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4. O FINANCIAMENTO MULTILATERAL DO DESENVOLVIMENTO NO CEARÁ

4.2 O GOVERNO DAS MUDANÇAS

4.2.1 Panorama sobre as Políticas de Desenvolvimento via Industrialização e Agronegócio

No setor administrativo, a relevância do discurso do Governo das Mudanças residiu na reversão da crise fiscal e no rompimento de práticas que colocavam em risco a eficiência do Estado. No plano econômico, o governo apostou em três grandes frentes para alavancar o estado e reduzir a pobreza: indústria, agronegócio e turismo.

Ainda que não seja o foco da tese, acredita-se na relevância de trazer uma breve explicação a respeito das duas estratégias econômicas do Governo do Ceará, industrialização e agronegócio, visto que guardam relações no desencadeamento de projetos de desenvolvimento territorial que iremos analisar no decorrer do capítulo. O texto que se segue fundamenta-se em dados

142 Ver GUNN, Philip. As Novas Leites e o Nordeste: O Pacto Cearense de Cooperação. São Paulo: Projeto IDEC, 1984

(mimeo). A capa do trabalho de Philip Gunn estampa a capa da Revista Veja edição 1316 de dezembro de 1993, trazendo “O Exemplo Ceará: como o estado escapou da crise”.

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secundários, principalmente de professores/pesquisadores de universidades públicas cearenses.

Amora (2005) identifica três grandes períodos referentes à industrialização cearense. O primeiro conforma-se entre o fim do século XIX até meados do século XX; o segundo compreende a década 1960 até a década de 1980; e o terceiro vai de meados da década de 1980 aos dias atuais. O primeiro período caracteriza-se principalmente pelas indústrias têxteis, de óleos vegetais e de couro e peles, consequência natural da matéria prima de origem agrícola e pecuária do Ceará, com destaque para o algodão. O segundo período, entre a década 1960 e 1980, é marcado pela presença do BNB e da SUDENE, criados respectivamente em 1954 e 1959, e impulsionado por uma projeto nacional-desenvolvimentista que tomava a indústria de bens de capital como o grande propulsor da economia brasileira.

Segundo Oliveira (1987), o sistema de apoio de financiamentos criados pelo planejamento da SUDENE foi eficaz nos primeiros anos da década de 1960, inaugurando para o Nordeste um novo momento econômico. Incentivos fiscais atraíram empresas do Sudeste que passaram a construir filiais nas capitais nordestinas e nos centros mais dinâmicos do interior. O Estado, a partir do Banco do Nordeste do Brasil e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, complementava o investimento privado, principalmente em setores não atrativos ao mercado.

Oliveira (1987) encara as intervenções da SUDENE de maneira bastante crítica, afirmando que o órgão foi um mecanismo de destruição acelerada da economia regional do Nordeste, no momento em que, em vez de promover a integração nacional por meio da redução das desigualdades regionais promovida por uma industrialização endógena, facilitou apenas a transferência para o Nordeste de filiais das grandes indústrias do Sudeste, mantendo o fluxo de mais-valia produzida na região mais pobre para região mais rica. Assim ele define o planejamento da SUDENE: "[...] essa forma de transformação dos pressupostos da produção, essa passagem da mais-valia captada pelo Estado como imposto, e sua conversão em capital entregue à grande burguesia do Centro-Sul” (OLIVEIRA, 1987, p.113).

Os incentivos da SUDENE direcionaram-se principalmente para a Bahia, Ceará e Pernambuco. No Ceará, as indústrias instalaram-se primeiramente em Fortaleza, e, mais tarde, na região metropolitana, decorrência das facilidades de infraestrutura e serviço da capital. Ocorreu também uma especialização quanto ao tipo de investimentos por estado. “Na Bahia desenvolve- se atividades voltadas para a produção de bens de consumo intermediário, com base na petroquímica, enquanto que em Pernambuco e no Ceará predominam indústrias leves” (AMORA, 2007, p.374).

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No Ceará desenvolveu-se um importante polo têxtil e de confecções, desencadeando novos fluxos, doravante, não mais somente para o mercado local, mas para o mercado nacional. Verifica-se também o beneficiamento de alguns produtos primários como a castanha de caju e a lagosta, destinados à exportação. Amora (2005, p.375), assim como Oliveira (2008), acredita que a SUDENE ensejou a modernização de alguns setores industriais e de serviço, gerando

“crescimento econômico considerável”, contudo não foi capaz de reduzir as desigualdades

regionais: “a concentração de renda se amplia, e os tão debatidos desequilíbrios entre as regiões do país se mantêm”.

O terceiro período de industrialização do Ceará, segundo Amora (2007) vai de meados da década de 1980 aos dias atuais, coincidindo com o contexto mundial de consolidação do neoliberalismo, por meio do desenvolvimento da produção de forma descentralizada espacialmente por todo o mundo, sobretudo com o objetivo de capturar força de trabalho mais barata. Isso tem se verificado não somente nas indústrias, como também no setor de serviços, tanto na captação de baixa qualidade de capital social (ex: telemarketing), como de alta qualidade (ex: tecnologia da informação). Além da redução do custo de reprodução social, a descentralização de serviços avançados também economiza tempo ao tirar vantagem do fuso horário diferenciado. Dessa forma, empresas de consultorias mundiais conseguem manter sua equipe trabalhando 24 horas por dia. Enquanto parte da equipe dorme na Índia, outra parte trabalha no Brasil e vice-versa. O modelo de forte intervenção direta do Estado nas décadas de 1970 e 1980 foi deixado de lado, e os modelos de reestruturação e ampliação de competitividade entre as regiões tiveram passagem na década de 1990. Essa década também é marcada pela seletividade dos investimentos privados, alheios a um desenho nacional de desenvolvimento. As atividades mais estratégicas passam a se localizar novamente na região Sudeste, principalmente dos serviços avançados. As indústrias de menor valor agregado procuram pontos com menores valores salariais, e o Estado valoriza a “competitividade estratégica” nos centros mais dinâmicos (SILVA; FERREIRA, 2008).

Dá-se início à chamada guerra fiscal entre os entes federativos, instrumento mais direto de atração de empresas, configurando o que Santos e Silveira (2001), citados por Amora (2005), chamam de “guerra dos lugares”. A aposta na industrialização ainda se fazia presente nos planos de governo pós-Consenso de Washington, evidenciando um neoliberalismo peculiar no Brasil, e no Ceará. A ideia era fazer com que parte da arrecadação de impostos fosse revertido em financiamento do próprio projeto.

Durante os anos 1990, a indústria cearense permaneceu focada no setor tradicional, formado pelas indústrias têxtil e de vestuário, calçados e artefatos de tecidos. A indústria de calçados foi

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fortemente dinamizada no Ceará não somente pelo pacote generoso de benefícios dado pelo Governo do Estado, mas também pelo baixo custo da mão-de-obra. A baixa qualificação da força de trabalho do Ceará e a falta de infraestrutura econômica foram os maiores entraves para o desenvolvimento de indústrias mais avançadas.

Conquanto, apesar dos esforços de incentivo à industrialização do Estado do Ceará, esse setor fica bem aquém da contribuição do setor terciário. De acordo com o Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará - IPECE, o PIB cearense de 2002 tinha a seguinte composição: Agricultura – 7,1%; Indústria – 22,2%; Serviços – 70,02%143. Em 2014 o PIB apresentou as

seguintes proporções de valor adicionado bruto: Agricultura - 5,20%; Indústria - 19,16%; e Serviços - 75,64%.144

A agricultura, apesar de atualmente contribuir muito pouco para o PIB do Ceará (agropecuária correspondeu a 5,20% do PIB de 2014), é uma importante atividade de subsistência no estado. Entretanto, segundo Elias (2007), ao contrário dos fortes investimentos no subsetor de agricultura

para exportação, o subsetor de agricultura de subsistência nunca foi bem assistido com

ensinamento de melhores técnicas que pudessem ao menos minimizar os danos ao meio ambiente e aumentar a produtividade. Elias diz que “a maior parte da agricultura que se praticava era de sequeiro145, com sérios impactos ao meio ambiente, sendo predominantemente

a utilização de técnicas rudimentares que agravavam o quadro natural dominante, apresentando níveis baixíssimos de produtividade” (ELIAS, 2007, p.430).

Embora a SUDENE tenha ficado mais conhecida pelas suas políticas ligadas à indústria, a ela também cabia a reestruturação da agropecuária regional. Não obstante o esforço inicial de manter a Superintendência longe do clientelismo característico do Brasil, com a ditadura militar, este órgão transformou-se em mais um instrumento de poder das elites regionais (ELIAS, 2007, p.435).

A seca sempre foi manipulada politicamente (politicagem) pelas elites nordestinas, sobretudo a cearense - onde suas consequências são mais agudizadas -, a fim de se conseguir recursos subsidiados. A "indústria das secas" é um fenômeno já conhecido e denunciado, mas que persiste. É inaceitável utilizar-se do determinismo geográfico como a principal justificativa do

143 IPECE, 2007 - Publicação “Ceará em Números 2007”, do Instituto De Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará do

Governo do Estado do Ceará, 2007.

144 IPECE, 2017 - Publicação “Produto Interno Bruto: PIB do Ceará nas Óticas da Produção e da Renda - 2002-2014”,

do Instituto De Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará do Governo do Estado do Ceará, setembro de 2017.

145 Agricultura de sequeiro é uma técnica agrícola para cultivar terrenos onde a pluviosidade é baixa. A

expressão “sequeiro” deriva da palavra seco e refere-se a uma plantação em solo firme (ao contrário de brejeiro, ou de brejo, como é comum nos países asiáticos e no Sul do Brasil).

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não desenvolvimento do setor agrícola. Ao contrário disto, Elias (2007) associa os problemas do setor às relações sociais de produção e organização do espaço, que se baseiam numa estrutura fundiária bastante concentrada e em técnicas rudimentares de exploração da terra, além de uma estrutura de poder extremamente oligárquica e reacionária (ELIAS, 2007, p.433).

A implantação dos perímetros irrigados foi uma tentativa de atacar os problemas da agricultura de subsistência, porém Elias (2007) aponta vários problemas que têm levado à ineficácia dos perímetros irrigados. Um, que revela o desequilíbrio de forças dentro da atividade, merece destaque. Refere-se à estrutura fundiária tradicional extremamente concentrada nas mãos das intocáveis oligarquias agrárias. Os lotes dos perímetros irrigados que em teoria seriam destinados a pequenos agricultores são, na verdade, apropriados por empresários agrícolas seja pela venda do direito de uso dos lotes por parte dos colonos - por não conseguirem extrair seu sustento daquele pedaço de terra -, seja por meio do arrendamento. Além disso, muitos empreendimentos privados146 apropriaram-se da água disponível no leito dos trechos

perenizados dos rios, das áreas circundantes dos perímetros sem qualquer controle do Estado (ELIAS, 2007, p.438).

Para exemplificar como a produção para exportação é tratada de forma diferenciada pelo Estado da produção para o mercado interno e para subsistência, o subsetor de fruticultura de exportação da região cearense do Vale do Jaguaribe foi uma das atividades apontadas por inúmeros estudos, principalmente os patrocinados pelos Bancos Multilaterais de Desenvolvimento147, como de grande potencial no Estado do Ceará. A atividade vem recebendo

muitos investimentos tanto em pesquisa tecnológica, quanto em capacitação, infraestrutura produtiva e linhas de financiamento junto ao BNDES, BNB e Fundo de Investimentos do Nordeste (FINOR).

Elias (2007, p.441) reforça que “o Governo Federal e o Banco Mundial estão à frente de tais programas, os quais visam, aumentar a produção e a produtividade a partir da melhora das condições técnicas de produção, através da pesquisa biotecnológica, de programas de assistência técnica e extensão rural”. Obras como o Açude Castanhão, Eixão das Águas, Cinturão das Águas e Projeto São José colocam o Estado do Ceará como exportador de best practices ligadas à infraestrutura hídrica e rural. O Ceará passou de aprendiz a professor dos bancos internacionais,

146 Destacam-se nesse período os programas federais Programa Nacional de Aproveitamento Racional de Várzeas

Irrigáveis (PROVÁRZEAS), e o Programa de Financiamento para Equipamentos de Irrigação (PROFIR). A versão estadual do primeiro foi o Programa de Valorização Rural do Baixo e Médio Jaguaribe (PROMOVALE).

147 Ver Plano de Desenvolvimento Regional do Vale do Jaguaribe - PDR, Secretaria de Desenvolvimento Local e

Regional do Estado do Ceará, 2003; Projeto Cidades do Ceará II em execução pela Secretaria das Cidades do Estado do Ceará; Bar-el, 2002.

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recebendo apoio financeiro dessas instituições para realizar trocas de experiências em outros estados e até mesmo em outros países, como mostra a Figura 5.

Figura 5 - Matéria do Governo do Ceará sobre a expertise do Estado em saneamento

Fonte: Notícias oficiais do Governo do Ceará em 3 de maio de 2016.

Disponível em http://www.ceara.gov.br/2016/05/03/experiencias-exitosas-em-saneamento-do-ceara- podem-ser-adotadas-na-nigeria/

Vale ressaltar que a estratégia de modernização do meio rural de um estado pobre como Ceará não deveria ser implantada descoordenadamente a outras políticas socioeconômicas. O uso de técnicas mais intensivas na produção acarreta o desprendimento de mão-de-obra, que, devido ao baixo nível de instrução dos agricultores e a ausência de outros tipos de empregos que possam absorvê-los, acaba por agravar a pobreza, induzindo o êxodo rural para municípios que aparentemente poderiam oferecer mais oportunidades, intensificando problemas como o desemprego e a favelização, por exemplo.

Aldigueri (2017, p.59) mostra o aumento da favelização na capital Fortaleza, que recrudesce, apesar da diminuição da pobreza mostrada oficialmente pelo IBGE. De acordo com sua síntese

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de Censos de Favela, a população moradora de favelas aumentou de 352.250 (em 1985) para 711.784 (em 2013), representando, cerca de 6% e 8% da população total do Ceará em 1985 e 2013, respectivamente. Em relação à população de Fortaleza, esses números expressam 23,9% em 1985 31,6% em 2013. A capital cearense é o município que conta com maior favelização, entretanto, pode-se identificar esse processo também em muitos municípios próximos à Fortaleza.

Dados do IPECE mostram que a participação dos municípios do interior (excetos os da RMF) no PIB do Estado do Ceará permaneceu quase a mesma entre 2002 (37,22%) e 2014 (36,81%), acompanhando o ritmo de crescimento econômico da RMF e de todo o Estado. No entanto, esse crescimento deu-se com concentração de renda e com a privatização da terra e da água, excluindo os pequenos agricultores de base camponesa, tornando cada vez mais difícil sua existência por não se enquadrarem na lógica produtiva capitalista. As relações de trabalho têm se transformado com o aumento da expropriação de todos aqueles que não detêm a propriedade da terra, expulsando-os do campo e levando-os a residir nas periferias das cidades próximas às áreas nas quais se dá o processo de modernização da agricultura. O território e a economia rural também estão articulados com a escala internacional.

Cavalcanti (2008) analisa os planos de governo do período Governo das Mudanças e confronta seus objetivos com as estratégias para concretizá-los, iluminando a incongruência entre incentivo ao agronegócio e o discurso de “desenvolvimento sustentável” presente oficialmente desde a administração de Ciro Gomes, o que contradiz qualquer processo de equidade socioterritorial. Embora o conceito específico de desenvolvimento sustentável não tenha vindo documentado no primeiro governo de Tasso Jereissati (1987-1990), seu plano de governo já registrava objetivos cujas ações, para além da discussão da impossibilidade de alcance na sua plenitude, passaram longe na prática de “reduzir as desigualdades econômico-sociais, eliminando a pobreza absoluta existente no Estado” (CEARÁ, 1987).

O último dos governadores do período Governo das Mudanças foi o médico Lúcio Alcântara (2003 a 2006). Seu plano de governo “Ceará Cidadania – Crescimento com Inclusão Social” assemelhava-se com os Planos de Governo do segundo e do terceiro mandato de Tasso Jereissati. No seu governo foi encomendado ao Banco Mundial um estudo para redução da pobreza que persistia no Ceará. O relatório de abril de 2003 era intitulado “Brasil: estratégias de redução da pobreza – O desafio da modernização includente”. O próprio título do relatório denotava a grande dificuldade de implementação de equitativas, capazes de endereçar políticas sociais por meio de um modelo de desenvolvimento capitalista.

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governos, portanto, o crescimento econômico, quantificado pelo aumento do PIB, não era simplesmente a única meta. Havia o componente social no discurso e em documentos oficiais. Todo esse ideário convergia com o pensamento dos Bancos de Desenvolvimento. Entretanto, na prática, a desigualdade e a pobreza persistiram.

4.3 A CONVERGÊNCIA DO PLANEJAMENTO TERRITORIAL E DO FINANCIAMENTO

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