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PANORAMA HERMENÊUTICO DE CÂNTICO DOS CÂNTICOS

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1 CORPO E CORPOREIDADES: UMA BREVE PANORÂMICA HISTÓRICO-

2.2 PANORAMA HERMENÊUTICO DE CÂNTICO DOS CÂNTICOS

As leituras e interpretações de Cântico dos Cânticos variam em sua temática, em sua autoria, e em seus contextos históricos ou de datação. Logo, encontra-se uma diversidade de suposições que nos deixam ainda mais à vontade para dialogar de forma aberta e dinâmica com o(a) leitor(a).

Gianfranco Ravasi (1988) destacou que Cântico era “antes de tudo uma celebração do amor humano”, e o amor humano em sua concretização, sua corporeidade e seu erotismo era a representação alegórica do amor divino. Alguns autores da América Latina46 consideraram Cântico dos Cânticos uma coletânea de poemas que exalta o amor erótico, o âmbito da sexualidade, o erotismo, o amor sexual, o amor apaixonado, as experiências e descobertas amorosas, como também o amor conjugal.47

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Entre interpretações feitas na América Latina estão incluídos comentários do Cântico dos Cânticos na Bíblia Sagrada versão Almeida; Bíblia de Jerusalém; Bíblia Sagrada da Editora Vozes e a Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB). Aqui utilizaremos a tradução: A Bíblia da Mulher – Almeida revista e atualizada. Anexo1.

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Questiona-se se há um lugar na Bíblia onde os corpos de homens e mulheres possam ser valorizados em entrega mútua e naturalidade? Há nela um lugar em que a corporeidade masculina se encontra com a feminina em cumplicidade, em igualdade, em sintonia e harmonia com a natureza?

Alguns teóricos afirmam que, se está no cânon sagrado, trata-se de ler o erotismo e a sexualidade de Cântico dos Cânticos como sagrados e não como questões profanas. Para outros, sexualidade e sacralidade são questões separadas, acredita-se que a sexualidade não é sagrada, mas carrega suas significâncias sócio- políticas, ou seja, representa as relações com a vida na ordem social, política e econômica daquele contexto48.

Andiñach (1997) afirmou que interpretações essencialistas, ao atribuir o caráter sagrado à sexualidade e ao erotismo em Cântico dos Cânticos, refletem práticas culturais de povos vizinhos ao Antigo Israel. Ou seja, manifestações próprias de cultos à fertilidade, prática esta, segundo o autor, rejeitada pelos profetas do Antigo Testamento.

No entanto, existem elementos do cotidiano citados por Andiñach (1997), especialmente o descanso ou Sabath, como sagrados e considerados fontes de sabedoria (hokman) para o Antigo Israel (Gn 2,1-3). Porém esse autor desconhece a sexualidade como sagrada no Antigo Israel por sua rejeição legal (Dt 23,17-18) e por sua condenação profética (Os 4,13-14).

Contudo, Gonçalves (2002) questionou o poder do amor em Ct 8,6 e sua relação com o cotidiano, visto que o texto afirma o amor como mais forte que a morte. O autor igualmente questionou a possibilidade de, em Cântico dos Cânticos, o natural seria entender a sexualidade como algo de significância cotidiana, na qual corporeidades se cristalizam como instrumentos de relações legitimadoras de poderes e saberes.

No contexto do Antigo Testamento, os casamentos poderiam representar e fortalecer alianças comerciais e político-religiosas entre culturas distantes e díspares. Em Cântico dos Cânticos existem menções de abundâncias, riquezas e fertilidade, as quais do ponto de vista veterotestamentário, eram compreendidas como bênçãos de Yahweh derramadas sobre seus monarcas.

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Os monarcas naquele contexto histórico-cultural eram representações vivas dessas bênçãos, ao levar em consideração a estrutura física e geográfica da região, e ao se projetar para vivências em tendas e grupos familiares relativamente pequenos, muitas vezes itinerantes, verifica-se que alianças de corpos eram significativas para tais civilizações. As alianças de corpos poderiam representar o crescimento familiar, riquezas e união entre clãs. Representava prosperidade, fertilidade e força, era e é, até os dias de hoje, momento de celebração, que também promovem esperança, união e vida.

Contudo, a maioria das interpretações de Cântico dos Cânticos permanece no discurso dicotômico entre profano e sagrado. Percebe que Tamez, Brenner, Trible, Pope e Sampaio49 demonstrem certa superação de tal visão dicotômica ao afirmar como aspecto fundamental a linguagem polissêmica de Cântico dos Cânticos.

Nancy Cardoso (1995) afirmou a partir da compreensão antropológica do amor humano como dádiva divina, como força que anima e propulsiona vida, ou de forma teológica, no sentido em que o amor divino se faz humano através do amado e da amada, que resgatar a experiência de vida descrita em Cântico dos Cânticos “significa evidenciar a pertença que os textos sagrados têm com a sacralidade esparramada na vida e no corpo. A Bíblia, assim, é memória dos pobres, homens e mulheres que experimentam Deus(a) misturado no cotidiano”.50

Sampaio (2003, p. 108) questionou em que sentido Cântico dos Cânticos nos convida a pensar na auto-representação positiva da mulher. A sulamita, para essa autora, faz-nos pensar sobre marcas das relações interpessoais e sociais que fizeram parte desse contexto histórico-cultural.

Cantares, em sua abertura, por meio da auto-apresentação positiva da

mulher, a que nos convida? Entre outras coisas, a nos olhar no espelho! A dizer o Bem e o belo de nós mesmos. Nos faz um convite estético! Com qual beleza nos apresentamos para as relações? Quais as marcas que estão à flor da pele em nosso corpo? Quais cuidados de si têm sido postergados, tendo em vista as obrigações impostas pelo trabalho que beneficia os outros? A despeito das lidas, do trabalho cotidiano, da relação com seus irmãos, com os guardas da cidade, que estética de

passagem/êxodo/saída/alternativa soa da boca da mulher – a amante e

amada de Cantares? Lamentos e desolações? Ou uma mirada no espelho para dizer o Bem, para bem-dizer seu corpo, sua vida, e abrir-se, então, para dizer o Bem do outro? (SAMPAIO, 2003, p. 108).

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Veja, por exemplo, Athalya Brenner (2000), Sampaio (2003), Pope (2000) e Phyllis (2000). 50

Para Tânia Sampaio (2005, p. 61), a categoria de gênero pressupõe jogos de poderes, cuja revelação se dá pela leitura na realidade e nos saberes, pela contínua busca de articular novos horizontes metodológicos e epistêmicos. Para essa autora, a proposta analítica pretendida,

depende de que a categoria gênero seja compreendida como referencial de análise fundado nas concretas relações sociais de gênero e que se estruturam na realidade relacional dos seres humanos. Não se trata, portanto, de isolar a mulher como categoria específica, mas de exigir que a relação mesma entre homens e mulheres seja o foco da análise. O eixo fundamental é identificar as estruturas de poder e controle imbricadas nas relações e sua respectiva produção e reprodução do saber (SAMPAIO, 2003, p. 108).

Uma vez compreendido o poder como que “pulverizado” nas relações sociais, como algo “molecularmente” presente nas várias esferas sociais, torna-se difícil a identificação e a localização dos mecanismos de seu controle, consequentemente, sua dissolução. Pode-se compreender o conceito de “relações de gênero” como instrumental capaz de captar as tramas das relações sociais, bem como suas transformações ocorridas ao longo da história e da cultura. Isso implica admitir que, no processo de dominação-exploração, ainda que de forma velada, sobrevivem personagens que são representativos desse processo:

esse dado é de fundamental importância quando desejamos superar o debate com a sociedade patriarcal, como se suas estruturas retirassem totalmente, ou absolutamente, o poder das mulheres, das minorias étnicas etc. “Homem e mulher jogam, cada um com seus poderes, o primeiro para preservar sua supremacia, a segunda para tornar menos incompleta sua cidadania.” Certamente, o acesso ao poder é desigual, imprimindo essa marca nas relações sociais, sejam elas de gênero, de classe, sejam de etnia/raça (SAMPAIO, 2003b, p. 110).

A partir da visão foucaultiana de poder como forças díspares que permeiam as relações sociais em tramas, muitas vezes, sutis, torna-se fundamental para uma hermenêutica feminista e ecofeminista compreender os acontecimentos histórico- culturais no viés das relações sociais de poder como chave de leitura, com a proposta de captar a complexidade e a multiplicidade das relações que se entrecruzam e se influenciam. Daí vale o desafio para:

olhar a questão de modo mais dialético, dinâmico, pois a própria condição de subordinação está acompanhada de movimentos de resistência e apropriação desses espaços. Exaltar a participação da mulher, do negro, do empobrecido (em qualquer coisa), como justificativa de que não há discriminação, é obscurecer o conflito. Se, de um lado, assumir a conflitividade da relação entre os grupos sociais ajuda no reconhecimento dos grupos dominantes, de outro, a exaltação nega o conflito e encobre que, entre os próprios grupos sociais, não há homogeneidade. O protagonismo social/real limitado para mulheres, negros, indígenas,

empobrecidos precisa ser olhado no interior das relações sociais de dominação vividas por esses grupos (SAMPAIO, 2003b, p. 110).

Dessa maneira, analisa-se Cântico dos Cânticos levando em consideração seus aspectos relacionais de poderes e saberes contextualizados no período do século X a V a.C. com especial atenção aos últimos achados arqueológicos e à cultura de povos vizinhos ao Antigo Israel, cujo cotidiano econômico, político, cultural e religioso se faz presente no texto. Lembramos que poucas são as evidências afirmativas com relação a qualquer tipo de núcleo histórico preciso e que permanecem em aberto afirmações a respeito de sua datação. O que se pode afirmar é que existe um consenso a respeito da importância que o livro sagrado Cântico dos Cânticos tem na vivência e na prática de fé em três grandes religiões: o Islamismo, o Cristianismo e o Judaísmo.

2.3 PLURALISMO RELIGIOSO NO ANTIGO ISRAEL: ASPECTOS HISTÓRICO-

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