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Padre Antonio Vieira: composição de intertextos sobre trecho

CIDADE, Hernani. Padre Antônio Vieira: estudo biográfico e crítico:

acompanhado dum sermão e sua apologia acerca do Quinto Império. 2. ed. Lisboa: Divisão de Publicações e Biblioteca Agência Geral de das Colônias, 1940. p. 170-175.

Sermoens do P. Antonio Vieyra da Companhia de Iesv, prégador de Sua Alteza: segunda parte (1682).

Eis as posições de Vieira em face do texto bíblico - e eis que também os estímulos que o levam a rebuscá-lo frequentemente com menos respeito pelo sentido, que lhes desvirtua, e sempre com inesgotável abundância, pois admiràvelmente os conhece e eles lhe servem galas do estilo, de provas do recurso - e até, por seu prestígio divino, de defesa nas mais perigosas atitudes de crítica moral, política e social. Rodeado das sagradas autoridades que invocava, bíblicas e patrísticas, podia Vieira disparar frechadas contra o clero, contra a nobreza e contra o povo, sem escapar, como já vimos, o próprio Rei, a quem mais de uma vez diz o seu despeito e dirige indirecta mas inteligìvelmente as suas repreensões.

Com perfeito domínio desta arte e as solicitações do gosto dominante, bem se compreende nem sempre Vieira se imponha, perante os seus auditórios, a adequação, a que já aludimos, do espírito aos imperativos da

existência colectiva. Mais de uma vez, fugindo a tal pragmatismo, o sentimos realizando no púlpito o que depois se havia de chamar a arte pela arte, fascinando os ouvintes com a graciosa destreza da sua esgrima intelectual. Ei- lo então um orador de tipo seiscentista, para quem a arte se desprende de qualquer objetivo de utilidade, e é puro jogo, prazer espiritual, gozado na consciência da própria agilidade da fantasia, agudeza do entendimento ou fidelidade e riqueza da memória.

É ler o sermão de Nossa Senhora do Ó, pregado no Brasil em 1641 (I). Essa letra, em sua forma circular, é a representação do <<ventre virginal que compreendeu o Imenso; o O dos desejos da mesma Senhora na expectação do parto (Ó quando chegará aquela hora! Ó quando! Ó quando! ...) foi uma círculo que compreendeu o Eterno>>, pois << os OO dos desejos da Senhora na multiplicação do tempo (eram) como as cifras da aritmética que também são OO>>. De audácia em audácia, o orador chega ao encarecimento máximo e quase sacrílego: - o infinito do ventre virginal abrange o infinito que é o Filho divino, porque é maior do que ele.

Outra exemplificação destes jogos de engenho encontrará o leitor no Sermão de S. Pedro, pregado quatro anos depois daquele e assim quando do orador vicejavam ainda as verduras da mocidade de que se repreenderá mais tarde. Vale a pena transcrever:

<<Suposto andarem tão validas no púlpito e tão bem recebidas do auditório as metáforas, mais por satisfazer ao uso e gosto alheio, que por seguir o gênio e ditame próprio, determinei, na parte que me toca desta solenidade, servir ao Príncipe dos Apóstolos também com uma metáfora. Busquei-a primeiramente entre as pedras, por ser Pedro pedra, e ocorreu-me o diamante; busquei-a o que ligares será ligado, tudo o que desatares será desatado (ibidem). entre as árvores, e ofereceu-se-me o cedro; busquei-a entre as aves, e levou-me os olhos a águia: busquei-a entre os animais terrestres, e pôs-se-me diante o leão; busquei-a entre os planetas, e todos me apontaram para o sol; busquei-a entre os homens, e convidou-me Abraão; busquei-a entre os anjos, e parei em Miguel. No diamante agradou-me o forte, no cedro o incorruptível, na água o sublime, no leão o generoso, no sol o

excesso de luz, em Abraão o patrimônio da fé, em Miguel o zelo da honra de Deus. E, posto que em cada um desses indivíduos, que são os mais nobres do céu e da terra, e em cada uma de suas prerrogativas achei alguma parte de S. Pedro, todo S. Pedro em nenhuma delas o pude descobrir. Desenganado, pois, de não achar em todos os tesouros da natureza alguma tão perfeita, de cujas propriedades pudesse formar as partes do meu panegírico -que esta é a obrigação da metáfora - despedindo-me dela, e deste pensamento, recorri ao Evangelho para mudar de assunto, e que me sucedeu? Como se o mesmo Evangelho me repreendera . de buscar fora dele o que só nele se podia achar, as mesmas palavras do tema me descobriram e ensinaram a mais própria, a mais alta, a mais elegante e a mais nova metáfora que eu nem podia imaginar de S. Pedro. E qual é? Quase tenho medo de o dizer. Não é coisa alguma criada, senão o mesmo Autor e Criador de todas.Ou as grandezas de S. Pedro se não podem declarar por metáfora, como eu cuidava, ou, se há ou pode haver alguma metáfora de S. Pedro, é só Deus. Isto é o que hei de pregar, e esta a nova e altíssima metáfora que hei de prosseguir. Vamos ao Evangelho.>>

E o que esta rica imaginação audaciosíssima encontra, na rebusca da metáfora nova; aquilo que ela vai revelar aos seus ouvintes, habituados às extravagantes novidades do púlpito, e que dos oradores do tempo nada mais esperavam do que os espirituais prazeres de engenho e imaginação; aquilo para cuja expectação hàbilmente os excitou em ansiedade, é esta novidade altíssima, com efeito, impossível de encontrar na Terra ou no Céu: S. Pedro é, em razão de metáfora, a quarta pessoa da S. S. Trindade! ...

Na competição, em que não podia resistir a tomar parte, de conquistar o público pela exibição da metáfora nova e altíssima, ganhou a palma o mesmo orador que mais censurou tal processo de pregar!...

Nesta colecção de sermões encontrará o leitor mais de um trecho onde o dialecta procura os efeitos a que os dois que acabo de citar são integralmente consagrados. Assim, no Vol. III, o Sermão Décimo Quarto, da série - Maria, Rosa Mística.

Mas trechos, apenas; porque o intuito essencial de cada peça oratória aqui recolhida é o intuito normal de tôda a sua obra: servir uma idéia, defender uma causa. Por isso, mesmo que, homem do seu tempo, cativo do encanto das subtilezas, em cujo exercício fora educado, ele jogue freqüentemente com os textos, jamais deixa de ser perfeitamente claro, mesmo nas exposição das mais finas criações do engenho.

Quando no Brasil preparou para a publicação os seus Sermões, escreveu no prólogo:

<< Se gostas da afectação e pompa de palavras e do estilo que chamam culto, não me leias. Quando êste estilo mais florescia, nasceram as primeiras verduras do meu ( que perdoarás quando as encontrares); mas valeu-me tanto sempre a clareza, que só porque me entendiam comecei a ser ouvido e o começaram também a ser os que reconheciam o engano e mal se entendiam a si mesmos>> (I).

A clareza verbal, mesmo ao jogar de conceitos subtis, foi, na verdade, a sua preocupação de sempre. E nada melhor o demonstra do que o sermão prègado a uma confraria de escravos:

Procurarei que seja com tal clareza (o mostrar aos pretos como se

devem portar no cativeiro) que todos me entendais, Mas quando assim

não se suceda.... ao menos ... contertar-me-ei que me entendam vossos senhores e senhoras; para que êles mais devagar vos ensinem o que a vós e também a êles muito importa saber.>> (Vol. III, pág. 52)

Nada mais errado do que a acusação, a cada passo repetida, contra o gongorismo de Vieira. Com efeito, não lhe formou Gôngora o estilo em tão larga medida como a Escolástica seiscentista, cultora da dialéctica pela dialéctica, cuja actividade subtilizadora mais de uma vez havia de ser comparada ao afiar de uma faca que nada havia de cortar. Era ela que dava aos seus sermões o aparato exterior, quási sempe supérfulo e mais oferecido às exigências do gôsto