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2.4 ENCRUZILHADAS DA LINGUAGEM: O FRAGMENTO EM

2.4.1 PALAVRAS DE DIGRESSÃO

Toda obra é fragmento-mundo: algumas buscam a centralização em um fragmento; outras se fazem de fragmentos que se querem descentralizados. Para mais, infinitas constituições são possíveis10.

Entendendo o fragmento como unidade de sentidos potenciais, podendo-se afirmar que a aderência semântica que ele oferece é a própria encruzilhada, não necessariamente pelo que diz de novo, mas como diz de/o novo. A possibilidade de uma leitura cujo percurso encontra-se à deriva, subvertendo protocolos mais formais, não deixa de suscitar dúvidas e questionamentos acerca de sua adequação ao universo leitor ideal, voltado a desconfiar de qualquer forma de abordagem aos textos cujo princípio fosse o recorte, ao menos em ambiência formal-educativa, possibilidade dada à autonomia do autor, para quem os limites parecem menos marcados. O caráter intertextual e interdiscursivo da linguagem atesta essa condição contingente e dispersa, como diz Barthes (2004), ao afirmar o texto como tecido de citações passadas, pedaços de códigos, fragmentos de linguagens existentes antes, entre e em torno dos textos.

Para além da intertextualidade ou interdiscursividade, em sua propensão por transportar fragmentos forjando novos lugares de contato, podem-se lembrar ações corriqueiras de leitura e escrita, quando os leitores, em seus enfrentamentos com textos e discursos, elegem uma parte que se torna maior que o próprio texto para significá-lo. Há aquele(s) fragmento(s) que ganha(m) existência autônoma e persiste(m) fazendo, inclusive, repercutir a obra. Só não sabe disso quem nunca copiou um verso, um parágrafo, um excerto e o transformou em máxima, mesmo que por instantes, destinada a carregar imperiosamente todos os sentidos que a obra pudesse diluir em suas linhas.

Essa partícula, não raro retirada de seu contexto inicial, faz reverberar sentidos próprios que se apartam do restante da obra, muitas vezes causando polêmica por sua rebeldia conceitual, já que, uma vez realocada para outros tempos/espaços, tem a propensão de suscitar entendimentos diferenciados, nem sempre considerados adequados, podendo mesmo servir a manipulações absurdas, quando confrontados com o contexto de origem. Entretanto, o que a faz ensaiar um voo próprio e apropriado não é sua aproximação ou distanciamento desse contexto inicial, mas a força enunciativa que ficou concentrada em suas teias, como o excesso de uma falta recortada que prescinde de roteiro ou acompanhamento, podendo significar ao leitor, num momento ímpar de intensidade semântica que faz tudo o mais silenciar, aquilo que de mais rico a linguagem poderia ser. E aquele átomo deslocado explode em dizeres e não- dizeres impossíveis de determinar/controlar a priori.

A paixão pelo fragmento é um acontecimento que faz parte da condição humana: se somos seres fragmentados, não podemos deixar de ler/escrever o mundo em retalhos. Mesmo no contato mais tradicional com a escrita, essa partícula metonímica, silenciosamente explosiva, tem roubado a cena, inclusive de muitos textos canônicos ditos de coerência totalizada. Nesse movimento, as escolhas de sentidos, pretensamente delineadas por um autor e sua função, são ressignificadas à deriva. A obra não perde uma sua parte, ela se põe em encruzilhadas, ofertando-se a outras leituras. Os fragmentos que se deslocam também não se perdem, eles forjam diálogos diferenciados, enquanto guardam a possibilidade de apontar a obra, como a marcar aquela contextualização primeira que a qualquer momento pode problematizar suas existências. Muitas vezes, é assim que a obra (re)inventa seus sentidos.

Faz-se relevante ressaltar que o fragmento não se define por extensão ou por seu lugar de deriva em relação ao texto de origem, porquanto comporte múltiplas constituições destinadas a prescindir de enquadramento rígido, embora não de rigor, carregando em seus contornos uma imprecisão fundadora de outras possibilidades de coerência para a escrita.

Sendo intensidade e transbordamento, sem deixar de ser extensão, é, ele mesmo, deriva voltada a desafiar modelos instituídos para a construção do conhecimento.

Ampliando o ângulo de análise, é preciso considerar configurações que fazem a diferenciação basilar entre textos extraídos de um contexto anterior, feitos recortes que, não raro, ganham outra existência, compondo máximas, exórdios, citações, intertextos, entre outros, ou simplesmente vagando à deriva; textos provenientes de escritas antigas que, considera-se, foram recortadas pelo tempo, a exemplo dos fragmentos legados pelos filósofos pré-socráticos da Antiguidade; como também aqueles textos destinados a transfigurar o acidental e o involuntário deliberadamente, sendo escritos para a publicação, como a obra dos românticos alemães, do grupo de Iena, nas modernas literaturas portuguesas, Fernando Pessoa, Clarice Lispector, ou mais recentemente, nas muitas formas de fragmentação existentes em obras como as de João Gilberto Noll, Miltom Hatoun, Antônio Torres, Caio Fernando Abreu, Chico Buarque, entre tantos.

Muitas escritas contemporâneas, situadas no campo da “estética do fragmento” (STEINER, 2012), cujo inacabamento é basilar, ocupam-se em fazer esse trabalho de picotar, ao limite da (in)existência, não apenas textos/discursos já publicados, mas, principalmente, os dizeres-mundos, erigindo obras entrecortadas por vazios, lacunas e silêncios abissais, a exemplo do que fazem Luiz Ruffato (2013) e Ramos (2008). Enamoradas de uma noção de coerência lacunar, são escrituras que desafiam interpretações ditadas, traçando percursos incertos, interrompidos, como a prevenir as interferências seletivas do leitor, evitando desperdícios, ou para atestar a (im)possibilidade de manejar a palavra com tal destreza que ela possa abarcar tudo o que pode ser dito em suas propriedades representacionais, mesmo quando não abre mão de historicizar ou documentar.

Dessa forma, fazem-se, elas mesmas, as obras, materializações de recortes disformes, cuja aderência provisória solicita leituras encruzilhadas, permitindo uma espécie de paralaxe da paralaxe, quando, a partir do ângulo de visão já multiposicionado do(s) narrador(es), o leitor é chamado a se posicionar diversamente, podendo potencializar, a cada visada, uma leitura outra que se caracteriza por constante movimento. Quem escreve ou lê nunca deixa de picotar o real, o texto, ainda que, muitas vezes, pretenda criar a impressão de totalização dos fatos, acontecimentos, seres. Para a fragmentada escrita contemporânea, ao menos aquela aqui estudada, há propensão por exaltar a incompletude, de forma que a atitude perspectivista do(s) narrador(es) se apraz em selecionar lascas, farpas e não farpas, ofertadas a outras tantas paralaxes, como um convite ao deslocamento da confortável (?) posição canonizada para o leitor.

Nesse ponto, aproximam-se as ações de recorte feitas por escritores e leitores, considerando a obra literária universo empírico. Um, o escritor (em sua pluralidade), executa a paralaxe de tempos/espaços/mundos, registrando, digamos, o melhor e o pior que achou dignos de destaque, inventando realidades i(ni)maginadas; o outro, o leitor (em sua pluralidade), munido de suas perspectivas de tempo/espaço/mundo, aproxima-se das realidades já materializadas em forma de escrita e, realizando outras paralaxes, antevê realidades i(ni)maginadas. No entrelugar, brinca a linguagem que, organizada em fragmentos desafiadores de uma unicidade mais radical, pode significar muitas perspectivas, sem maiores pretensões de oferecer um único ângulo de visão.

A obra é o que é, e o que é possível recortar (a partir) dela e com ela. A obra contemporânea fragmentada torna-se, ela mesma, constelação de recortes, estando aberta à deriva leitora de sujeitos solicitados a pensar/questionar/fazer girar conhecimentos. Nesse intento, acaba por (des)inventar (in)certezas do campo literário, que se vê constantemente instado a repensar suas teorizações. Mas toda obra é também o que é possível constelar nela, e o fragmento, muito presente em textos afeitos a propiciar uma interligação rizomática, realiza-se por afirmações vazadas que brincam com a ditadura da semelhança, agregando o insólito e adotando a inclusão de micronarrativas tão ao gosto contemporâneo. O texto de fragmentos, esse território movediço feito de pontos de partidas e chegadas encruzilhados, movimenta-se, de forma que retornar a qualquer ponto é torná-lo diferente, porquanto já se tenha estabelecido uma relação dialógica com outras partes.

Estão em jogo, então, lugares de fala/escrita-escuta/leitura a coexistirem em uma sociedade comprometida com acontecimentos que geram informações e conhecimentos vertiginosamente instáveis e que têm o compromisso de aguçar a capacidade reflexiva dos sujeitos-cidadãos multiposicionados sócio-política-cultural e ideologicamente. Ainda que escritores e leitores não partam do mesmo princípio de fragmentação, faz-se mister reconhecer que, em ambos os casos, interessa que a linguagem literária continue a ser mais que dizer, possa ser abismo, assombro, silêncio, inventando existências justamente naquilo que é, e que temos tanta dificuldade para definir, literatura.

Na condição de elemento integrante do fazer literário moderno e pós-moderno, o fragmento configura-se como parte de uma sintaxe estilhaçada, de uma não-linearidade discursiva, de uma multicentralidade narrativa. Sendo texto, discurso, sobra, excesso, o fragmento constitui-se, sem culpas, como literatura, em “cuja estrutura narrativa, sem linearidade, ou melhor, sem começo, meio e fim delineados, oferece-nos histórias incompletas em pedaços” (ANDRADE, 2007, p. 126). Tal sintaxe literária permite uma escrita voltada a

fazer dialogar partes descontínuas de discursos que se complexificam na montagem de um mosaico de (im)possibilidades. Se deixamos de exaltar unicamente a profundidade das raízes é porque entendemos que há múltiplas formas relacionais de existência e compreensão delas, abrindo terreno para fragmentações diversas que nunca deixaram de fazer as histórias, as memórias, as identidades, mas que acabaram neutralizadas em nome de uma linearidade progressiva.

No presente texto, interessa auscultar o fragmento como ponto de partida e chegada do jogo literário/existencial/social que se apraz em criar ângulos sobrepostos para tempos/espaços/memórias/identidades, não deixando de considerar as circunstâncias políticas contemporâneas, inclusive, no tocante à onda tecnodigital ou ao exacerbado ideal capitalista que nos solicita a adotar a velocidade, a efemeridade, a gratuidade da edição (muitas vezes insípida). Frente ao risco de submeter a literatura (?) a uma superficialidade medíocre, caso o ideal de criação seja a elaboração de produtos vendáveis que, à moda do mercado, possam ser consumidos em estilo fast food, o fragmento se apresenta como partícula a partir da qual se abrem infinitas linhas de diálogo. Entre um e outro extremo, no fragmento como obra de arte ou como escrita para rápido consumo, muitas possibilidades são encontradas.

Dentro de uma cadeia rizomática, e as obras literárias o são, os limites se apresentam esgarçados, por isso mesmo, o trabalho do leitor se torna fundamentalmente jogo. E jogo a ser jogado a partir das condições de pertença que envolvem a leitura e seus tempos/espaços de realização e existência, inclusive, no que tange às múltiplas realidades em

negociação permanente, como ressalta Barthes (2007a, p. 22): “Que não haja paralelismo

entre o real e a linguagem, com isso os homens não se conformam, e é essa recusa, talvez tão velha quanto a própria linguagem, que produz, numa faina incessante, a literatura” (BARTHES, 2007a, p. 22).

Na trilha de Barthes (2007a), se considerarmos as forças da literatura, entre as quais o autor destaca três - a Mathesis (grosso modo, os múltiplos saberes mobilizados na obra literária), a Mimesis (representação) e a Semiosis (jogo de sentidos) - faz-se mister trazer à discussão essa impossibilidade de representação do real que a literatura adotou em suas entranhas e que a faz a arte do impossível. Se a literatura trapaceia (com)as realidades contextuais e a própria linguagem que a constitui, o que ela forja é um jogo a ser jogado no âmbito dessa mesma linguagem e que pressupõe que a Semioses, cujo funcionamento se traduz em “jogar com os signos em vez de destruí-los” (BARTHES, 2007a, p. 27), aconteça a partir da interferência ativa dos jogadores envolvidos. São eles, em suas diversas possibilidades, que poderão determinar as jogadas, os elementos internos e externos a serem

(des)considerados. Trata-se, desde o princípio, de um procedimento esfacelado que não pode ser totalmente conhecido ou controlado, inclusive por mobilizar determinantes conscientes e inconscientes.

Jogar com os signos, para Barthes (2007a, p. 28), significa “colocá-los numa

maquinaria de linguagem cujos breques e travas de segurança arrebentaram, em suma, em instituir no próprio seio da linguagem servil uma verdadeira heteronímia das coisas”. Quem joga o jogo literário encontra a possibilidade de se imiscuir em teias discursivas incertas, de forma a elaborar jogadas de sentidos sem, necessariamente, deixar-se ludibriar por determinantes barateadores desses mesmos sentidos. É por meio das múltiplas linguagens, em seus pontos de dispersão e contato, que as essencialidades e obscuridades de qualquer discurso se comunicam, esgarçando enigmas e potencializando lugares polêmicos habitados por signos reais, simbólicos e imaginários que se entrecruzam. Notadamente, os sentidos se fazem em dispersões encruzilhadas, e as interseções, continuamente desenvolvidas entre leitor, autor, texto e linguagem, a priori, formam a ebulição necessária ao desencadear de construções simbólico-conceituais em eterno devir na esteira do tempo.

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