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2. AL SHABAAB: UM GRUPO TERRORISTA?

2.6. Papel da Religião

Apesar da grande maioria da população somali ser muçulmana, poucos são os que advogam um islamismo militante. Os somalis são muçulmanos há séculos e, na sua maioria, têm um historial de seguirem um islamismo sunita tolerante e moderado, respeitando outras formas religiosas. A maioria segue inclusive a corrente sufista do islão12 (Harper, 2012a: 74)

Apesar disto, há antecedentes de um islão politizado e violento no país. Um dos exemplos mais conhecidos foi Seyyd Abdulle Hassan, grande defensor da jihad contra as forças coloniais no início do século XX. A sua poesia e ideais ainda hoje inspiram muitos somalis, principalmente devido à ligação que ele fazia entre nacionalismo e religião, que ainda se mantém relevante. Outro apologista de uma versão mais violenta do islão é o Sheik Hassan Dahir Aweys, que tem vindo a desempenhar um papel importante nos grupos religiosos somalis mais violentos desde os anos 90, designadamente na AIAI, e mesmo influenciando a Al Shabaab (Harper, 2012a: 76-77).

Os religiosos mais extremistas foram de facto uma das principais resistências à ditadura de Siad Barre. Ele entrou em choque com os líderes religiosos quando, em 1975, promulgou uma nova legislação para a família que, entre outras coisas, concedia mais direitos às mulheres. As vozes dos clérigos mais contrários a esta nova legislação foram abafadas pelo regime através do seu assassinato ou aprisionamento. A partir daqui, podemos dizer que a religião se tornou uma forma de resistência a Siad Barre. Com a queda da ditadura, houve uma explosão de grupos religiosos no país, no entanto as dinâmicas entre os senhores da guerra e clãs eram, na altura, mais relevantes (Harper, 2012a: 76).

A AIAI, de onde saíram grande parte dos combatentes iniciais da Al Shabaab e fundadores da UTI, foi um destes grupos, tendo sido criada devido à fusão de algumas

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A corrente sufista é considerada como uma dimensão mais mística e mais espiritual do islão. Talvez por isso haja muitos muçulmanos, e não muçulmanos, a considerar que o sufismo se encontra fora da esfera do islão.

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organizações somalis que seguiam a corrente saudita Wahhabista13 do islão. De certa forma, a Al Shabaab é uma continuação da AIAI, pelo menos em termos ideológicos. Ambos os grupos advogam que a religião não deve ser separada da política, apresentando-se contra os não muçulmanos e as ordens islâmicas sufistas, de tal forma que a Al Shabaab chegou a destruir túmulos de santos sufistas importantes (Harper, 2012a: 77-78). Não é assim de admirar que a milícia Ahlu Sunna Wal Jama (ASWJ), uma milícia sufista com cerca de 1.000/2.000 homens, criada no seguimento da destruição destes túmulos para defender os ideais sufistas no país, se juntasse oficialmente às forças do Governo Federal em dezembro de 2012, para combater a Al Shabaab (Jamestown Foundation, 2012), recebendo também apoios da Etiópia.

Como parte da UTI, a Al Shabaab defendia a imposição da sharia. No entanto, até 2006, esta visão era colmatada por alguns rostos mais moderados da União, que defendiam que o foco da UTI deveria ser trazer estabilidade ao país e não os objetivos religiosos. A Al Shabaab via-se assim refreada pela influência moderada de alguns elementos da UTI, mas com a invasão etíope e divisão entre os dois, esta influência deixou de ser tão significativa, com grande parte dos elementos mais brandos a fugirem para outros países. Sem estas vozes mais moderadas, a Al Shabaab passou a estar controlada por alguns dos elementos mais extremistas e a estar empenhada na aplicação rígida da sharia, banindo filmes, músicas, desportos e punindo crimes com apedrejamentos, amputações e decapitações (Wise, 2011: 4-5).

Apesar disto, na altura da invasão etíope, a Al Shabaab viu-se obrigada a afirmar-se como um movimento nacionalista, em vez de religioso, uma vez que era esse o argumento que, na altura, face à invasão, mais apoio popular reunia (Wise, 2011: 5). No entanto, a Al Shabaab, como já foi dito, não é um grupo completamente homogéneo, havendo algumas fraturas internas tanto em termos ideológicos, como de clãs. Ainda hoje há no seio da

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O Wahhabismo é visto como uma forma puritana de interpretação do islão sunita. Seguido principalmente na Arábia Saudita e no Qatar, a palavra Wahhabismo deriva do nome de um estudioso muçulmano chamado Muhammad bin Abd al Wahhab, que viveu na Península Arábica durante o século XVIII. Atualmente este termo é utilizado para descrever um movimento islâmico sunita que visa purificar o Islão de inovações e práticas que constituam um desvio aos ensinamentos do Profeta e dos seus companheiros.

O financiamento de sauditas wahhabistas a mesquitas, madrassas e caridades com ligações à Al Qaeda, tem vindo a levantar alguns receios no mundo ocidental de que esta ideologia possa estar a ser usada pelos seus militantes para servir os seus propósitos políticos (Blanchard: 2008).

O wahhabismo foi importado para a Somália nos anos 80, por via das caridades sauditas presentes no país (Johnson: 2011).

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organização os que defendem uma visão mais religiosa, com a jihad global a aparecer como mais relevante, e outros que defendem uma visão mais nacionalista.

Não obstante, o grupo tenta fazer passar a mensagem de que a sua luta é religiosa. Num dos seus vídeos publicados, o Shaykh Muhammad Rage, um dos porta-vozes da Al Shabaab declara mesmo:

―we also want the Muslims know that this is a war between eman (belief) and Kufr (unbelief), between Islam and Christianity (…) it is obligatory upon the Muslim people as a whole to stand by and support the Holy Qur’na‖.

Rage faz esta declaração num vídeo em que aparecem mortos soldados do Burundi, da AMISOM, um dos quais com uma bíblia e uma cruz que alegadamente trazia consigo (Hitchens, 2012).

Mary Harper conseguiu, em 2011, uma entrevista com o líder islamita Sheikh Hassan Dahir Aweys, atual líder do Hizbul Al Islam14, com quem a Al Shabaab mantém uma aliança de conveniência. Na entrevista, Aweys defende que se encontram a lutar por três motivos essenciais: porque o seu país tinha sido invadido; porque se encontram impedidos de praticar os seus costumes religiosos; e pela criação de um Estado islâmico (Harper, 2012a: 90).

Nos territórios controlados pela Al Shabaab, as mulheres são obrigadas a usar vestidos de tecidos grossos e véus a cobrir os rostos, os telemóveis da população são esmagados pelos membros do grupo se tiverem toques musicais e as pessoas acusadas de adultério são enterradas na areia e apedrejadas pela multidão. Para além disso, as populações não podem ouvir música, nem assistir a provas desportivas na televisão. Os rapazes e raparigas são separados nas escolas, onde os militantes da Al Shabaab se deslocam uma, ou duas vezes por semana, para pregar sobre a importância da jihad. Numa tentativa de recrutar mais jovens, os líderes religiosos do grupo procuram assim passar a mensagem de que lutar pela jihad é uma obrigação religiosa, e quem não o faz não é um verdadeiro muçulmano (Harper, 2012a: 71-73 e 92).

Também a Al –Kataiba, mormente através do seu canal de televisão, passa constantemente vídeos e reportagens de grandes encontros religiosos e de ruas cheias de pessoas a rezar, ajoelhando-se de forma rítmica. No que diz respeito à diáspora, os apelos religiosos também surtem o seu efeito. Como já foi referido, muitos jovens somalis encontram-se marginalizados nas sociedades ocidentais, sem qualquer sentimento de

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Trata-se de uma outra milícia islâmica somali. Apesar de este grupo ter uma aliança com a Al Shabaab, a sua ligação não é constante ou estável, tratando-se de uma aliança de conveniência que pode facilmente terminar.

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pertença à comunidade. A jihad acaba por lhes trazer esse sentimento de pertença, excitação e propósito (Harper, 2012a: 94 e 101).

A religião pode não ser a única motivação por trás deste grupo. Como já foi mencionado, mesmo no seio da organização, há quem tenha visões diferentes da ideologia que se deve seguir. No entanto, parece-me justo afirmar que uma visão mais extremista do islão está presente na forma como a Al Shabaab se apresenta e atua, quer seja pela imposição restritiva da sharia nos territórios que controla, pelos discursos inflamados dos seus líderes, pela defesa da jihad global, pelos ataques aos sufistas ou pelas ligações à Al Qaeda, como vamos ver no ponto seguinte.