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PALIMPSESTOS: A LITERATURA DE EMPRÉSTIMO

2 REGIONALISMO

2.7 PALIMPSESTOS: A LITERATURA DE EMPRÉSTIMO

Em sua obra Palimpsestos: a literatura de segunda mão (2010), o teórico literário francês Gérard Genette propõe um estudo acerca do que denomina

transtextualidade, que é entendida, por ele, como o objeto da poética. Para Genette,

as obras literárias são influenciadas por textos anteriores, a escrita não é genuína e isenta de ascendências. Logo, em maior ou menor grau, ela deve crédito a um outro registro, seja no aspecto formal, conceitual ou temático, sugerindo a imagem do palimpsesto. A premissa que o pesquisador elege, como objeto de seu estudo, alude a um princípio consagrado na tradição literária: o movimento perpétuo de influência que as obras exercem umas sobre as outras, pois, como ponderava Borges, “a literatura é inesgotável pela única razão de que um único livro é”. (BORGES, 1957, p. 307, APUD, GENETTE). Apesar desse consenso, conforme Genette, tal princípio de influenciação resguarda uma possibilidade criativa e singular de recriação, tendo em vista que a arte de fazer o “novo com o velho tem vantagem de produzir objetos mais complexos e mais saborosos [...] uma função nova se superpõe e se mistura com uma estrutura antiga e a dissonância entre esses dois elementos co-presentes dá um sabor conjunto.” (GENETTE, 2010, p. 144).

Segundo Genette, o objeto da poética não é o texto em si, mas sim seu

arquitexto, ou ainda, o que denomina de arquitextualidade, cuja definição estabelece

como sendo "o conjunto de categorias gerais ou transcendentes – tipos de discurso, modos de enunciação, gêneros literários" (GENETTE, 2010, p. 13). Especificamente, o autor a conceitua como tudo que coloca o texto "em relação, manifesta ou concreta, com outros textos (GENETTE, 2010, p. 13). Assim, a arquitextualidade ressalta as relações que um texto tem com seus antecessores, as quais podem, ou não, ser claramente percebidas. Em seu estudo, ele aponta para cinco tipos essenciais de transtextualidade: a intertextualidade, o paratexto, a metatextualidade,

a hipertextualidade e, finalmente, a arquitextualidade. Todos os processos

estabelecem relações extratextuais, todos se vinculam a um ou a vários registros anteriores, estabelecendo, com e entre eles, relações diversificadas.

Do conjunto de procedimentos elencados por Genette, ele destaca a

hipertextualidade e concentra nela seu estudo. De acordo com o teórico, a

hipertextualidade pode ser entendida como "toda relação que une um texto B (hipertexto) a um texto anterior A (hipotexto), do qual ele brota de uma forma que

não é o comentário" (2010, p. 19). Conforme o pesquisador, a relação de derivação pode se dar de duas formas: uma descritiva e intelectual, em certo nível explícita, em que um metatexto "fala de um texto", ou outra em que a relação de influência fica subtendida, pois o texto "B não fale nada de A, no entanto, não pode existir daquela forma sem A" (GENETTE, 2010, p. 18). O estudioso ressalta, ainda, que o

hipertexto é mais frequentemente considerado como uma obra literária, já que

"geralmente deriva de uma obra de ficção (narrativa ou dramática), ele permanece obra de ficção [...] mas essa determinação não lhe é essencial" (2010, p. 18).

A fim de especificar os procedimentos, o pesquisador estabelece uma subdivisão de categorias em relação à hipertextualidade, dividindo-a em:

transformação simples e imitação. Genette define, como transformação simples ou direta, "aquela que consiste em transpor a ação" (GENETTE, 2010, p. 19) e que

resulta, a princípio, de um trabalho bastante simples, pois desloca um modelo ou tema de forma relativamente direta e perceptível, sem a preocupação com arranjos mais elaborados.

Por outro lado, denomina de imitação outro procedimento, bem mais requintado. A imitação proposta por Genette é, em essência, também uma

transformação, mas de um procedimento mais complexo, pois “exige a constituição

prévia de um modelo de competência genérico [...] extraído dessa performance única e capaz de gerar um número indefinido de performances miméticas" (GENETTE, 2010, p. 19). Ele ressalta que tal processo necessita uma etapa de mediação, a qual é própria da imitação. De acordo com as categorias propostas, para “transformar um texto pode ser suficiente um gesto simples ou mecânico,” entretanto, “para imitá-lo, é preciso necessariamente adquirir sobre ele um domínio pelo menos parcial; o domínio daqueles traços que escolheu imitar” (GENETTE, 2010, p.19). Para sua execução, é necessário absorver as estratégias que engendram o elemento ou recurso que se deseja reproduzir. Em outras palavras, é necessário saber operar o mesmo princípio que se deseja reconstruir. Diante disso, faz-se imprescindível a mediação, etapa que implica no domínio da técnica e da prática de reconstrução do artifício.

O teórico ressalta a teia complexa de domínio que se faz primordial para imitar uma obra literária elaborada. Para executá-la, é necessário conhecer o assunto e reconhecer as estratégias utilizadas na sua composição. Nesse sentido,

Além de realizar um levantamento dos processos estruturais e formais que resultam em reconstruções, Genette atenta, do mesmo modo, para a temática das obras. Em grande parte, seu estudo se centrou nos “aproveitamentos” formais, capazes de serem recuperados nos textos, como também se deteve na análise do conjunto de obras de caráter satírico. Para abarcar outros gêneros e ampliar esse cenário, Genette enfoca textos mais densos, de natureza reflexiva. A esse segmento, chama de: abordagem de regime sério e, para nominá-la, teremos o processo de forjação.

Além disso, quando a transformação tratar de assunto considerado sério, ela passará a se denominar transposição (GENETTE, 2010, p. 42). O pesquisador considera essa última categoria "a mais importante de todas as práticas

hipertextuais" principalmente por sua relevância “histórica e pelo acabamento

estético de certas obras que dela resultam" e, ainda, “pela amplitude e variedade de procedimentos nela envolvidos” (2010, p. 63).

Esquematicamente, é possível visualizar essas relações:

Quadro 1 – Quadro das relações hipertextuais.

Regime/Relação Lúdico Satírico Sério

transformação paródia travestimento transposição

imitação pastiche charge forjação

Fonte: Adaptação de Genette (2010, p. 63).

Ao avaliar a contribuição de seu estudo, Genette pondera que a hipertextualidade é um atributo universal da literariedade, “próprio da arte literária, em algum grau e segundo as leituras evoque alguma outra e, nesse sentido todas as obras são intertextuais” (GENETTE, 2010, p. 19). Entretanto, assevera que se faz necessário pontuar e catalogar os processos que margeiam as transposições. Com tal objetivo e para fim de classificação dentro de sua teoria, ele elege, para concentrar sua análise, aquelas que externem de forma mais “manifesta, maciça e explicitamente” (GENETTE, 2010, p.24) tal relação. Ao pontuar essas premissas, Genette delimita, a partir dela, seu objeto de estudo, considerando que ampliá-las

“significa buscar em qualquer obra ecos parciais, localizados e fugidios de qualquer outra, posterior ou anterior” (2010, p. 24). Isso incorreria no risco de “projetar a totalidade da literatura universal no campo da hipertextualidade” (2010, p. 24). Destaca que o escopo de ampliação desses recursos é imenso, tendo em vista que os cinco tipos de transtextualidade intercomunicam-se, possibilitando a criação de um extenso painel de associações.

Na obra Palimpsestos: a literatura de segunda mão, Genette atem-se a quatorze categorias de procedimentos, que estabelecem relações explícitas com seu texto de origem. No entanto, antes de subdividi-las, o teórico aponta para possibilidades mais amplas, oferendo categorias que contemplem possibilidades de aproximação e de comparação não tão exatas e determinadas. Assim, a partir dessas práticas intertextuais gerais, selecionamos duas para adotarmos em nossa análise. Tais estratégias possibilitarão a aproximação de categorias semelhantes nas CG e GSV. Entendemos que a transformação de caráter sério, denominada

transposição, como também a imitação de caráter sério chamada de forjação,

oferecem subsídios para aproximar as categorias eleitas. Dessa maneira, na categoria de forjação, enquadraremos os recursos que contemplam a estratégia narrativa empregada por SLN na obra CG, a qual denominamos, anteriormente, como “dinâmica narrativa” e cujos elementos contemplam: o texto de abertura, o narrador, a estrutura dialogal, a presença do estrangeiro, o uso da linguagem. Ademais, empregaremos a transposição como princípio para analisarmos as categorias temáticas: memória, experiência e conselho.