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Paisagem Mental (A máquina de cena setecentista reinventada)

Cenografia para a peça D. João, de Molière, encenação de Ricardo Pais João Mendes Ribeiro

Universidade de Coimbra

O dispositivo cénico concebido para o ciclo Convidados Mortos e Vivos, no qual se inclui a peça D. João, de Molière momento inaugural e projecto matricial, foi “palco” de diversos eventos, dos quais se destacam Fiore Nudo, espectáculo de ópera concebido a partir de D.Giovanni de Mozart/Da Ponte, sob a direcção musical de Rui Massena e a direcção cénica de Nuno M Cardoso e a leitura encenada de Frei Luís de Sousa, a partir de Almeida Garrett, dirigida por Ricardo Pais e com música composta e interpretada ao vivo por Bernardo Sassetti.

D. João de Molière, como a maioria das peças de repertório, arrasta uma história própria, que inclui revisitações e novas versões ao longo dos anos. Algumas destas têm procurado actualizar o tema e problematizar as questões enunciadas na sua narrativa. Assim acontece com esta versão de Ricardo Pais.

A peça D. João foge aos estereótipos da representação de um clássico universal, dos figurinos e dos cenários do século XVIII. Este D. João apresenta um cenário intemporal, “terra de ninguém”, simultaneamente contemporâneo e minimal e “capaz de recuperar o espírito da máquina de cena setecentista italiana1, propícia a todas as fantasias e jogos possíveis,

incluindo a morte de D. João, no final.”2

Nesse sentido, considerou‑se essencial conceber uma estrutura versátil e “aberta”, multi‑funcional, susceptível de se adaptar às especificidades dramatúrgicas e/ou estilísticas das distintas representações.

No caso particular da peça D. João, o projecto cenográfico baseia‑se na experimentação estilística em torno da ambiguidade de leituras e da multiplicidade de significados contidos no texto dramático. Procura‑se dar forma a essa ambiguidade por meio de uma construção de carácter

1 D. João é a primeira comédia‑máquina de Molière em que ele põe em causa as regras da uni‑

dade tempo e de lugar; para tal, Molière mandou construir cinco cenários, cinco objectos dife‑ rentes, fascinado que estava pela prática italiana dos efeitos (Ricardo Pais, in Suplemento Y, Público de 17 Fevereiro 2006, p.17)

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transitório que se transfigura consoante a evolução das personagens ou a especificidade de cada cena.

Partindo de uma construção precisa e elementar – uma plataforma regular, sobrelevada e ligeiramente inclinada, contrastando com a acentuada verticalidade da caixa de palco – delimita‑se o espaço da representação e vão‑se configurando os diversos lugares onde decorre a acção. A inclinação dessa plataforma indicia, de certa forma, “o destino fatal do protagonista” e, conforme sugere Miguel‑Pedro Quadrio em artigo no “Diário de Notí‑ cias” de 30 de Abril, “é questionada por constantes rearranjos de forma, sublinhando‑se que a inconstância emerge aqui dum xadrez de palavras – “cortês”, teatral e muito barroco – e não das (quase) inexistentes peri‑ pécias amorosas.”

Essa ideia de inconstância e precariedade, a indistinção entre vida e morte, os anacronismos e contrastes que perpassam toda a narrativa estão também presentes na concepção do cenário.

A evocação da morte é constante ao longo da peça e traduz‑se no desenho geométrico da superfície do praticável, constituindo uma metáfora para o traçado repetitivo e ortogonal de um cemitério, ou ainda nos alçapões que se abrem no pavimento como cavidades sepulcrais. Os despojos urbanos que revestem a superfície da plataforma surgem como lápides e as marcas do seu uso funcionam como inscrições.

Estes alçapões que podem ainda assumir a forma de portas ou janelas, concentram momentos cruciais da acção, como a entrada e saída de actores, a encenação de lutas ou a representação de rituais fúnebres, e atravessam transversalmente o praticável, desenhando um longo rasgo. Este rasgo estabelece uma fractura na geometria regular do cenário e, de certa forma, desconstrói a simetria rigorosa da composição, enfatizando o desequilíbrio e a instabilidade da acção. A sensação de estranheza é ainda reforçada com a abertura dos alçapões, pela imagem dos actores reflectida (duplicada) na superfície espelhada do seu interior; ou pela força expressiva das explosões que deles irrompem ou ainda pelo efeito sonoro resultante da amplificação e recriação dos sons produzidos pelos movimentos em cena.

Pretende‑se, acima de tudo, prefigurar uma espécie de paisagem mental, conceber um dispositivo visível para um imaginário e, não tanto, dar forma a espaços físicos concretos e reconhecíveis.

Nesse sentido, a cenografia para esse imaginário caracteriza‑se por uma concepção não‑naturalista, abstracta e minimal, sugerida pelas ideias de leveza e plasticidade de uma folha de papel, e consiste num dispositivo elementar, aparentemente suspenso, que se transforma e que, tal como o papel, pode ser dobrado e moldado para assumir diferentes configurações. Explora‑se a tensão entre a densidade, a “espessura” dos despojos de construções que revestem a superfície da plataforma e a ideia de levitação subjacente à folha de papel. Ou como interpreta o encenador Ricardo

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Pais: “É como se uma parede tivesse caído de uma cidade proibida, e ao levitar se abrissem alçapões que nos permitem ouvir o som para além dela,”3 indiciando a presença de um outro mundo, outra realidade e, nesse

sentido, o cenário pode ser lido como uma espécie de fronteira.

Em D. João constrói‑se um palco dentro do palco transformando deste modo os bastidores visíveis num espaço de representação. A nova cortina de cena reconfigura o palco. Construída a partir da imagem fragmentada da própria cortina régia do Teatro São João, impressa em película transparente colada em acrílico, deixa visíveis os sistemas de suspensão a partir da teia, reenquadrando o novo palco.

A reprodução da cortina da boca de cena num material transparente e semi‑reflector introduz um elemento de ligeireza e permeabilidade na solidez da estrutura, e acentua a tensão entre elementos opostos ou materiais contrastantes.

Partindo de um plano inicial fixo o cenário altera‑se com sucessivos movimentos e rotações, assumindo a verticalidade de um muro/parede e o encerramento de espaços internos ou expandindo‑se horizontalmente na forma de rampa ou pequena elevação, para evocar ambientes exteriores.

A eventual estranheza e rigidez indiciadas pelo carácter depurado e pela precisão geométrica da composição ou pelo tratamento textural das superfícies vão‑se dissipando e abrindo a novas leituras com as transfor‑ mações e as diversas configurações que o cenário assume.

O uso de elementos arquitectónicos reconhecíveis, como as portas ou janelas inseridas na superfície irregular do praticável, confere à estrutura um sentido de realidade, assinalado pela noção de escala, volume e profundidade.

A (re)utilização de materiais preexistentes, precários, tais como despojos de construções ou fragmentos de obras, enfatiza a ideia de transitoriedade e a ambiguidade que pontua toda a acção. Esses materiais, descontextu‑ alizados e destituídos da sua conotação material e simbólica, adquirem um valor essencialmente plástico e nessa medida neutralizam os espaços disponibilizando‑os para apropriações diversas.

Com a utilização destes elementos não se pretende porém figurar um arquétipo arquitectónico, mas explorar a ambiguidade disciplinar do território cenográfico articulando as referências da arquitectura com um propósito conceptual de instalação.

O dispositivo criado para a cenografia da peça D. João constitui‑se, assim, como um objecto‑território susceptível de múltiplas modelações onde se acumulam acontecimentos e significados que qualificam e identificam possíveis lugares.

3 Junho, 2006

Teatro do Mundo

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Foto: João Tuna / TNSJ

O Teatro Greco‑Latino na tradição