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A pecuária, mesmo se encontrando mergulhada em uma longa fase de decadência, é o grande lenitivo da população, tanto dos caatingueiros que tomam-na como alvo único de suas atenções, como de parte considerável da população que vive na margem do rio que quando não mantém um pequeno rebanho sempre acalenta o desejo de possuí-lo sob o argumento de que ela é menos onerosa e mais segura. Ao perguntar a um morador da beira do rio sobre qual é a diferença entre a pecuária e a agricultura, ele respondeu:

Quando eu voltei de São Paulo comecei a plantar roça, agora roça não dava. Em vez de eu ter troco na roça tava era vendendo o meu pra botar dinheiro na roça. Aí saí da roça. A diferença é que na pecuária você investe muito,

37 Essa é a expressão usada pelos moradores das margens do São Francisco, parte que fica a jusante da barragem de Sobradinho.

mas sempre tem. Você num joga tudo fora, e a roça você tem cinco, dez mil, ou vinte ou trinta, você aplica em uma roça grande, o dinheiro que você tem você joga fora. Quer dizer que aquela roça se não deu dinheiro de retorno você perde ele. E a pecuária não. A pecuária você tem cem cabra, duzentas, aí se você não tiver o tempo de zelar, você pode vender cinqüenta, até cem pra tratar das outras. Quando vier a produção às vez chega o mesmo. Você precisa de fazer sua feira, de comprar uma roupa prum filho, um calçado, você pega nelas, vende elas. Quando chega um tempo bom ela torna a recuperar. É assim. (Mundoso, 52 anos, Faz. do Meio)

Na caatinga o discurso segue o mesmo raciocínio diante de idêntica pergunta.

No que se refere a quase totalidade da área do município ser dedicada à pecuária, ocupando o 3º lugar em rebanho de caprino no Brasil, segundo o Censo Agropecuário de 1996 – IBGE, o número de animais por sítio e por proprietário é pequeno , em se falando de caprinos e ovinos. Mesmo na maioria das fazendas ou sítios que possuem 200, 300 cabeças de caprinos e igual quantidade de ovinos, é comum eles pertencerem a vários membros da família, o que redunda em posse de poucas cabeças por pessoa, incluindo aqueles membros da família que se encontram ausentes, morando nas cidades mais próximas ou em cidades distantes. No passado como no presente sempre foi a criação miúnça quem deu sustentação econômica aos criadores, pois sempre foi a ela que recorreram para se suprir de carne e garantir a realização das despesas do dia-a-dia, inclusive para a manutenção e melhoria dos equipamentos das fazendas38. Mesmo assim, o imaginário do caatingueiro gira em torno do gado, fato que pode ser comprovado pelas histórias contadas nos terreiros, em torno das mesas de bar, pelo culto à imagem do vaqueiro, pelas conversas travadas em todos os lugares, pelas lendas, pela posse de cavalos “bom de gado” e de apetrechos próprios para a pega de

38 Segundo vários informantes os itens básicos de uma feira eram: uma rapadura, um prato de farinha, uma garrafa de querosene, uma caixa de fósforo, um quilo de açúcar, um ou dois quilos de feijão. Há 40 anos atrás o costume dos criadores menos pobres era matar uma criação no domingo para se proverem da carne dela e levarem a pele para a feira onde a vendiam e com o dinheiro apurado se abasteciam de quase todos os produtos de que necessitavam no correr da semana.

boi, disseminados nas casas das caatingas, com poucas exceções. Assim, a festa mais animada do município, desde muitos anos, é a Festa dos Vaqueiros, oportunidade em que os vaqueiros, apetrechados a caráter, aboiam como se estivessem na labuta com o gado e nenhuma palavra que lembre cabras ou ovelhas. Mesmo quando se referem às cabras e ovelhas, em conversas do dia-a-dia, é comum transferirem os termos próprios do gado para as miunças; assim pronunciam, por exemplo a expressão “boiada de cabras” ou “boiada de ovelhas”.Um vaqueiro perguntado sobre o que ele sentia quando estava desfilando na Festa dos Vaqueiros, disse:

O que é que eu sinto? Rapaz, eu sinto... (riso). Eu sinto uma grande emoção. To desfilando lá e tô... Eu tô lá desfilando e tô lembrando dos bicho, sabe? Naquele momento eu tô lá, parece que tô lidando com o gado. Eu sinto aquela saudade dos animais do campo. A gente tá no meio do povo, mas eu tô, sabe?, com o sentido nos bicho, no gado... Aquele aboio, aquelas coisa toda, a gente... aquela recordação muito grande. (J.N.S.R., 40 anos, Faz. Melancia)

No imaginário local, fazenda tem que possuir gado. Fazenda que não possui gado...

Tá incompleta, né, rapaz? Vaca pode faltar não. É um animal sagrado. Não pode faltar não. Eu posso até aplicar esse termo, quase que tá sendo isso, quase que é diletantismo criar gado, mas tem essas coisas que a gente... num esquece de gado. Gado... ainda mais é uma coisa que vem de tradição, rapaz. Aquilo que vem de tradição é uma coisa terrível pra eliminar. É bom de se lidar com ele. Cada vaquinha tem um nome. Eu chego aí onde tá o magote, eu chamo o nome deles aí, eu chamo... (S.S.T., 51 anos, um dos criadores mais modernos do município, Faz. Moça Branca¸adjacência da Faz. Melancia)

O gado confere um certo ar de nobreza e prosperidade. O seu traquejo impõe desafios, indumentária especial, cavalo de campo e acima de tudo, coragem para enfrentar a caatinga nas pegas de gado e na luta corpo-a-corpo com um touro quando este vira para enfrentar o vaqueiro. O seu valor econômico superior ao valor de dez miunças, embora não defina tudo, também contribui bastante pra a elevação do grau de

estima que lhe é dedicado. Para o beiradeiro e principalmente para o caatingueiro de poucas posses sempre constituiu sonho poder um dia ser chamado de fazendeiro, ideal que parece ter sido gestado ainda no período colonial conforme a impressão transcrita abaixo:

A criação de gado influi sobre o modo por que se forma a população. Nos sertões da Bahia, Pernambuco e Ceará, principalmente pelas vizinhanças do rio São Francisco, abundam mulatos, mestiços e pretos forros. Esta gente perversa, ociosa e inútil pela aversão que tem ao trabalho da agricultura, é muito diferentemente empregada nas fazendas de gado. Tem a este exercício uma tal inclinação que procura com empenho ser nele ocupada, constituindo toda a sua maior felicidade em merecer algum dia o nome de vaqueiro. (João Caldas, in: Abreu, 1988, p. 140)