

Segundo a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos - ABTO (2013) em sua publicação “Registro de Brasileiro de Transplantes” a lista de espera de transplante de rim no Brasil em março de 2013 incluía 19.525 pacientes. Em Minas Gerais, também em março de 2013, a lista de espera para o transplante de rim era de 2.479 pacientes.

Uma publicação especial da ABTO (2012) apresenta o dimensionamento de transplantes no Brasil e em cada estado, com o propósito de oferecer subsídios para a implementação de políticas para sustentar o crescimento que vem ocorrendo nos últimos anos. O número absoluto de transplantes renais no Brasil em 2012 foi de 5385, sendo 1488 de doadores vivos e 3897 de doadores falecidos. O número relativo foi de 28.2 (por milhão de população - pmp) transplantes de rim no Brasil. Em Minas Gerais foram realizados 562 transplantes em 2012 com um número relativo de 28.7 transplantes (pmp).

A criação da lei de transplantes no Brasil data de 1997, quando foi detalhado o Sistema Nacional de Transplantes-SBT para desenvolver o processo de captação e distribuição de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para finalidades terapêuticas e transplantes. A partir de então o Ministério da Saúde começou o trabalho para implantar os aperfeiçoamentos necessários como: lista única de transplantes, a criação de centrais estaduais de transplante, criação de normas para a atividade, registro e autorização de serviços e equipes especializadas e estabelecimento de critérios de financiamento.

Segundo ainda a ABTO (2012) o transplante renal é uma opção de tratamento para a doença renal crônica, oferecendo melhor qualidade de vida, taxas inferiores de mortalidade em longo prazo e menores custos para a saúde

pública. Apesar de ter havido um aumento no número de transplantes renais na última década, ainda está longe de ser o ideal, pois o número de pacientes na fila aumenta em maior proporção.

Um dos maiores problemas para a doação é a falta de informação da família, tanto com relação ao processo do transplante, quanto do desejo não expresso do ente que se foi. Desse modo o paciente deve se manifestar, em vida, para a família, a sua intenção de se tornar doador. Assim sendo, para o doador falecido (pacientes que vão a óbito em quadro de morte encefálica), é preciso que haja a autorização familiar para retirada de seu órgão (rim).

Segundo Castro (2005) para aumentar a doação do rim seria necessário conscientizar a população e adaptar as estruturas organizacionais para garantir o desenvolvimento de programas de transplante e unificar esforços dos profissionais na busca de soluções, em colaboração com o governo.

Como obstáculo para a realização de transplantes, soma-se ainda a necessidade de uma série de exames solicitados tanto ao paciente quanto ao doador familiar. Ressalte-se ainda que vários desses exames são agressivos e muitas vezes revelam que o doador não é compatível, não permitindo a realização do transplante, seja pela incompatibilidade do fator Rh, ou ainda por alguma intercorrência clínica, como alteração da pressão arterial, problemas cardiovasculares, dentre outros.

Outro obstáculo é a necessidade de vários deslocamentos a grandes centros urbanos em busca de recursos tecnológicos e médicos especializados para sua realização. Além disso, a possibilidade do transplante depende de que seja constatada por médicos a necessidade de recebimento do órgão e a possibilidade clínica para o transplante. Sem tal parecer o paciente nem é colocado “na fila do transplante”.

Dessa forma, sobre a trajetória do diagnóstico até o possível transplante, ressaltam Quintana, Weissheimer e Hermann (2011, p. 24):

... que o caminho do paciente é atravessado por uma série de outras questões que colocam em evidência sua problemática pessoal. Além disso, o querer do paciente é confrontado como um fato imutável: o de que apenas um novo rim dará a ele vida saudável novamente. Encontra-se aí um grande conflito, pois esse rim, muitas vezes, não poderá ser desejado sem colocar em risco a saúde de outro ser que,

em muitos casos, é de um familiar ou uma pessoa afetivamente próxima.

Obstáculos externos e conflitos psicológicos estão presentes em toda essa trajetória e requerem um manejo clínico com a participação do psicólogo. Slomka (2011, p. 24) afirma que:

apesar de a área de transplantes ser bastante abordada pela Psicologia e suas possíveis intervenções nesses casos, o paciente em hemodiálise necessita ainda maior cuidado no que se refere às suas necessidades emocionais, pela cronicidade e longa duração do tratamento proposto.

Há no Brasil mais um obstáculo ao transplante. A modalidade de transplante por meio de doador cadáver precisa realizar-se por meio de doação ao Estado e somente pode ser feita após a morte cerebral do doador, que pode ser natural ou acidental, e com o concomitante funcionamento dos órgãos que serão doados (MARINHO, 2008). Nestes casos, o diagnóstico da morte encefálica, segundo o SBT, deverá ser constatado e registrado por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina e o transplante autorizado pelo Sistema Nacional Transplantes-SNT e pelo SUS.

Estar na lista de espera do transplante de cadáver é outro fator de estresse e angústia para os pacientes. Em alguns casos a ansiedade da espera pode atingir um ponto tão elevado, segundo Quintana, Weissheimer e Hermann (2011), que o paciente passa a desacreditar na possibilidade de que o transplante seja realizado, muito provavelmente como resultado de uma defesa para enfrentar a angústia frente à incerteza.

O transplante renal segundo Pascoal et al. (2009, p. 18):

é tido pelos pacientes como a solução para suas angústias e sofrimento. São grandes os benefícios que a cirurgia propicia ao

rendimento físico, apetite, sono e vida sexual. A restrição de alimentos e de líquidos deixa de existir ou é atenuada e o nível de autonomia, anteriormente prejudicada pela hemodiálise apresenta uma melhora substancial. Isto faz com que haja um grande desejo por parte de muitos pacientes pelo transplante, porém como o tempo de espera para doação de órgão cadáver é relativamente grande, isto acaba gerando novas angústias e sentimentos que interferem na estabilidade emocional.

Cabe salientar que o transplante renal pode ser realizado a partir de doadores vivos ou doadores falecidos. No caso do doador vivo passa a viver com apenas um rim, o que é perfeitamente compatível com uma vida normal. Por ser o doador vivo familiar o paciente crônico renal tem maiores chances do resultado do transplante ser melhor do que àquele que se obtêm com rim de doador falecido.

Segundo o Sistema Nacional de Transplantes - SNT (2013) a primeira lei que regularizou o transplante de órgãos foi a n.0 4.280/63. Em seguida, a Lei n° 5.479/68 regulou não apenas a retirada e transplante de tecidos, órgãos e partes do corpo do cadáver, mas também a retirada em vida. A Lei n° 8.489/92 tratou pela primeira vez da constatação da morte encefálica, requisito essencial para iniciar o processo de doação de órgãos.

Em janeiro de 1998 entrou em vigor a Lei n. 0 9.434/97, e Lei n. 211/01 que ampliava os critérios da doação em vida, desde que o doador seja maior de idade, tenha grupo sanguíneo compatível e testes de compatibilidade imunológica adequada e qualquer pessoa juridicamente capaz pudesse doar para transplante um de seus órgãos duplos, desde que a doação não comprometesse a sua saúde e que fosse de forma gratuita.

Segundo a ABTO (2012), no que se refere ao doador vivo é necessário que ele se encontre em bom estado de saúde física e mental; ter compatibilidade sanguínea com o receptor; realize todos os exames para este tipo de cirurgia; seja maior de vinte e um anos; tenha passado pelo estudo imunológico e que seja voluntário.

Nesta perspectiva, o contexto da espera pelo transplante é permeado por conflitos gerados diante da incerteza da realização ou não do transplante. Alguns têm a “sorte” de serem chamados, outros quando chamados desistem,

ou passam por exames ou testes de triagem exigidos pelo SNT (2013) para diagnóstico de possível infecção ou infestação.

Quando comunicados sobre a possibilidade do enxerto de um novo rim inicia-se toda a rotina de exames, viagens até os grandes centros, exames novamente e, no final de tudo, o rim acaba sendo transferido para outro colega que possui a compatibilidade maior. E, mais uma vez a desesperança se faz presente, e seu nome volta para lista de espera novamente, sabe-se lá por quanto tempo mais. Por outro lado, quando o paciente opta pelo transplante e há um doador familiar compatível, surge o medo de lesar o organismo do ente querido, por se tratar de uma cirurgia de alta complexidade, sem garantia de estabilidade ou não da permanência do órgão enxertado.

Conforme Quintana, Weissheimer e Hermann (2011, p. 24) no processo de transplante:

um dos elementos que aparecem é o medo da cirurgia e do que possa acontecer com o doador quando a doação é em vida; embora o transplante renal seja visto pelos médicos como um procedimento o qual irá proporcionar ‘qualidade de vida’, entre os pacientes é encarado como algo maior, como ‘restituidor de vida’. Ou seja, os pacientes transplantados veem, no transplante, o retorno ao estado anterior à doença, que as tornará ‘normal’ novamente. Restituindo- lhes a vontade de viver, acrescida da libertação da máquina de hemodiálise.

Assim sendo, o transplante passa a ser visualizado por todos os pacientes como a esperança de uma vida melhor com qualidade, um sonho, diriam alguns, ainda que haja o medo da cirurgia, das dificuldades pós- transplante e de histórias de rejeição.

A esperança de uma nova vida com o transplante supera qualquer intercorrência que possam vir a ter, pois de acordo com Cabral (2009, p. 113) a “esperança representa dois polos opostos, que vão se movendo entre a esperança e a desesperança da realização do transplante para os pacientes renais crônicos”. Por isso pode-se dizer que as formas como os pacientes vivenciam as experiências que ocorrem em suas vidas antes e depois do transplante têm efeitos reais em seus comportamentos e permeiam todo o seu cotidiano.

Outro ponto a se considerar são os outros pacientes que permanecem, na hemodiálise, os que nem são convocados à etapa de transplante. Como não lembrar que seu nome não consta na lista de espera, que não podem por enquanto, entrar na fila? São indagações que se perdem sem respostas. Não sabem por quanto tempo precisarão esperar. Mas nem por isso perdem a esperança.

Entretanto, mesmo um transplante bem sucedido não significa a cura propriamente dita, pois o paciente continua a viver com uma doença crônica, conforme assinala Ravagnani, Domingos e Kiiyazaki (2007). As consultas médicas são necessárias e frequentes principalmente nos primeiros meses, quando o contato com o sistema de saúde diminui. Soma-se o autocuidado de forma a prevenir a rejeição do novo rim, considerando o envolvimento da família e da equipe de saúde.

A necessidade de retomar a vida normal passa a ser fundamental, assim como o convívio com a família. Mas é um processo que gera ansiedade, é lento e exige novas readaptações, podendo ou não restituir as mesmas atividades de antes, e que gera novas preocupações e novas responsabilidades Há necessidade de uso frequente de remédios imunossupressores, com os quais todo paciente transplantado tem de conviver para o resto da vida.

Desse modo, Quintana e Muller (2006, p. 75) afirmam:

o transplante renal está associado à diminuição na prevalência de transtornos mentais, em especial dos níveis de depressão em paciente renais crônicos; esta melhora pode demorar um período de alguns meses para ser observada, pois a fase pós-cirúrgica requer a readaptação do indivíduo a sua nova condição de saúde e o enfrentamento de outras ansiedades; o transplantado necessita enfrentar o medo da perda do órgão enxertado; o receio de se afastar da equipe médica; a insegurança quanto à capacidade de seguir em casa todas as orientações dadas; as preocupações em retornar a seus papéis na família, no trabalho e na sociedade.

No entanto, Quintana e Muller (2006, p. 75) completam, é notório dizer que “alguns pacientes sofrem a rejeição do enxerto transplantado e passam a deparar com uma situação especial, em que sonhos e expectativas idealizadas de cura da doença são desconstruídos”. A rejeição ao rim enxertado é seguida de tristeza e decepção podendo o paciente apresentar comportamentos

agressivos em relação à equipe de saúde, e aos seus familiares, acusando-os de negligência e descuido.

Há por vezes uma imperiosa necessidade de “culpar alguém” pelo transplante não sucedido, seja a equipe, que não acompanhou corretamente todo o procedimento, ou à família. Possivelmente encontrar culpados alivie um pouco os sentimentos de vazio, frustração e insatisfação que acomete o paciente que retorna à hemodiálise.

A esperança que até então permeava os dias desvanece, e a espera continua, assim o retorno à hemodiálise é também retorno à desesperança (CABRAL, 2011). Passam a vivenciar novos dias de enfrentamento da máquina, pois é demorado o processo de se conseguir um novo rim que seja compatível.