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O papel das mães/mulheres nas famílias de grupos populares

A esse cenário de grande mobilidade das configurações familiares associam-se diretamente algumas modificações e conquistas importantes para a mulher, as quais permitiram uma reformulação de seu papel tanto no campo privado quanto na esfera pública (KEHL, 2003; SARTI, 2002). Uma delas foi a possibilidade de controle da reprodução, advinda da descoberta e democratização dos métodos anticoncepcionais. Outro evento que merece destaque é o ingresso das mulheres no mercado de trabalho e, consequentemente, sua emancipação financeira (KEHL, 2003), de forma que a realização profissional hoje faz parte do ideal de vida feminino. Assim, essa busca da mulher pelo seu espaço no mundo do trabalho ocorre tanto pela necessidade de aumento da renda familiar quanto pela sua necessidade de buscar outros ambientes além do lar (AMAZONAS et al., 2003).

No entanto, a liberdade de escolha adquirida pelas mulheres parece ter-lhes imposto um preço, uma vez que são geralmente elas que acabam assumindo os filhos, muitas vezes sozinhas (MELLO, 2002, KEHL, 2008). Analisando-se os arranjos familiares no Brasil, destaca-se que, nas últimas décadas, houve um aumento considerável no número de famílias monoparentais, a maioria delas constituída pela presença da mãe com seus filhos (BERQUÓ, 1998; FERREIRA, 2001; MELLO, 2002; PERES, 2001; RIZZINI, 2001). Segundo dados do IBGE, a proporção de mulheres sem cônjuges e com filhos subiu de 15,06%, em 1992, para

17,4%, em 2009. Observou-se ainda um crescimento significativo no índice de mulheres consideradas as pessoas de referências das famílias ou domicílios, passando de 16,99% em 1981 para 35,17% em 2009. Estudos apontam que antigamente as mulheres chefiavam a família apenas em casos de migração ou falecimento do companheiro (BERQUÓ, 1998; RIZZINI, 2001). Assim, este aumento da proporção de famílias chefiadas por mulheres pode ser consequência de vários fatores. Dentre eles, pode-se destacar a elevação do índice de separações e divórcios; o fato de a expectativa de vida feminina ser maior; o aumento do número de mulheres solteiras com filhos; a maior inserção da mulher no mercado de trabalho; e o surgimento de novas formas de união, como o casamento sem coabitação e a concepção de filhos sem que haja casamento (BERQUÓ, 1998; FERREIRA, 2001).

Nos casos de separações conjugais, tem-se observado ser mais comum que a mãe fique com os filhos e com a responsabilidade do cuidado deles. Além disso, é superior o número de mães solteiras que criam os filhos sem o auxílio de um companheiro (RIZZINI, 2001). Enquanto isso, nota-se uma mobilidade masculina, ou seja, existem homens abandonando seus filhos sem hesitar e partindo rumo a outros lares, junto a novas companheiras. Em outras palavras, pode-se apontar que enquanto os homens circulam, as mulheres conservam-se como terreno onde a família se enraíza (MELLO, 2002). Assim, na atualidade percebe-se, de acordo com Kehl (2008), “o crescimento de uma nova geração de filhos da mãe, com pais ausentes ou desconhecidos” (p. 62).

Dessa forma, nas famílias de grupos populares, as mulheres, em especial a mãe, assumem um papel fundamental na educação e cuidado das crianças e na organização e sustento da casa (AMAZONAS et al., 2003; PERES, 2001; RIZZINI, 2001). Estudos têm apontado a mãe como a principal figura de referência nas famílias pertencentes a estes grupos, sendo vista muitas vezes como aquela que cuida, protege e se preocupa. É comum a mãe ser aquela a quem os filhos recorrem e para junto da qual retornam nos momentos difíceis, como em casos de desemprego e separações conjugais. Considerando-se que a figura materna se constitui num ponto de referência para toda a família, a ela é dirigido um respeito particular, principalmente quando esta se encontra com mais idade, no sentido de retribuição ao que ela fez até o momento em prol da família (SARTI, 2005).

As modificações nos papéis familiares por vezes têm causado uma sobrecarga às mães, as quais podem ser as únicas responsáveis pela sustentação da família, o que pode gerar angústias e preocupações que afetam a relação com os filhos (ARPINI; QUINTANA;

GONÇALVES, 2010). Além disso, elas podem ter dificuldade de equilibrar a dupla jornada composta por emprego e vida doméstica (RIZZINI, 2001).

Pesquisa realizada por Amazonas et al. (2003) sobre arranjos familiares de grupos populares constatou que na maioria destas famílias as mulheres assumiam papeis centrais, sendo percebidas como figuras fortes e marcantes. Esta centralidade das mulheres nas famílias de grupos populares não se refere apenas às mães, mas a outras mulheres como avós, tias, dentre outras (AMAZONAS et al., 2003). Desse modo, o envolvimento de uma rede familiar que vai além dos limites das casas muitas vezes proporciona a sobrevivência das famílias chefiadas por mulheres. Nos casos em que os papeis femininos não podem ser desempenhados pela “mãe-esposa-dona-de-casa”, estes são assumidos por outras mulheres da família, pertencentes ou não à unidade doméstica (SARTI, 2005). Segundo Rizzini (2001), muitas crianças têm tido as mães e as avós como as referências mais estáveis em suas vidas. Em contraposição, os homens às vezes mostram-se mais frágeis, o que pode ser notado em casos de drogadição, desemprego ou envolvimento com a polícia (AMAZONAS et al., 2003). Nas famílias em que a mulher torna-se responsável por sustentar economicamente o lar, podem haver mudanças significativas no jogo de relações de autoridade. Nestes casos, a mulher pode tomar o papel de chefe e autoridade, tradicionalmente assumido pelo homem. Assim, quando este não proporciona o sustento da família, sua autoridade pode sofrer grande abalo. No entanto, a responsabilidade pelo provimento do sustento da família não garante ao homem a respeitabilidade e a obediência dos membros do grupo familiar. A questão da autoridade está relacionada também ao caráter e à moral (SARTI, 2005).

Para alguns autores, pode-se pensar num processo de desmoralização do homem, que acarreta uma perda para a família como um todo, a qual tenderá a procurar uma compensação substituindo a figura masculina de autoridade por outros homens da rede familiar. O problema maior para a mulher nestes casos não é cumprir o papel de provedora, mas sustentar a dimensão do respeito, a qual em geral é conferida pela presença masculina (SARTI, 2005). Assim, “quando as mulheres sustentam economicamente suas unidades domésticas, podem continuar designando, em algum nível, um “chefe” masculino. Isso significa que, mesmo nos casos em que a mulher assume o papel de provedora, a identificação do homem como autoridade moral, a que confere respeitabilidade à família, não necessariamente se altera” (SARTI, 2005, p. 67). No entanto, Romanelli (2002) sugere que a autoridade materna sofre menos abalos do que a paterna, pois a mãe tem a afetividade como suporte e fator mediador nas relações de autoridade com os filhos.

Por outro lado, destaca-se a existência de vários estudos que mostram pais mais participativos e presentes na vida familiar (BUSTAMANTE, 2005; GOMES; RESENDE, 2004; SILVA; PICCININI, 2007; SOUZA; BENETTI, 2008). Nas últimas décadas, surgiu o conceito do “novo pai”, o qual percebe a paternidade como uma oportunidade de expressar sentimentos, participando de maneira ativa no cuidado dos filhos e tendo uma relação igualitária com a parceira (BUSTAMANTE, 2005).

Silva e Piccinini (2007), em estudo com pais de classe média, apontam que os mesmos mostravam-se satisfeitos com a paternidade, acreditando estar desempenhando bem este papel. Destacam ainda que envolvimento paterno vem aumentando, assim como a satisfação com a paternidade, a proximidade em relação aos filhos e o desejo de participação na criação dos filhos, o que é fundamental para o desenvolvimento destes. Estudos realizados com pais pertencentes a camadas populares brasileiras (BUSTAMANTE, 2005; SOUZA; BENETTI, 2008) mostram que o vínculo amoroso entre o casal é um fator que influencia na construção de uma relação saudável entre pai e filhos e contribui significativamente para uma maior participação paterna na vida dos filhos, mesmo em momentos de crise financeira e/ou situações de desemprego. Desse modo, a partir do reconhecimento deste pai mais presente, nota-se que este ainda encontra-se em processo de transformação. Este pai transita ainda entre valores novos e tradicionais, mas mostra-se disposto a reconhecer seus sentimentos e suas ambivalências, na tentativa de exercer uma paternidade ligada ao afeto, ao cuidado e ao diálogo (GOMES; RESENDE, 2004).

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