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O CORPO E SUAS METÁFORAS DE GUERRA ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA DO HIV/AIDS A PARTIR DAS OBRAS

3.1. Panorama de uma guerra

As obras fílmicas analisadas neste capítulo são três. A primeira diz respeito ao documentário Trilogia das Novas Famílias (2007), de autoria da cineasta moçambicana Isabel Noronha. A segunda, também de autoria de Isabel, em parceria com a cineasta brasileira Vivian Altman, intitulada Mãe dos Netos (2008). E a terceira pertencente ao cineasta moçambicano Orlando Mesquita, A bola (2001). Minha intenção é tomar de empréstimo algumas imagens que nos ajudem a pensar o corpo nos termos em que foram apresentados pelos cineastas em suas obras – pensando que as imagens são produtos e produtoras de significados, sentidos e interpelações (BARTHES, 1964; 1984). Nas obras em questão, é apresentada uma série de imagens em que o corpo ocupa um espaço privilegiado. Nesse sentido, tenho a intenção de destacar a dimensão simbólico-cultural da imagem cinematográfica, em que o corpo inserido na experiência do HIV/Aids é significado.

Isabel Noronha é uma cineasta moçambicana que vem produzindo documentários acerca de questões, que envolvem o cenário político-cultural moçambicano, destacando-se não somente pela produtividade, mas também, por ser a única mulher cineasta no cenário do cinema nacional moçambicano. Psicóloga de formação, atuou no INC desde seus primórdios, desempenhando um papel importante durante a guerra civil, que se deflagrou em Moçambique, logo após a independência, quando atuou, principalmente, na produção do semanário Kuxa Kanema. Sua formação em cinema, ao longo dos anos, não se restringiu aos domínios nacionais, tendo participado de cursos tanto em Portugal (RTP), quanto em Paris (Ateliê Varan). Em seus trabalhos, destaca-se a preocupação com as questões político-sociais de seu país, ao mesmo tempo, em que se verifica uma versatilidade, quanto aos métodos e recursos utilizados em sua narrativa, para tratar de temas e questões que envolvem grande complexidade.

Orlando Mesquita, por sua vez, soma, ao longo de sua trajetória, uma vasta produção cinematográfica, seja atuando como editor, seja como realizador ou colaborador. Moçambicano, Orlando trabalhou, tanto em projetos próprios, quanto em projetos de outros cineastas – destaque para os trabalhos com Isabel Noronha, Camilo de Sousa, Gabriel Mondlane e Licínio Azevedo. Sua formação na área do cinema se dá em Cuba, onde se especializa tanto em fotografia, quanto em produção cinematográfica. Tanto que, desde a infância, ele matem nifestado interesse pelo cinema – foi influenciado pelo pai que era vídeo

amador –, sua inserção profissional, neste campo, se dá em 1983, quando entra para a Kanemo, uma empresa responsável pela realização de filmes em Moçambique. Cofundador da COOPIMAGEM (cooperativa de cineastas moçambicanos que se volta tanto para a produção gráfica quanto cinematográfica), hoje, seu trabalho tem se dado, principalmente , na edição de filmes.

Optamos por abordar as três obras cinematográficas apontadas, pois nelas é possível verificar de modo privilegiado, como o cinema moçambicano constitui uma tessitura narrativa para falar de sujeitos, que têm sua história marcada pela experiência do HIV/Aids. Para esta análise, como dissemos anteriormente, privilegiamos o olhar que o cinema moçambicano projeta sobre os corpos de seus personagens.

Iniciamos, assim, pela referência do projeto fílmico Trilogia das

Novas Famílias (2007), conduzido por Isabel Noronha. Este trabalho foi

uma produção que contou com o apoio institucional e financeiro da ONG FDC (Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade), liderada pela ex-primeira dama moçambicana Graça Machel, que se propôs a pensar os impactos do HIV/Aids na dinâmica dos núcleos familiares locais. A obra é composta por três filmes documentários (Caminhos do Ser; Delfina Mulher Menina e Ali Aleluia). A narrativa traz como personagens centrais crianças e adolescentes moçambicanos que, a partir da perda de seus genitores ocasionada pelo HIV/Aids, tiveram de formar novos arranjos familiares, em que os mais velhos assumem a responsabilidade pela educação e sobrevivência dos mais novos.

No primeiro filme, Caminhos do Ser, é possível acompanhar a história de quatro irmãos, todos, rapazes, que ao ficarem órfãos de pai e mãe, são rejeitados pela comunidade, que associa a morte dos seus pais a um caso de feitiçaria. Ao viverem sós, a maior parte do tempo, realizarem o papel de pai e mãe uns dos outros, tentam superar as dificuldades. A memória dos ensinamentos maternos é o grande elo estabelecido com a mãe e, ao mesmo tempo, o que possibilita, que deem prosseguimento às suas atividades cotidianas (atividades domésticas, escola, machamba), dessa forma, passam a lutar, pela sobrevivência e superação dos preconceitos, a que estão submetidos pela sua condição social.

No segundo filme, Delfina-Mulher-Menina, temos a história de uma menina que, aos 13 anos, teve de assumir o papel de chefe de família, cuidando de quatro irmãos. Além de cuidar dos afazeres

domésticos próprios de um adulto, Delfina ainda tem que enfrentar o destrato dos irmãos e a saudade, que sente da falecida mãe. Com o apoio de uma ONG local e do sonho, que nutre de ser médica, Delfina tenta encontrar forças para a superação das dificuldades e dos conflitos.

O terceiro e último filme da série, Ali-Aleluia, conta a história de um menino de 11 anos, chamado Ali, que contraiu o HIV por transmissão vertical de sua mãe que, tal como o seu pai, faleceu, quando ele tinha oito anos. “Ali” vive sozinho na casa, que era dos seus pais, sendo cuidado por uma ativista local e pela sua filha. Para efeito de análise, debruçamo-nos somente à narrativa sobre Ali Aleluia, na qual a questão do corpo ganha grande centralidade no enredo cinematográfico. 3.2. Ali-Aleluia: um corpo em mutação

“Era uma vez Ali Aleluia, que vivia com seus pais e irmãos numa casa bonita e antiga no centro da cidade de Inhambane. Um dia, Ali acordou e estranhou estar deitado na sala sobre uma esteira, em vez de estar no seu quarto junto com os irmãos.37 O som dos pássaros lá fora ecoando por entre os móveis destruídos e o sol entrando pelas janelas, teimava em dizer que ele não estava a sonhar. Ali Aleluia ainda não sabia, mas esse era o primeiro dia de sua nova vida”. Eis a narrativa inicial da história de Ali Aleluia, protagonista da trama.

O filme retrata o cotidiano de Ali Hassane Aníbal Aleluia que, diante da ausência dos pais, vítimas do HIV/Aids, ele se vê diante dos dilemas de cuidar de si mesmo. Ali Aleluia mora sozinho em uma casa simples e precária, única herança deixada pelos pais, e que um dia também pertencera aos seus avós. Sozinho, órfão dos pais, o menino tem como companhia, além das lembranças que guarda da relação com seus pais, uma vizinha que se torna sua grande mentora.

Ali-Aleluia inicia com a imagem do menino deitado numa

pequena esteira de bambus, com sua bola de basquete ao lado da cabeça. Em seguida, o menino acorda e, numa atitude que parece mostrar sua rotina cotidiana, levanta-se e segue rumo a uma pequena gaveta, onde se encontram várias embalagens de comprimidos – coquetéis antirretrovirais – para logo em seguida ingeri-los como num ritual quase

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Talvez a cineasta tenha utilizado a referência aos “irmãos” de Ali, apenas para ressaltar o desejo que o personagem teria de ter uma família ou mesmo para enfatizar a dramaticidade do impacto do HIV/Aids nas configurações familiares. Afinal em toda a trama não aparece nenhum irmão ou parente próximo, estando Ali submetido apenas aos cuidados uma vizinha (tia Celina). Nesse sentido, tratar-se-ia de uma figura de linguagem.

mecânico. Menino franzino, com um corpo, que parece querer manifestar sua fragilidade, Ali recorda que perdeu seus pais, quando tinha apenas 8 anos de idade e que agora, com 11 anos, se vê cuidado pelos outros (que chama de primos). Conforme a narrativa avança, Ali narra suas dificuldades iniciais para adaptar-se a sua nova condição (além de ser órfão, também vive com HIV/Aids), seu cotidiano, sonhos e esperanças.

Figura 18: Ali Aleluia in Trilogia das Novas Famílias, 2007 - Créditos das Imagens: Isabel Noronha

A vida de Ali pode ser compreendida como um entre-lugar. Envolvido numa liminaridade própria de sua condição, sua história é perpassada por um antes e um depois (VAN GENNEP, 2011). O menino narra que, após a morte dos pais, teve dificuldades para ir à escola, ficou muito doente, e que esta situação foi superada, apenas, quando passou a tomar os medicamentos. É Nely, uma enfermeira, que em depoimento expressa um pouco das condições difíceis pelas quais passou o menino no início: “Recebi este menino como meu paciente no ano 2005. Quem o trouxe ao hospital foi a nossa ativista Celina Pedro. A criança estava muito mal, tinha febres altas, diarreia, estava cheia de feridas em quase todo o corpo. Fez-se um teste e acusou que era soropositivo. Recebemos a criança e entreguei-a à mesma ativista, que o trouxe ao hospital, para tomar conta dela.” (Transcrição de trecho do documentário “Ali- Aleluia”, Isabel Noronha, 2007).

Ao depoimento da enfermeira, somam-se outros depoimentos: tia Celina (a ativista citada na fala da enfermeira Nely) e sua filha Dininha (pela qual Ali nutre uma pequena paixão). O cotidiano de Ali é cercado de atividades que, ao mesmo tempo, que é comum aos meninos de sua idade (por exemplo, rotina de estudos), também é cercada por desafios próprios de sua condição de morar “sozinho” (trabalhos domésticos). Ambas as personagens revelam os dilemas e dificuldades, que cercaram e cercam o menino: o preconceito social, que por vezes fazia-o chorar, o isolamento social e o esquecimento em tomar os medicamentos. “Adotado” por esta nova “família” (tia Celina e sua filha Dininha), aos poucos o personagem vai vencendo as dificuldades, que o envolvem. Destituído de uma narrativa pessimista sobre Ali, o documentário de Isabel Noronha aponta antes para seu poder de superação diante dos dilemas a que foi submetido. Ao final do documentário, aponta a cineasta: “... e, um dos muitos atos de coragem

de Ali foi contar-nos a sua história, para que todos saibam, que também podem ser heróis de si mesmo...” (Transcrição de trecho do

documentário Ali-Aleluia, Isabel Noronha, 2007). Seja recordando o heroísmo do pai, seja socializando com outras crianças nos momentos de lazer, o corpo físico e social de Ali Aleluia, aos poucos passa por uma metamorfose: da fragilidade à força, do aniquilamento à reestruturação de si mesmo.