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(Re)existências

Quando venho falar da minha história, minha mente me transporta para além dos muros da Unidade e do meu corpo aprisionado. Posso pensar e ouvir coisas diferentes daquelas que estou acostumado aqui dentro. A mente pode te levar onde as pernas não alcançam 121.

Diante da imensidão de palavras, que nos foram confiadas pelos adolescentes participantes da pesquisa, durante as caminhadas até a sala da biblioteca, durante os encontros programados e os fortuitos no cotidiano da Unidade de Internação, nos vemos frente à necessidade de tecer as palavras finais, um possível desfecho para nosso trabalho.

Entendemos, que as palavras nunca serão de fato palavras finais e que uma pesquisa é sempre uma paisagem, uma obra em aberto. Assim, o desafio que se coloca neste momento, é compor com as palavras para além de uma pretensa conclusão, de um percurso, de um formato, de uma técnica/ferramenta; e demonstrar as contribuições desta pesquisa no contexto em que ela se deu.

Nesse sentido, vale a pena esclarecer que, ao longo do processo de produção deste trabalho, não pretendemos fortalecer hipóteses e/ou estabelecer verdades. Priorizamos o entre, a interseção dos atalhos e dos olhares onde o encontro e as práticas com os adolescentes privados de liberdade pudessem ser sempre repensados e questionados, a partir do compromisso ético/político com a vida, vislumbrando novos horizontes, potência e não a mortificação.

Nossa prática diária, junto aos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, exigiu olhar atento ao modo de funcionamento da instituição, aos processos de subjetivação em curso naquele espaço, às relações de saber/poder, aos

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especialismos, aos arranjos, às políticas, às estratégias do cotidiano, aos desvios e aos muitos fios que são produzidos e mantêm a máquina socioeducativa funcionando.

Como ouvir as histórias dos adolescentes? Qual uso fazer delas?

O ouvir as narrativas dos adolescentes foram ouvidas e forneceram subsídios para a elaboração deste texto, que teve a pretensão de traduzir para o leitor parte da riqueza de suas vidas. Pois, como nos diz Clarice Lispector (1998, p. 13), “não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária que respira, respira, respira”

Diante desta certeza, pretendeu-se contribuir para a criação de novos espaços- tempo no cotidiano da cidade-internação, onde o ouvir e o contar abrissem espaço para a potencialização da inventividade e da confiança, acenando para outros mundos.

Apesar das suas últimas reestruturações, sabemos que ainda há muito a ser produzido e implementado em relação às políticas sociais voltadas ao atendimento socioeducativo no Espírito Santo. O número de reincidência de adolescentes em atos infracionais é grande e as unidades para cumprimento de medidas socioeducativas não oferecem todas as condições para assegurar a re-educação dos mesmos. Estas questões insistem...

A UNIS só tem socioeducando frustrado. Eles falam que a UNIS é socioeducação, só que a maioria dos jovens que sai daqui bota na balança o peso de ficar preso por um determinado tempo, num lugar como esse, onde foi menosprezado, ficou no confinamento, privado de liberdade, martelando a cabeça na parede, só o ódio. Então para mudar, ele vai pesar algumas aulas no meio de semana que duram uns quarenta minutos, onde faz um exercício e vai embora. Deixa-me ver mais o quê... a bala doce que eles dão no final de semana, alguns tratamentos de algumas pessoas, porque tem uns que tratam a gente mal, é isso que vai contar. Aí o cara vai ver o peso que essas coisas aqui dentro têm. Ele vai ver se vai sair daqui e ficar tranquilo ou se vai sair só o ódio. Eu acho que a maioria vai sair daqui e ficar só o ódio122.

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A fala do adolescente parceiro desta pesquisa em nada se difere da de tantos outros que encontramos no cotidiano das Unidades do sistema socioeducativo. Em nossos encontros-narrativas com os adolescentes da UNIS constatamos que boa parte não concebe a internação como sendo uma prática de ressocialização ou socioeducação. O que nos instiga a perguntar:

O que se passa entre o que foi programado institucionalmente e o que é vivenciado pelo adolescente durante a medida socioeducativa de internação? E o que se pode dizer dos múltiplos modos de vida expressados nas vozes dos adolescentes parceiros desta pesquisa que escapam à normativizaçao?

Foucault (2010, p. 351), em um pequeno texto intitulado “Da amizade como modo de vida”, nos fornece uma pista sobre a diferença entre o que é um programa, do ponto de vista do código e da regulamentação de modos de vida e a vacuidade que resta de uma normativização. Ele enfatiza que o programa institucional é aquilo que forja uma lei, ou uma regra ou ainda hábitos. E a vacuidade de um programa, nomeado por ele de programa vazio, consistiria na possibilidade de empreender modos de vida como diversificações, ou seja, a possibilidade de construção de relações intensas que não se parecem com aquelas institucionalizadas e que podem dar lugar a uma cultura e a uma ética.

Em suas palavras:

“O programa deve ser vazio. É preciso aprofundar, para mostrar como as coisas foram historicamente contingentes, para tal ou tal razão inteligível, mas não necessária. E preciso fazer aparecer o inteligível sobre o fundo de vacuidade e negar uma necessidade, e pensar que o que existe está longe de preencher os espaços possíveis. Fazer um verdadeiro desafio incontornável da questão: o que se pode jogar, e como inventar um jogo?” (FOUCAULT, 2010, p. 353).

A partir desta compreensão, avançamos rumo à (in)conclusão, insistindo com algumas questões:

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Será que o programa institucional de internação do IASES, nas práticas cotidianas das unidades, ao se fazer lei, pode validar essas relações múltiplas e intensas, nas cores variáveis, nos movimentos imperceptíveis, nas formas que mudam no momento de privação de liberdade vivido pelos adolescentes? Ou ainda, será que o programa institucional do IASES permite a vacuidade necessária ao inventivo da vida?

Tais questionamentos nos permitem renunciar à normativização e ao privilegio de determinados modos de vida, em detrimento de outras formas de sociabilidade.

De fato, os encontros, que acontecem na cidade-internação, processam muito mais coisas do que os programas institucionais conseguem prever ou supor.

Daí, decorre uma última questão:

Como no cotidiano das unidades socioeducativas podem-se criar espaços-tempos para inventidades e/ou aproveitar as possíveis vacuidades dos programas para permitir outras relações, outros modos de ser/estar não-institucionalizados?

Evidenciamos que os encontros nos espaços-tempos experenciados durante esta pesquisa apontaram para a possibilidade de entender que: as políticas públicas, os programas, os projetos, as leis, os encontro, as práticas em toda a sua extensão, voltadas ao atendimento socioeducativo, a criança e ao adolescente, assim como as pesquisas podem sempre guardar a chance de potencializar e contemplar a vida em suas múltiplas maneiras de se fazer, uma vez que estar vivo, neste sentido, é poder aprender com os acontecimentos e transformar-se através deles. Estar vivo é fazer circular a vida assim como narrar a própria história é poder acontecer.

“Certas coisas só acontecem com os vivos” diz mamãe, em sua sabedoria, ao se referir às tantas alegrias e tristezas de um viver.

De fato, os adolescentes, tanto os parceiros desta pesquisa, quanto os muitos outros em situação de privação de liberdade estão vivos. E é exatamente por que eles vivem é que suas vidas insistem em escapar por diversas maneiras não-estabelecidas e

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mostrar que a vida sempre encontrará outros modos de se fazer, de (re)existir ao dado, à mortificação, à tristeza e à impotência.

Destacamos o fragmento da narrativa de um dos adolescentes parceiros desta pesquisa: “vale a pena investir em um adolescente mesmo que ele seja um adolescente em conflito com a lei. Mesmo que ele seja um adolescente da Unis123” para dizer que isso é possível, se em nossas práticas cotidianas junto ao atendimento socioeducativo, aos jovens em cumprimento de medida socioeducativa, produzirmos agenciamentos a favor da vida, pois para que a vida nos dê flor e fruto, há que se cuidar do broto.

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