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2.2. A SOCIEDADE DISCIPLINAR : A ANALÍTICA DAS RELAÇÕES DE PODER COMO POSSIBILIDADE

2.2.3. A DISCIPLINA OPERANDO NAS INSTITUIÇÕES : O CASO DA ESCOLA

2.2.3.2. O PANÓPTICO

Diante dessa complexa trama de relações de forças das quais o poder se utilizou da disciplina para controlar os corpos, o tempo e o espaço dentro (e fora) das instituições, construindo discursos de verdade a partir de seu modo de funcionamento eficaz, útil e produtivo. É certo afirmar que o exame é o instrumento mais elaborado e garante sua legitimidade e visibilidade diante de sua capacidade de articular a vigilância e a sanção em busca de otimizar a produção de diagramas que segmenta, classifica e autoriza as relações de força. Também, é legitimo considerar que o uso da sanção normalizadora produziu - durante toda a história das sociedades ocidentais – formas de mostrar pela força a origem do poder, ou seja, de

que lado o poder estava. Esta força era depositada sobre os corpos, com castigos e suplícios, sobretudo nas relações de soberania, como vimos anteriormente. Porém, a vigilância que acaba penetrando as instâncias do funcionamento do poder e servindo praticamente de pano de fundo desta grande maquinaria que o poder produziu – no caso da sociedade disciplinar; tem seu conceito na arquitetura do Panóptico de Jeremy Bentham o qual vale a pena compreender seus dispositivos que produziram a arquitetura das instituições até nossos dias.

Este modelo possui os princípios a seguir:

O principio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas tem duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções – trancar, privar de luz e esconder – só conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha (FOUCAULT, 2004, p. 165-166).

Assim, o panóptico tem em seu cerne exercer a vigilância continua e ininterrupta, para tanto, sua lógica está focada na idéia de totalidade na qual por um lado, o vigiado, está totalmente sem visibilidade, e de outro lado, o vigia está totalmente dotado de visibilidade, este encarceramento cria um espaço de individuação, o que segundo Foucault (2004):

[...] é a garantia da ordem. Se os detentos são condenados não há perigo de complô, de tentativa de evasão coletiva, projeto de novos crimes para o futuro, más influências recíprocas; se são doentes, não há perigo de contágio; loucos, não há risco de violências recíprocas; crianças, não há “cola”, nem barulho, nem conversa, nem dissipação. Se são operários, não há roubos, nem conluios, nada dessas distrações que atrasam o trabalho, tornam-no menos perfeito ou provocam acidentes. A multidão, massa compacta, local de múltiplas trocas, individualidades que se fundem, efeito coletivo, é abolida em proveito de uma coleção de individualidades separadas. Do ponto de

visa do guardião, é substituída por uma multiplicidade enumerável e controlável; do ponto de vista dos detentos, por uma solidão seqüestrada e olhada. Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder (p. 166).

Mas, a grande questão do panóptico para Foucault (2004) não era seu modelo arquitetônico e sim a estrutura das disciplinas que garantiam a idéia do olhar permanente, ininterrupto, ou seja, a partir dos efeitos de luz e contraluz os indivíduos reclusos sabiam que estavam sendo alvo da vigilância e por outro lado os vigias que estavam ausentes a esta visibilidade. Sendo assim, o panóptico está para além de uma arquitetura, ele é, sem dúvida, o diagrama que estrutura as relações de poder e permite que a disciplina funcione. Nas palavras de Foucault,

[...] o Panóptico não deve ser compreendido como um edifício onírico: é o diagrama de um mecanismo de poder levado à sua forma ideal; seu funcionamento, abstraindo-se de qualquer obstáculo, resistência ou desgaste, pode ser bem representado como um puro sistema arquitetural e óptico: é na realidade uma figura de tecnologia política que se pode e se deve destacar de qualquer uso específico. É polivalente em suas aplicações: serve para emendar os prisioneiros, mas também para cuidar dos doentes, instruir os escolares, guardar os loucos, fiscalizar os operários, fazer trabalhar os mendigos e ociosos. É um tipo de implantação dos corpos no espaço, de distribuição dos indivíduos em relação mútua, de organização hierárquica, de disposição dos centros e dos canais de poder, de definição de seus instrumentos e de modos de intervenção, que se podem utilizar nos hospitais, nas oficinas, nas escolas, nas prisões. Cada vez que se tratar de uma multiplicidade de indivíduos a que se deve impor uma tarefa ou um comportamento, o esquema panóptico poderá ser utilizado (FOUCAULT, 2004, p. 170).

Assim, o resultado dos processos organizados pelo panóptico objetivou por meio da disciplina um “processo técnico unitário pelo qual a força do corpo é com o mínimo ônus reduzida como força ‘política’, e maximizado como força útil” (FOUCAULT, 2004, p. 182). Ou seja, a produção de corpos dóceis.

Mediante a esta forma de compreender o funcionamento das técnicas do poder surge algumas questões: 1) Se o poder disciplinar objetiva docilizar, adestrar, utilizar os corpos, então estaria todos os indivíduos presos a ele? Não há formas de burlar, subverter, forjar o poder?

Foucault (1999) dirá que não há escapatória considerando que “estamos” todos imersos no poder e desta maneira não é possível recusa-lo ou aceita-lo. Mas

estas resistências que também operam na lógica do poder podem funcionar como uma possibilidade de forjar o poder, de subvertê-lo, no sentido de transformá-lo em outro poder. Nas palavras do próprio Foucault,

[...] que lá onde há poder há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder. Deve-se afirmar que estamos necessariamente “no” poder, que dele não se “escapa”, que não existe, relativamente a ele, exterior absoluto, por estarmos inelutavelmente submetidos à lei? Ou que, sendo a história ardil da razão, o poder seria o ardil da história – aquele que sempre ganha? Isso equivaleria a desconhecer o caráter estritamente relacional das correlações de poder. Elas não podem existir senão em função de uma multiplicidade de pontos de resistência que representam, nas relações de poder, o papel de adversário, de alvo, de apoio, de saliência que permite a preensão. Esses pontos de resistência estão presentes em toda a rede de poder. Portanto, não existe, com respeito ao poder, um lugar da grande Recusa – alma revolta, foco de todas as rebeliões, lei pura do revolucionário. Mas sim resistências, no plural, que são casos únicos: possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício; por definição, não podem existir a não ser no campo estratégico das relações de poder (FOUCAULT, 1999, p. 91).

Neste capítulo aprendemos a olhar para o disciplinamento corporal como um produto das relações de poder que por um processo histórico constituíram e cristalizaram as práticas institucionais fundamentais para este modo de funcionamento da sociedade. Desse modo, pudemos observar que as instituições escolares também podem ser consideradas instituições disciplinares e nesta lógica sua articulação se constitui entre os corpos, o espaço e o tempo. Estes, por sua vez, constrói uma maquinaria com estratégias e procedimentos muito sutis com objetivo não só de produzir, tornar útil, eficaz em seus rendimentos, mas, melhor do que isso, seu objetivo final é tornar esta lógica natural. A partir da naturalização de seu funcionamentos, o poder disciplinar se prolonga, se transforma, captura os corpos. Mas não há saídas para os sujeitos? A saída está em uma outra face do poder criado intrinsecamente para subverter o que está cristalizado, é a resistência.

E, é com esta possibilidade de constituir e ser constituído pelo poder disciplinar, em todas suas formas e técnicas que, no próximo capítulo, vamos para uma escola pública vivenciar os acontecimentos que são produtores do disciplinamento corporal dos agentes (eu-pesquisador, os alunos e os professores); valendo-nos do exercício da cartografia refletiremos sobre as cenas apoiados nos conceitos cunhados – no período genealógico – por Michel Foucault.

C

APÍTULO

3

A

COMPLEXIDADE DAS RELAÇÕES

DISCIPLINARES EM UMA ESCOLA PÚBLICA

:

Neste capítulo descreveremos o contexto da escola pública na qual levantamos algumas cenas para problematizar as questões do disciplinamento na lógica das relações de poder; em seguida, narraremos como foram constituidos os encontros com a escola, as professoras, os alunos, bem como, alguns sentimentos que foram peças fundamentais para a construção de todo o trabalho, desde as leituras à metodologia: pesquisa-intervenção.

Desta maneira, organizamos este capítulo de modo a colocar em evidencia o contexto escolar no qual grande parte de nossas inquietações foram suscitadas, e mais, nos instigaram a problematizar as práticas escolares a partir das relações, imersas no poder, que configuraram no disciplinamento do cotidiano escolar, ora expostos, como nas organizações das salas de aula e das atividades preparadas previamente, ora sutis, na relação entre professor-aluno-pesquisador, ou mesmo nos recursos materiais e objetivos utilizados nas atividades.

Do mesmo modo que o primeiro problema desta pesquisa surgiu a partir de uma experiência do cotidiano escolar. O objeto, propriamente dito, se (re)configurou também a partir de algumas experiências e, sobretudo, pela reflexão sobre tais acontecimentos.