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Pancreatite aguda causada por álcool: a importância do metabolismo não-oxidativo

1. INTRODUÇÃO

1.4. Pancreatite aguda causada por álcool: a importância do metabolismo não-oxidativo

O consumo excessivo de bebidas alcoólicas tem sido relacionado com o aumento da incidência de pancreatite aguda nos últimos anos (DAHN et al., 2016). Esta associação tem sido reconhecida por mais de 100 anos (FRIEDERICH, 1878) e permanece o questionamento até os dias atuais de como o abuso do álcool predispõe o pâncreas para uma condição patológica. Nos países em desenvolvimento, aproximadamente 35% dos casos de pancreatite aguda (WANG et al., 2009) e aproximadamente 70% dos casos de pancreatite crônica (DAHN et al., 2016) estão associados à ingestão abusiva do etanol.

O álcool é metabolizado no nosso organismo por duas vias funcionais, a oxidativa e não-oxidativa. A via oxidativa é mais proeminente no processo de metabolização alcoólica que acontece no fígado, a qual acontece em duas etapas. As principais enzimas envolvidas nesse processo, a álcool desidrogenase (ADH), a enzima do citocromo P450 2E1 (CYP 2E1) do sistema microssomal de oxidação do etanol e a catalase podem todas converter o álcool a acetaldeído, gerando nesse processo também espécies reativas de oxigênio (EROs) (SHALBUEVA et al., 2013). Na segunda etapa deste processo, o acetaldeído, o qual é um composto altamente reativo, é convertido pela enzima aldeído desidrogenase (ALDH) em acetato. Porém, a expressão de ADH e CYP 2E1 no pâncreas é muito menor que no fígado. Consequentemente, o metabolismo oxidativo do etanol pelo pâncreas também acontece em uma proporção bastante menor que no fígado (HABER et al., 1988; NORTON et al., 1998). Dessa forma, o acetaldeído contribui para a doença induzida pelo álcool no fígado, mas não pode ser responsável por danos em órgãos como o pâncreas, coração ou cérebro, onde o metabolismo oxidativo é mínimo ou ausente; nem pode explicar os variados padrões de danos em órgãos encontrados em alcoólatras crônicos (CLEMENS et al., 2016).

Em contrapartida, o metabolismo não oxidativo do etanol é realizado por um grupo diversificado de enzimas conhecidas como etil ésteres de ácidos graxos sintetases (LAPOSATA, 1998). O metabolismo do etanol por estas enzimas combina ácidos graxos livres com etanol, gerando os metabólitos finais, os etil ésteres de ácidos graxos (EEAGs) (Figura 04). No pâncreas a atividade da enzima etil éster de ácido graxo sintetase é bastante alta. Dessa forma, o metabolismo pancreático do etanol pela via não-oxidativa é maior que pela via oxidativa (LAPOSATA, 1986). Pelo fato da atividade de ADH e CYP 2E1 ser relativamente baixa no pâncreas, o metabolismo do etanol por EEAG sintetases e a produção proeminente de EEAGs tem um papel importante nas disfunções pancreáticas associadas ao álcool e no desenvolvimento de pancreatite alcoólica.

Estudos mostram que essas duas rotas de metabolização do etanol estão relacionadas, pois trabalhos in vivo e in vitro tem mostrado que o impedimento da oxidação por inibidores de ADH, citocromo P450 e catalase resulta em um aumento no metabolismo não-oxidativo do etanol e leva a uma produção aumentada de EEAGs no fígado e pâncreas CLEMENS et al., 2016). Nesse sentido, há trabalhos interessantes que mostram que ao contrário dos EEAGs, o acetaldeído não apresenta-se em concentrações significativas no coração, cérebro e especialmente no pâncreas, sendo somente detectado quantidades ínfimas na circulação, logo após a ingestão de etanol (LAPOSATA, 1998; LAPOSATA, 1986). Dessa forma, estes dados reforçam ainda mais os achados da literatura, sugerindo que as consequências patológicas do uso abusivo do etanol no pâncreas não são devido ao seu metabolismo oxidativo, mas sim aos produtos da sua rota de metabolização não-oxidativa, como os EEAGs ou os próprios ácidos graxos, após processo de hidrólise final dessa rota.

Esses achados justificam o fato do álcool isolado não ser um modelo confiável de indução de pancreatite aguda experimental, pois a via metabólica comum compartilhada por ácidos graxos e álcool, através do processo não-oxidativo, tem demonstrado ser mais prejudicial ao pâncreas exócrino que a via de metabolização que não tem a participação de gorduras no processo (CRIDDLE, 2015). Essa associação tem relevância fundamentada em dados epidemiológicos de estudos populacionais que demonstraram que dietas com alto teor de gordura podem ter estreita relação com o desenvolvimento de pancreatite alcoólica aguda e crônica (DUFOUR; ADAMSON, 2003), enquanto a hipertrigliceridemia é um fator de risco independente para ambos (WANG et al., 2009; YADAV; LOWENFELS, 2013).

Diante do conhecimento acerca da importância da rota não-oxidativa, onde a presença concomitante de gorduras e álcool no processo de metabolização são fatores cruciais para o desenvolvimento de pancreatite aguda, o professor David Criddle e colaboradores (2004), o qual é importante colaborador do nosso grupo de pesquisa no Brasil, na tentativa de desenvolver um melhor modelo experimental in vitro que representasse a nível celular o que acontece na clínica de pacientes com pancreatite aguda, desenvolveu um modelo de lesão da célula acinar pancreática induzida por etanol associado a um ácido graxo, o ácido palmitoleico (POA). Através desse trabalho, foi demonstrado, de forma pioneira, que os metabólitos de ácidos graxos não oxidativos ou os próprios ácidos graxos, mais que o etanol per si, são responsáveis pela elevação acentuada de cálcio intracelular [Ca2+]i, o qual medeia a toxicidade na célula acinar pancreática e que esses compostos agem primariamente pela liberação de cálcio do retículo endoplasmático, através de receptores de inositol trifosfato (IP3R) (Criddle et al.,

Nessa mesma perspectiva, o professor Dr. David Criddle (HUANG et al., 2014) também sugeriu um modelo experimental in vivo baseado no metabolismo não oxidativo do etanol, envolvendo duas injeções intraperitoneais simples de etanol na presença de ácido Palmitoleico (Etanol/POA) em camundongos, os quais causaram inflamação e dano pancreático grave, característicos de pancreatite aguda, tais como, mudanças histopatológicas, como necrose, inflamação e edema tecidual, bem como aumento na concentração de marcadores bioquímicos, incluindo tripsina pancreática, amilase sérica e dosagem de mieloperoxidase, além do aumento da citocina pró-inflamatória interleucina-6. Estes modelos têm se mostrado bastante promissores e têm sido utilizados extensivamente por pesquisadores ao redor do mundo como uma forma eficaz de mimetização da pancreatite aguda alcoólica que acomete os seres humanos.

Figura 04. Vias de metabolização do etanol no pâncreas.

EEAG: Etil éster de ácido graxo. AG: ácido graxo. AEAT: etanol acil transferase. TG: triglicerídeo. Figura adaptada de BEST; LAPOSATA, 2003.

1.5. Mecanismos de dano induzido por Etanol/POA: A relação entre o aumento de [Ca2+]c,