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ROMANCE HISTÓRICO E PÓS-MODERNIDADE

2. PACTO DE LEITURA

O modo como a manipulação a que aludimos acontece define, afinal, uma sensibilidade ou "leitura" pós-moderna, a qual apela, inquestionavelmente, à competência comunicativa do leitor e aos seus conhecimentos de outros textos. Neste sentido, as marcas de género paratextuais suscitam uma forma específica de leitura, criando um leitor implícito capaz de cooperar com o texto ao aceitar as regras que este propõe. Estamos, então, no âmbito do contrato ou pacto de leitura que, no caso de Vício, por se tratar de um romance histórico com carácter (pseudo)autobiográfico, equivale a um macro-acto de fala em que se conjugam uma base histórica, documentada e verificável, com uma estrutura diarística ficcional. Esta situação híbrida poderá provocar reacções diversas nos leitores, desde logo confrontados com dois elementos paratextuais de grande impacto: por um lado, o lexema "vício" e, por outro, o lexema "ficção", este último bastante esclarecedor no sentido de "orientar" o leitor na relação a estabelecer com a obra, nomeadamente no que respeita à filiação genérica do texto; trata-se, indubitavelmente, de uma ficção, pressuposto que, no entanto, não impede que o texto incorpore elementos que podem remeter o receptor para marcos referenciais extratextuais, como, a seu tempo, comprovaremos ser aqui o caso.

O paratexto, que Gerard Genette (1982) considerou o "umbral" ou a zona de transição entre o interior e o exterior do texto, informa acerca do projecto semântico e pragmático da obra, ao mesmo tempo que aclara os termos do contrato de leitura.

UMA LEITURA DE VÍCIO DE PAULO JOSÉ MIRANDA

Mas na obra em análise, e contrariamente ao que é comum ao romance histórico, só parcialmente isto acontece, uma vez que o lexema "vício" comporta em si uma carga profundamente conotativa, como pensamos ter ficado claro quando nos debruçámos sobre os sentidos diversos que o mesmo vai adquirindo ao longo da obra.

Embora o leitor seja desde logo alertado para o facto de estar perante uma "ficção", é evidente que, tratando-se de um romance histórico, há que destacar o papel decisivo que tem na recepção deste tipo de discurso narrativo a "enciclopédia" histórica e cultural de que aquele dispõe. O romance histórico constrói-se orientado a destinatários que se supõe dotados de um determinado saber sobre o assunto histórico eleito. Assim, o discurso forja-se a partir e com base nessa competência ou nesse saber supostamente partilhado, por um lado, confirmando-o e respeitando-o de modo a fazê-lo activo no texto (ou seja, o leitor reconhece o que já conhece, encontra o que espera), por outro lado, ampliando-o e completando-o (ao incorporar aquela informação que é mais improvável que a generalidade dos leitores possua e que é necessária para a compreensão da diegese ou para a compreensão da acção e das condutas da(s) personagem(s), e que depende, em maior ou menor grau, do extratexto historiográfico de que precedem) e, finalmente, reelaborando-o (utilizando, para isso, os procedimentos próprios da ficção) ou, inclusive, questionando-o, desmontando-o ou subvertendo-o. Assim, haja o uso que houver dessa competência, o discurso alimenta-se dela e necessita dela para funcionar como romance histórico.

E é também isto o que acontece em Vício, para cuja leitura e compreensão se torna necessária uma "enciclopédia" histórica e cultural bastante vasta, na medida

em que os acontecimentos históricos aí abordados têm uma natureza ontológica "real" e as pessoas neles intervenientes tiveram uma existência igualmente "real". Aliás, o nome da personagem histórica incorporado no mundo ficcional gera no leitor expectativas diferentes das que podem gerar uma personagem imaginária, cuja existência começa no instante em que é pela primeira vez nomeada no texto. O nome próprio activa as molas da memória, activa redes conotativas que integram a competência cultural dos leitores e estabelece determinadas restrições ao romancista, na medida em que o desenvolvimento e o desenlace de um facto histórico, assim como a trajectória biográfica de uma personagem "real" estão traçados de antemão e os leitores esperam vê-los confirmados no romance. Por isso mesmo, espera-se que o ficcionista respeite as características essenciais das personagens ou do acontecimento histórico, cuja identificação, tal como acontece em Vício, seja possível por parte do leitor. Deste modo, o mundo ficcional do romance histórico acaba por ficar submetido a uma série de restrições de carácter semântico-pragmático desde o momento em que se trabalha com entidades (personagens, acontecimentos, espaços) públicas e conhecidas na enciclopédia dos leitores.

Mas é evidente que este género de romance, como romance que é, não está obrigado a seguir com exactidão os dados históricos, nem a respeitar as versões oficiais que se deram de personagens ou acontecimentos, pelo que não requer uma base histórica documentada. Admite, no entanto, diferentes graus de compromisso, embora pretendendo provocar um efeito de realidade, uma descodificação ou actualização realista por parte do leitor, o qual projecta ou confronta a imagem do passado que possui com a que lhe é oferecida pelo discurso narrativo. Porém, o

UMA LEITURA DE vicio DE PAULO JOSÉ MIRANDA

leitor, sabendo que se trata de um simulacro, deverá, como afirma Maria de Fátima Marinho, «entrar no jogo proposto pelo discurso, sob pena de quebrar a ilusão romanesca»60 que o mesmo propõe.

No entanto, não devemos esquecer que o efeito de realidade do romance histórico não depende tanto da exactidão histórica dos acontecimentos, mas das formas como eles são transmitidos, isto é, dos procedimentos narrativos de modalização, temporalização e espacialização que transforma a História em discurso. O real, neste caso o real de um mundo pretérito, não é uma questão de

mimesis e sim de semiosis, ou seja, de produção de sentido.

Maria de Fátima Marinho, O Romance Histórico em Portugal, Porto, Campo das Letras, 1999, p.216.

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