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Palavras inacabadas

No documento Ana Cristina Cesar: um corpo de crítica (páginas 146-156)

Fomos motivados desde o início a pensar o nosso trabalho de pesquisa a partir do que afirma Barthes: “o trabalho (de pesquisa) deve ser assumido no desejo.” (BARTHES, 2004, p. 99). Já na Introdução, anunciamos o interesse de realizar a travessia pelo deserto, impulsionados pelo que acreditamos estar presente nesse “pedacinho de utopia” (BARTHES, 2004, p. 99), ou seja, o que encontramos pelo caminho é sempre a possibilidade de um encontro. Certamente os encontros se deram em muitos momentos desse processo e o que traçamos até aqui é um modo de pensar “um corpo de crítica” com o texto de Ana Cristina Cesar.

Deleuze nos diz: “O que conta num caminho, o que conta numa linha, é sempre o meio, não o princípio nem o fim. Está-se sempre no meio de um caminho, no meio de alguma coisa.” (DELEUZE; PARNET, 2004, p. 41). Parece simples a ideia de estar entre o que se passa. E o que se passa no trabalho de pesquisa e de escrita é sempre da ordem de um devir, de um acontecimento cheio de afetos. Não é tão simples quanto parece, porque já estamos envolvidos com muitas outras lutas pessoais que nos sugam as forças e algumas vezes a alegria. Mas há de se cultivar a alegria, para experimentarmos o que acontece no meio disso tudo.

Escrevemos acerca do que mais nos suscita o texto de Ana Cristina Cesar: o questionamento acerca da escolha pela literatura em vez da escolha por qualquer outra coisa. Sempre nos pareceu ser essa a questão desafiadora e estimulante em sua obra: a interrogação, a dúvida ou, como a própria poeta, declara: “Por afrontamento do desejo/ insisto na maldade de escrever” (CESAR, 1999, p. 97). Assim, constitui a sua busca intensa e angustiada: através do desejo e da maldade de escrever. Constatamos o movimento dessa busca a partir do trabalho que a autora carioca realiza como poeta, crítica e professora. Apresentamos as nuanças da busca pelo entendimento da sua literatura e do próprio ser escritora para Ana Cristina Cesar pensando a sua produção exercida nessas três atividades.

Sem dúvida, há muito o que ficou por dizer sobre cada um desses papéis desempenhados por Ana Cristina Cesar ao longo da sua trajetória intelectual. No capítulo “A poesia: encontro e devir”, sentimos que o texto poético da autora de A teus pés pode ainda receber mais espaço dentro da nossa análise da literatura marginal, bem como o livro rosa merece mais atenção da nossa parte. As questões sobre o escrever

propostas neste capítulo estão referidas na sua poesia e na sua crítica e podem ganhar um maior aprofundamento. Aliás, deixamos a sugestão de um tema para futura pesquisa: investigar o projeto de romance de Ana Cristina Cesar exposto no livro rosa. Havia o interesse cada vez mais forte por parte da autora pela prosa de ficção e nesse livro rosa podemos encontrar o esboço de um projeto de romance em fase inicial.

No capítulo sobre “A crítica e a escrita feminina: um devir-mulher” nos pautamos a analisar os textos em que Ana Cristina Cesar se debate com a questão da literatura feminina. Sabemos que esta questão cada vez mais tomava conta das leituras e pesquisas da autora. Parece-nos fundamental uma análise a esse respeito, principalmente a partir da sua correspondência pessoal e dos seus próprios poemas. Seria necessária uma abordagem mais detalhada sobre esses escritos (cartas e poesias) envolvendo questões de gênero e da mulher na literatura. Nossa intenção foi abordar esse aspecto da escrita feminina segundo o que a própria Ana Cristina Cesar coloca em seu texto: uma preocupação com o interlocutor; a existência de “um falar feminino” (CESAR, 1999, p. 269) ou ainda a presença de um tipo de sensibilidade feminina que está ligada ao corpo. Alguns destes aspectos pudemos verificar no próprio texto poético da autora carioca. Metalinguagem e tradução são assuntos que, de certo modo, se complementam dentro do processo criativo de Ana Cristina Cesar. Escritos da Inglaterra constitui sua obra sobre o tema especial da tradução. Este livro merece uma profunda atenção por parte de quem se interessar pelos bastidores do processo da escritora como tradutora. Afinal, é importante considerar a dissertação de mestrado que ela esceveu sobre O conto Bliss anotado... ou “PAIXÃO E TÉCNICA”: tradução, em língua portuguesa, do conto Bliss, de Katherine Mansfield, seguida de 80 anotações, que se encontra no volume de Crítica e tradução (1999). Não cabia no escopo da nossa pesquisa uma maior dedicação ao assunto da tradução, mas não podíamos passar à margem do tema.

Por fim, no capítulo “O ensino e a fala: um devir-professora”, analisamos a sua atividade como professora exercida concomitantemente às de poeta e de crítica. Para a apresentação das questões que envolvem o exercício do magistério de Ana Cristina Cesar nos embasamos em seu artigo “Os professores contra a parede”, publicado em 1975, no qual discute o problema do excesso da teoria estruturalista que tomava de conta dos cursos de Letras. Ressaltamos que nos concentramos no período histórico e intelectual vivenciado por Ana Cristina Cesar para discutir essas reflexões, datadas nas décadas de 1970/80 e que, portanto, merecem uma abordagem contemporânea no

sentido de que, com ou sem teoria e crítica, hoje o ensino da literatura é uma questão de suma importância dentro do panorama educacional brasileiro.

A partir dessas explanações apresentadas ao longo dos capítulos supracitados, a questão principal da nossa proposta de trabalho com o texto de Ana Cristina Cesar foi investigar o que é, afinal, escrever para a autora carioca e como isso se formula na produção dos papéis que exerce como poeta, crítica e professora. A nossa pesquisa estabeleceu um diálogo com os seus textos poéticos e críticos, nos quais a reflexão sobre o escrever também se estabelece com a literatura da sua geração. Além disso, discutimos o papel da sua obra dentro da literatura marginal, o que nos possibilita também uma avaliação da sua produção no âmbito da literatura brasileira.

A escrita conjuga-se sempre com outra coisa, que é o seu próprio devir. Não existe agenciamento que funcione com um único fluxo. Não se trata de imitação, mas de conjunção. O escritor é profundamente penetrado por um devir-não-escritor. (DELEUZE; PARNET, 2004, p. 60)

Uma das palavras-chave de nosso trabalho é devir. Entendemos que, através do conceito de devir, podemos pensar e experimentar a escrita de Ana Cristina Cesar, bem como analisar as atividades que exerce dentro do seu percurso intelectual na década de 1970. A escrita é um modo de devir que faz conexão com outros encontros, outros devires possíveis. Ana Cristina Cesar em seu processo de escrita experimenta encontros: viagens, tradução, crítica, docência – todos os movimentos empreendidos pela poeta fazem parte:

Tudo me leva a crer que se trata do Texto Perfeito da minha pró- pria vida, da Biografia Ideal, que se produz como texto simulta- neamente à vida. Ao ouvir este longo texto, um pouco encantada sem dúvida, percebo que o seu segredo é ter encontrado a perfeita har- monia entre as palavras que se pensam (a grafia da vida) e a reali- dade sem palavras (a própria vida que me vive). Percebo ainda que sou eu que sou vivida, sou eu que sou grafada, sou eu também que escuto em surdina o velho discurso que me grafa.

Essa biografia ideal está exposta, aos olhos de todo leitor que se aproxima de um autor, pois a matéria de que se faz a escrita não é outra senão a própria vida, como afirma Deleuze: “Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido.” (DELEUZE, 1997, p. 11).

Paradoxalmente, a escrita, permanecendo após a morte do autor, nos diz em voz alta a vida que está diante de nossos olhos. Essa vida que, em suas tormentas e desejos, põe o leitor na confortável posição de observador da vida alheia, assombrado por sentimentos que podem ir da admiração à comiseração, pois na permanência da escritura, como na morte da autora, o que o leitor encontra é sempre uma possibilidade outra de vida...

Figura 9. Fonte: CESAR, 1998, p. 208.

Este poema, escrito por Carlos Drummond de Andrade, foi uma homenagem à poeta carioca, na ocasião de sua morte. Ana Cristina Cesar suicidou-se no dia 29 de outubro de 1983.

REFERÊNCIAS

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