• Nenhum resultado encontrado

A metodologia Poética do cinema parte do pressuposto de que o trabalho do analista é inverso a o do realizador. O autor configura os materiais fílmicos de forma que eles realizem determinados efeitos no apreciador. “O trabalho real de um artista é construir uma experiência coerente na percepção, ao mesmo tempo que um movimento acompanhado de mudança em seu desenvolvimento” (DEWEY, 1974, p. 259) Já o analista parte destes efeitos para descobrir de que forma foram provocados. Segundo esta metodologia, os efeitos podem ser de três espécies: sensoriais, cognitivos e emocionais. Esses programas de efeitos não operam como camadas justapostas – o filme é uma composição que sintetiza todos os elementos. Mesmo encontrando-se de forma simultânea no filme, é útil separá-los em uma análise. É a obra que rege os parâmetros da sua própria apreciação e, por conseguinte, os da sua interpretação. Cada filme deve ser estudado em suas propriedades, nos programas específicos que solicitam e nos tipos de estratégias que utilizam. A escolha do modo de composição, portanto, deve ser solicitada pela obra.

Os programas de operações estão, portanto, no centro da obra de arte e devem ocupar o olhar do analista em primeiro lugar. Note-se, entretanto, que cada obra é um ente singular, uma única e irrepetível combinação de programas, dispositivos e elementos. Assim, se compreender a obra supõe o isolamento e a identificação dos programas que a constituem, entender esta obra, singular e única, sobre a qual me debruço, supõe não apenas que os programas que aí operam sejam identificados; mais ainda, pressupõe identificar a dosagem do emprego de cada um e o lugar de cada um deles na interação com os outros. (GOMES, 2004b, § 47)

Os filmes são compostos por diversos materiais que podem ser classificados em cênicos, visuais, auditivos e narrativos. Estes elementos estão imbricados em qualquer narrativa visual e é por meio deles que se conseguem os efeitos a serem estudados no filme analisado. Obviamente, esta separação só pode ser completa em uma abstração teórica, pois não há filme que não provoque a visão, audição, sentimentos e não contenha alguma mensagem. No entanto, nem sempre todos os programas são relevantes para determinada obra e separá-los em três classes é ferramenta analítica que pode ser bastante proveitosa.

Os efeitos cognitivos (idem, §10, §12, §42) consistem no conjunto de informações que significam algo para um intérprete, que podem ser decifradas e fazer sentido para a mente. Decifrar uma expressão envolve tanto a “reconhecibilidade” do que se está vendo até a

compreensão de um signo que se oferece para o emprego simbólico (idem, §12). Assim, este conjunto de estratégias voltadas para programar o sentido pode também ser chamado de programa semiótico ou comunicacional (idem, §42).

A obra sempre quer nos fazer pensar, conhecer, saber determinadas coisas, sempre esconde outras tantas para nos revelar mais adiante [...] conforme as conveniências das estratégias nela programadas.

A programação cognitiva de uma obra é muito extensa e recobre desde o tecido básico de informações e a malha mais elementar de sentido até os reconhecimentos capitais da trama narrativa, os jogos de revelação e ocultamento, as metáforas e alegorias com que se mostra e se esconde ao mesmo tempo. (GOMES, 2004b, §42)

Por ser bastante extenso e amplo, o aspecto cognitivo talvez tenha sido o que foi mais aprofundado nos estudos sobre o cinema. Descobrir qual é a mensagem de um filme foi o principal objetivo da semiótica aplicada ao cinema. Não se pode negar que toda obra expressiva tenha uma “súmula essencial de sentido” conduzida pelos materiais fílmicos e outras dimensões. No entanto, isso não leva à conclusão simplória de que todas as obras tenham uma “mensagem capital” e que ao descobrir esta mensagem a análise estaria completa.

O aspecto sensorial (idem, §14, §15, §43) diz respeito aos dispositivos destinados principalmente a provocar sensações que podem ser de vários tipos, como acústicas, visuais, táteis ou sinestésicas. Como exemplo, pode-se citar a aspereza, rugosidade, frieza, calor, escuridão, clareza, desorientações sensoriais, vertigem, queda, agrado e desagrado etc. (idem, §14). Todos estes efeitos têm em comum o fato de serem ligados à sensibilidade.

Obviamente, as programações sensoriais ou estéticas nem sempre são determinantes em todas as obras. Naquelas, entretanto, em que representam um componente dotado de importância, o que se tem em vista é pegar o apreciador pelos seus sentidos e não fazer com que ele pense isso ou saiba daquilo. (idem, §43)

Neste aspecto é muito distinto um filme provocar sentimento de nojo do que comunicar que existe algo de nojento ali. Não se pode negar que existem estímulos cuja destinação principal é produzir sensações, mesmo que estas estejam ligadas tanto aos efeitos cognitivos (o sentimento de nojo conduz à informação que algo nojento existe ali) quanto aos emotivos (já que sensações muitas vezes causam emoções). Em algumas artes, como na música e nas obras visuais não figurativas, este aspecto é mais privilegiado e pode ser distinguido mais

facilmente, o que não significa que nos filmes seja impossível distinguir estratégias voltadas precisamente para indução de aspectos puramente sensoriais.

Para organizar em termos e categorias, digamos que os sentimentos humanos são convocados antes de tudo enquanto sensibilidade (ou empiria), depois, como sensorialidade. A resposta da sensibilidade aos estímulos do primeiro tipo são as impressões sensíveis (ou perceptos), enquanto a resposta da estrutura sensorial aos estímulos de segundo tipo são as sensações. A relação entre obra e sentido, portanto, combina uma faixa de solicitações empírica com outra faixa de demandas sensacionais. (idem, §15)

O outro aspecto examinado aqui trata da dimensão sentimental do filme. O aspecto emocional (idem, §17, §18, §44, §45) refere-se a sentimentos, estados de ânimo e emoções de todos os tipos, desde a estranheza, o escatológico, a satisfação, a ansiedade, a excitação sexual, o medo. Deve-se salientar aqui que, apesar de sensação e sentimento, em linguagem coloquial, muitas vezes serem usados quase como sinônimos, são de natureza distinta. Apesar de muitas vezes o sentimento vir de uma base sensorial, ele também pode ser construído tendo como força motriz aspectos cognitivos. “Assim, os sentimentos de ódio e indignação em geral decorrem de informações, e o sentimento de desespero tanto pode ser provocado por uma informação quanto pela sensação de afogamento, por exemplo.” (idem, §16)

Na Poética de Aristóteles, por exemplo, a resposta emocional não é apenas um dos efeitos da obra de arte; é o seu efeito fundamental, aquilo que o realizador (o poeta) deve buscar antes de tudo, a destinação (dÚnamij) principal da representação e o princípio com base no qual se julga se a obra atingiu ou não a perfeição. (idem, §18)

Nem os efeitos comunicacionais nem os sensoriais estavam previstos nos escritos de Aristóteles, porém, a composição emocional é claramente inspirada por ele a tal ponto que se pode chamar também de composição poética (GOMES, 2004a). Mesmo sendo considerado fundamental para Aristóteles, o efeito emocional foi o menos privilegiado nos estudos teóricos, principalmente na área de cinema. No embate entre os filmes de tese e os filmes de arte, as vanguardas mais engajadas e os que defendiam que a arte deveria ser completamente livre nas suas experimentações estéticas, os projetos que tinham como principal objetivo a dimensão sentimental eram vistos como inferiores ou secundários. É a partir destes três efeitos que se buscará na obra analisada a sua forma e a sua relação com o espectador.

Para Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété, no livro Ensaio sobre a análise fílmica, a atividade analítica estaria dividida em três etapas: a primeira seria decompor o filme em seus elementos constitutivos; em um segundo estágio, estabelecer elos entre estes elementos e, por

último, voltar ao filme para se evitar que se reconstrua um outro filme. Para eles, há uma grande distinção entre um apreciador comum e um analista. Enquanto o primeiro está submisso à obra deixando-se guiar por ela através de um processo de identificação onde o filme pertence ao universo do prazer, o analista deve procurar, conscientemente ativo, uma maneira racional e estruturada de examinar tecnicamente o filme a fim de confirmar suas hipóteses em um processo de distanciamento da obra, já que o filme pertence ao campo da reflexão e da produção intelectual. Os autores recomendam que se realize inicialmente um contato com a obra como espectador comum para que se elaborem hipóteses que serão verificadas pelo esforço do trabalho analítico.

O método desenvolvido aqui se assemelha ao proposto por estes autores pelo fato de que, na análise, a obra expressiva é o ponto de início e o ponto de chegada. Apesar de acreditar que esta separação entre o espectador comum e o analista não pode ser tão delineada como os autores fazem parecer no livro, concorda-se que a análise começa com uma fruição, já que a obra somente é acessível através desta, que o modo como os efeitos estão estruturados verifica-se por meio do trabalho analítico de ver o filme, quantas vezes for necessário, e que é importante não perder de vista, no processo descritivo e analítico, a obra como um todo.

Neste sentido, John Dewey afirma que uma obra de arte aporta uma experiência que é controlada pelo criador, porém cabe ao espectador percorrer a experiência sob ótica e interesses próprios.

Para perceber, um espectador precisa criar sua própria experiência. E sua criação tem que incluir conexões comparáveis àquelas que o produtor original sentiu. [...] Sem um ato de recriação, o objeto não será percebido como obra de arte. O artista selecionou, simplificou, clarificou, abreviou, e condensou de acordo com o seu desejo. O espectador tem de percorrer tais operações de acordo com o seu ponto de vista próprio e seu próprio interesse. (DEWEY, 1974, p. 261)

Na medida em que o desenvolvimento de uma experiência é controlado pela referência a essas relações imediatamente sentidas de ordem e de preenchimento, tal experiência torna-se predominantemente estética em sua natureza (Ibid., p. 258)

A necessidade de sempre estar atrelado à obra em si e de nela procurar seu efeito e sua essência não significa abolir completamente o mundo exterior a ela. É importante sempre ter em mente que este tipo de análise interna busca entender um produto específico e, por isso, somente se recorre a questões contextuais quando for uma demanda da obra. A questão

texto/contexto é bastante ampla e acaba se debatendo com outros problemas, como o da intenção autoral e dos universos do autor e do receptor.

Isso, evidentemente, não quer dizer que o conhecimento da mecânica interna de uma obra não possa se beneficiar do conhecimento do contexto, do conjunto das outras obras que com ela se relaciona, do universo dos produtores e das condições sociais da produção cultural, da história, entre outras coisas que se pode arrolar. Pode acontecer até mesmo de que um mecanismo interno empregado numa obra, por exemplo, só se deixe compreender corretamente a partir de informações contextuais. Uma coisa, porém, é usar o conhecimento do mundo em benefício da compreensão da obra e outra coisa bem diferente, é usar o conhecimento da obra para a compreensão do mundo. (GOMES, 2004b, § 53)

Justamente por tentar respeitar ao máximo a integridade do objeto de análise, se determinado filme demanda questões relativas a certo contexto, negligenciar estas informações significa não conseguir chegar à essência da análise. Esta é uma das dificuldades, por exemplo, de se realizar análise de documentários partindo desta perspectiva analítica. O grande desafio encarado por esta dissertação é que, para realizar uma análise desta construção narrativa realista, na obra dos irmãos Dardenne, não é possível ater-se somente às obras sem um contexto que justifique as escolhas dos realizadores e, também, leve em conta outros diretores que adotaram estratégias semelhantes. Ao mesmo tempo, cada obra é única, e é somente no interior desta que conseguimos, de fato, chegar aos efeitos que justificam a existência deste estudo. Por isso, a escolha metodológica deste trabalho foi, em primeiro momento, realizar uma análise mais sociológica e histórica para mapear as estratégias e a trajetória dentro do campo do audiovisual belga, para somente depois realizar uma análise de uma obra que apresenta melhor esta questão do realismo.

Documentos relacionados