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CAPÍTULO V – CONTEXTUALIZAÇÃO

1. Sobre o Padre Américo e o legado da Obra da Rua

Popularmente conhecido como Padre Américo, cujo nome completo é Américo Monteiro de Aguiar, nasceu em 23 de outubro de 1887 na freguesia de S. Salvador de Galegos, concelho de Penafiel, distrito do Porto. Oriundo de uma família católica, de pais agricultores ricos, é o último dos oitos filhos do casal Ramiro Aguiar e Teresa Rodrigues. Desde muito novo, demostrava profundo interesse pela carreira eclesiástica, contudo, seu pai nunca foi condescendente com essa decisão.

Após seus estudos, em 1902, é mandado, por decisão de seu pai, ao Porto para trabalhar no comércio. Em 1906, a fim de melhores ganhos e vida, despede-se de sua família a caminho de África, onde dedica-se com afinco ao seu trabalho por dezassete anos. Após a morte de seus pais, abandona o emprego e regressa a Portugal em 1923, aos 36 anos de idade, onde vai morar com uma prima em Paço de Sousa.

Na época, Portugal apresentava-se com uma das economias mais atrasadas da Europa, envolta em problemas ao redor da criança e do jovem, assente em uma realidade social e económica de miséria e pobreza. É assim que Américo descarta de uma vez por todas a intenção que tinha em associar-se a um negócio de comércio e exportação de produtos e deixa-se guiar por sua ideia de ser padre.

Desde sua estadia em África, mantinha uma grande admiração pela obra franciscana missionária. Isto posto, em 1925, após recusa do bispo do Porto em aceitá- lo no seminário do Porto devido a más experiências com vocações tardias, é aceito pelo bispo de Coimbra com reservas e expectativa.

Durante seus anos de estudo em Coimbra, como seminarista e como Padre, diz- nos Martins (2003):

Projeta sua vida em prol dos necessitados e, posteriormente, das crianças vadias, incutindo-lhes uma educação humanista, naturalista e personalista; (…) revelando uma forma de padre diferente, com um alto conceito do sacerdócio, que realizava na prática, denunciando as misérias humanas e a pobreza em que muitas famílias viviam, incapacitadas de darem um futuro aos seus filhos. (p. 97)

Nessa ocasião, sensível aos flagelos sociais, em 1932, o Bispo D. Manuel “(…) entrega-lhe a ‘Sopa dos Pobres’ (…) destinada à assistência alimentar aos pobres e indigentes” (ibid., p. 101-102). Foi assim, aos 42 anos de idade, que o Padre Américo deu início às suas ações assistenciais, caritativas e socioeducativas e pôde encontrar seu rumo na vida sacerdotal.

Padre Américo acreditava que a pobreza e a miséria estavam imersas na sociedade, mas eram consideradas problemas à margem, ou seja, os ricos não queriam enxergar a realidade de vida dos pobres. Aqui incide o seu grande objetivo de filosofia social: “(…) levar a sociedade a conhecer a realidade do pobre, para que ela reagisse com medidas humanas, sociais, económicas e assistenciais” (ibid., p. 103).

Através do jornal ‘Correio de Coimbra’, buscava combater as desigualdades e as injustiças, sendo sempre a favor do pobre. É, somente, em 1940, em Coimbra, que funda a primeira Casa do Gaiato. Direcionada “(…) à criança pobre, à vadia, à marginalizada, à abandonada e órfã, livrando-as dos reformatórios, dos asilos, dos sanatórios e da miséria social e moral do ambiente familiar” (ibid., p. 117); seu principal objetivo era proporcionar a essas crianças uma família de verdade, dando-lhes amor, incutindo-os o sentimento de responsabilidade, de liberdade, de amor à natureza, ao próximo, a escola e ao trabalho, de modo que, chegassem à idade adulta e se pudessem integrar como cidadãos aptos a vida em sociedade.

Padre Américo, veio a falecer em 16 de julho de 1956, aos 69 anos de idade, vítima de acidente de carro próximo a S. Martinho do Campo, no concelho de Valongo. Seus restos mortais encontram-se em campa rasa na Capela da Casa do Gaiato de Paço de Sousa, com a inscrição: Era 1956/Américo Monteiro d’Aguiar/Presbítero. Sendo uma das mais influentes figuras da igreja portuguesa do século XX é homenageado e lembrado até hoje; sua morte representou uma grande perda e propiciou uma comoção nacional estando seu processo de canonização em curso, desde 1986.

Padre Américo ou o amigo dos pobres, como ficou conhecido, deixa uma grande riqueza para a Igreja Católica, não se tratando somente de um património material, mas

um património cultural inestimável de grande valor e sentido para a sociedade portuguesa, mas também para o mundo, que queira como o Padre idealizar um projeto educativo a exemplo do que é a Obra da Rua. Como diz-nos Mendes (2013):

O património cultural, além do seu valor próprio, apresenta ainda um valor instrumental, mas imprescindível, relativamente: à história e ao conhecimento do passado; à memória e à identidade; às raízes das comunidades e à compreensão do seu papel, na actualidade como no futuro; ao desenvolvimento e ao bem-estar. (p. 86)

Em Portugal, no distrito do Porto encontra-se a Casa do Gaiato de Paço de Sousa (Penafiel) e a Casa do Gaiato de Beire (Paredes); em Coimbra a Casa do Gaiato de Miranda do Corvo e em Setúbal, a Casa do Gaiato de Setúbal. Não mais pertencente a Obra da Rua encontra-se em Lisboa, a Casa do Gaiato em Santo Antão do Tojal (Loures), a mesma foi entregue às oligarquias há alguns anos. Após a morte de Padre américo, fundam-se em África, a Casa do Gaiato de Malange e Casa do Gaiato de Benguela em Angola; e Casa do Gaiato de Maputo, em Moçambique.

Além das Casas do Gaiato, a criação dos Lares do Gaiato que “(…) tinha por finalidade servir de transição para vida activa na sociedade aos rapazes considerados aptos, com o objetivo de adquirirem a sua própria autonomia ou emancipação” (Martins,

2003, p. 144); demonstram o quanto Padre Américo era proeminente do seu tempo.

Quer no âmbito assistencial, caritativo, socioprofissional ou socio educacional, a herança dada a esses rapazes através da educação deixa clara a imagem do Padre como de um educador social, que através dos seus ensinamentos religiosos, éticos-morais, de beneficência e amor ao próximo, muitos deles transmitidos pelo seu próprio exemplo de vida, orientava muitos deles em sua reinserção na sociedade.

No Porto, há um Lar do Gaiato até então em ativa, situada na Rua D. João IV - nº 682. A Casa é ampla, dividida em 04 andares com 12 quartos, sala de estar, biblioteca, sala de estudo, sala de TV e jogos, refeitório, capela e um grande quintal, com árvores de kiwi e outras plantações. Atualmente vivem por lá 02 gaiatos, onde 01 estuda na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto e o outro trabalha em uma fábrica do Porto.

Ainda há algumas Casas do Gaiatos que foram pensadas e criadas com o propósito de que os gaiatos pudessem gozar suas férias ao fim do ano letivo. Designadas por Colónias de Mar, “nelas os gaiatos podem desfrutar das suas merecidas férias (em turnos de quinze dias), seguindo o mesmo regime de autogoverno familiar” (Martins, 2003, p. 150). Aos gaiatos de Paço de Sousa e de Beire, está a Colónia de Azurara em

Vila do Conde; para os gaiatos de Mirando do Corvo, está a Colónia de Mira em Aveiro; e para os gaiatos de Setúbal, está a Colónia no Portinho da Arrábida.

Preocupado também com os doentes, idosos, inválidos e deficientes abandonados, Padre Américo cria para estes um abrigo a que deu o nome de Calvário e que de acordo com Padre Júlio pode ser considerada a perpetuação da sua Obra da Rua.

Portanto, a Obra é para os pobres, claro, particularmente para os rapazes, mas não só para os rapazes, para os pobres em geral, que nós estamos, desde o início, sempre a acompanhá-los, ajudando-os de diversas formas. Portanto, isso continuamos a fazê-lo. Ajudar as famílias, ajudar pessoas que estão em situação de pobreza e precisam de uma ajuda, de um sentido, para continuarem a lutar pela vida.

Vista como sua última inspiração, sua origem está ligada igualmente, ao fato, de que algumas crianças acolhidas pelo Padre apresentavam privações mentais e físicas. Situada em Beire, freguesia portuguesa do concelho de Paredes, é uma das obras mais simbólicas deixada por Padre Américo em prol dos jovens incuráveis que de facto não tem ninguém que os apoie.

Apresentando uma proposta socioeducativa semelhante das Casas do Gaiato, o propósito é que um doente cuido do outro, “(…) por ser mais íntima e concreta a sua experiência de sofrimento humano e, por isso, mais compreensiva a solidariedade nos momentos do dia” (Martins, 2003, p. 145). São, portanto, os Calvários, lares onde busca-se oferecer condições de vida humanas, morais, materiais, dignificando os doentes como pessoas.

Outra grande realização do Padre que possibilitou a muitas famílias necessitadas a aquisição da casa própria, foi a idealização do Património dos Pobres. Com ajuda do povo benfeitor e de algumas autoridades civis e religiosas, Padre Américo promove uma campanha social que, através das ofertas recebidas, constrói a volta de quatro mil casas por todo o país. “Foi uma das maiores iniciativas sociais e habitacionais do séc. XX, em prol das famílias pobres e sem tecto, em Portugal” (ibid., p. 171).

Através de todas essas ações e trabalho, é notório perceber o quanto Padre Américo amava os pobres e acreditava nos rapazes, o quanto queria oferecer-lhes um ambiente familiar em que pudessem ter uma vida propícia, no mercado de trabalho, na sociedade, na constituição de uma vida íntima em família, com mulher e filhos. Padre Américo dedicou com insistência e perseverança uma parte de sua vida à vida de rapazes que inegavelmente sem a sua ajuda estariam entregues à vida da delinquência, dos presídios, dos maus costumes.

Em vida, publicou várias notas, crónicas, e artigos sobre a Obra da Rua. Seu lema era “não existem rapazes maus.” O jornal “O Gaiato”, cuja comercialização continua assídua até hoje é uma fonte de renda para a instituição e uma porta de entrada para que outras pessoas conheçam o que foi e o que é a Obra. Sua impressão e

dobragem é feita na oficina de tipografia da Casa do Gaiato de Paço de Sousa, pelos

antigos gaiatos e gaiatos da Casa e a venda mantém-se pelos assinantes que os recebe quinzenalmente em sua residência. Seus livros, alguns em 4ª e 5ª edições, denunciam a precaridade de vida a que muitas crianças e jovens viviam em Portugal na década de 40, mas também de forma agradável, retratam a vida quotidiana nas Casas e nos Lares do Gaiato.