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2. LEITURAS EM VIS-À-VIS: O FRAGMETO EM AÇÃO

2.1. O papel dos fragmentos

Cada fragmento tem um significado, como uma faísca de fogo. i

CIXOUS, Hélène. Eu não tenho enredo de vida?

Sou inopinadamente fragmentária.

LISPECTOR, Clarice.

Ao pôr em vis-à-vis fragmentos

ii

, textuais ou não, Hélène Cixous abre, por meio

desse tipo peculiar de transtextualidade, um espaço dialógico especular entre o texto-fonte

clariceano e outros textos de escritores ou com outros códigos ou mídias (pintura ou música).

Ademais, a presença fragmentária desses escritores e artistas proporciona ao

metadiscurso cixousiano um caráter coletivo, pluralista e polifônico, contudo, mantendo,

como objetivo, essa relação dialógica com as “vozes” clariceanas, ou seja, no sentido

bakhtiniano, uma “dialógica da cultura” (TODOROV, 1981, p. 161).

Assim, ao selecionar os fragmentos, a escritora francesa não tem por maior objetivo

interpretar ou explicar o texto-fonte, pois eles podem contribuir para tratar especificamente,

por exemplo, de uma questão teórica relacionada a ele, como a escrita de Clarice Lispector ou

simplesmente ilustrar o texto clariceano.

Dentro desse processo, o objetivo do presente estudo não focaliza a análise detalhada

dos seminários de Hélène Cixous, mas, sim, os tipos de relações transtextuais que a autora

francesa estabelece. Podemos, assim, destacar duas grandes categorias de fragmentos textuais.

A primeira se compõe dos fragmentos diretos que correspondem à cópia fiel de um

excerto textual, a citação é direta, ipsis litteris, e pode ser breve (algumas palavras) ou longa

(até 200 palavras). Porém, a menção das referências

iii

apresenta-se geralmente entre aspas,

sem outras informações no texto.

A segunda categoria é constituída pelos fragmentos indiretos que são uma paráfrase

baseada: (i) em um texto e/ou nas idéias de um escritor; e (ii) na descrição verbalizada de um

suporte não textual, ou seja, visual ou sonoro. A citação é indireta, pode ser também breve ou

_____________

i

“[…] every fragment has a meaning, like a spark of fire”. (RWCL, p. 105)

ii

Na acepção de “trecho extraído de uma obra” (HOUAISS, 2004)

iii

Os fragmentos selecionados, neste trabalho, sempre foram reconvertidos para edições brasileiras ou para versões originais em francês quando não houver tradução em português.

longa. Sempre procuremos, quando for possível, encontrar a partir do fragmento indireto o

fragmento direto na obra citada, a fim de compará-los.

No entanto, qual é o papel do fragmento no seio da crítica literária e das teorias da

leitura e da intertextualidade? Em Le coeur critique [O coração crítico], Françoise van

Rossum-Guyon

i

apresenta, referindo-se ao escritor francês Michel Butor, os aspectos e as

possibilidades do fragmento, estabelecendo um “espelhamento” entre o fragmento pictorial e

o fragmento textual:

Tal como na pintura contemporânea, a reprodução de um fragmento de quadro antigo é a representação, no quadro novo, da pintura, que é sua ordem, [...], a reprodução literal de um fragmento de texto é a representação, no livro, da literatura,

que é seu meio142. (BUTOR apud ROSSUM-GUYON, 1997, p. 18).

Assim, o fragmento cumpre, de certa forma, o papel de referência. Porém, apesar de

ser de “forma breve

ii

”, ou seja, de menor tamanho do que a obra na qual ele se encaixou, ele

pode ser concebido como um elemento desencadeador de uma rede de referências, mais

ampla do que a obra em si, a “enciclopédia cultural” que representa seu “meio”: a Literatura.

2.1.1. O fragmento ou da “forma breve” na crítica literária

O emprego do fragmento de texto ou da forma breve não é recente na história da

literatura. Assim, Michel de Montaigne

iii

(1533-1592), conhecido por seus Ensaios

constituídos por vários conjuntos de fragmentos, tinha uma “predileção pelo estilo cortado

[que] atende, portanto, a uma exigência da densidade

143

” (ROUKHOMOVSKI, 2005, p. 22) e

que “carrega a semente de uma matéria mais rica

144

” (p. 22). Montaigne adota essa metáfora

“tradicional da forma breve como ‘semente de discurso’ (semen dicendi) e a idéia segundo a

qual a forma breve é rica daquilo que ela não diz

145

” (p.22-23).

Na época do romantismo alemão

iv

, dois filósofos, Novalis (1772-1801) e Friedrich

Schlegel (1772-1829), adotaram o fragmento “como forma de expressão filosófica”

(SCHLEGEL, 1997, citação da orelha da capa). Assim, o primeiro, em Pólen: Fragmentos,

diálogos, monólogo, “concebia os seus fragmentos como ‘sementes literárias’, como ‘grãos de

pólen’ que deveriam ser acolhidos e estudados como ‘textos para pensar’” (SCHLEGEL,

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i

Françoise van Rossum-Guyon, professora de literatura francesa (Universidades de Amsterdam e de Paris VIII), especialista da escritura feminina, das obras de George Sand e de Hélène Cixous.

ii

Terminologia adotada por Bernard Roukhomovski, em Lire les formes brèves [Ler as formas breves], 2005.

iii

Autor presente na obra literária de Hélène Cixous, por exemplo, em Benjamin à Montaigne. Il ne faut pas le dire. Paris: Galilée, 2001.

iv

1997, citação da orelha da capa). Percebe-se, desde já, por meio da metáfora seminal, uma

similitude de concepção no tratamento do fragmento, que seja literário ou filosófico, entre

Montaigne e Novalis.

Já para Schlegel, em O dialeto dos fragmentos, o fragmento era concebido “não

somente como ‘fermento’ da reflexão, mas também como instrumento da crítica e da

polêmica” (SCHLEGEL, 1997, citação da orelha da capa). Portanto, a filosofia schlegeliana e,

de um determinado aspecto, a crítica cixousiana dos textos clariceanos apresentam-se como

um “sistema de fragmentos” (Idem).

O fragmento de texto ou a “forma breve” possui em si um efeito retórico concentrado

que “consiste em dizer muito em poucas palavras e, se possível, em fazer pensar mais do se

diz

146

”. Ele pode inserir-se, de dois modos, no metatexto cixousiano

i

para (i) constituir um

conjunto homogêneo ou, pelo contrário, (ii) romper com a continuidade discursiva:

De fato, rompendo com a linearidade do discurso contínuo, o autor de um livro [ou de um texto] descontínuo oferece, ao mesmo tempo, ao leitor uma oportunidade de inventar e expandir seu percurso de leitura147. (ROUKHOMOVSKI, 2005, p. 6-7).

A junção desses antagonismos, descontinuidade e homogeneidade, atribui aos

fragmentos uma carga criadora, pois, por si mesmos, eles proporcionam um interesse literário

intrínseco destacável: “Um fragmento tem de ser como uma pequena obra de arte [...].”

(SCHLEGEL, 1997, p. 82, nº 206).

Inseridos no texto lido, eles oferecem uma amplitude de leitura que corresponde a

uma forma criativa de re-leitura de um texto “homogeneizado” (união dos fragmentos no ato

de ler), ou seja, uma leitura para pensar. Assim, consoante François Susini-Anastopoulos, em

L´écriture fragmentaire [A escritura fragmentária], o fragmento estabelece uma nova relação

entre o texto e o leitor:

[...] o fragmento-citação, introduzindo uma matéria e um estilo alógeno, estabelece uma relação triangular que obriga o leitor a interpretar o uso da citação e a

inventar novas relações de intertextualidade148. (SUSINI-ANASTOPOULOS, 1997, p. 154, grifo nosso).

Antes de interpretar o uso do “fragmento-citação” nas leituras de Hélène Cixous e as

relações de intertextualidade “reinventadas”, precisamos definir as características desses

fragmentos contidos nos metatextos cixousianos.

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i

Os metadiscursos cixousianos oriundos de seus seminários são os metatextos, ou seja, as transcrições e traduções dos seminários por Verena Conley, que compõem nosso corpus.

2.1.2. Características dos fragmentos contidos nos metatextos cixousianos

Desde já, cumpre aprimorar o modelo de transtextualidade, fundamentado acima, e

definir melhor o conceito de intertextualidade para integrar as distinções que existem entre a

intertextualidade interna ao texto e a externa a ele. Assim, Laurent Milesi, em Texte(s) et

intertexte(s), lembra que Jean Ricardou, em sua teoria do 3ovo Romance, definiu estes

critérios de intertextualidade da seguinte maneira:

Ricardou distingue, entre outros critérios operatórios relevantes: a intertextualidade interna (ou a relação de um texto a si mesmo, [...]) da intertextualidade externa (ou a relação de um texto a outros textos) [...]; as intertextualidades restrita (relações entre os textos do mesmo autor) e geral (entre textos de diferentes autores)149. (MILESI, 1997, p. 20, n. 62, grifo do autor)

Pode-se evidenciar, por meio da tabela 1 (abaixo), a relação entre o tipo de

intertextualidade e o tipo de fragmento associado.

Tipos de

intertextualidade Tipos de fragmento associado Exemplos

Intertextualidade interna

Fragmentos internos ao texto-fonte “Domingo, antes de dormir”

Intertextualidade externa restrita

Fragmentos internos à obra completa do(a) autor(a) [Clarice ↔ Clarice]: (i). Fragmentos diretos;

(ii). Fragmentos indiretos: discurso crítico.

(i). “O ovo e a galinha” ↔ “Escrevendo”; (ii). “O ovo e a galinha” ↔ A paixão segundo GH;

Intertextualidade externa geral

Fragmentos relacionados a outras obras / outros escritores:

(i). Fragmentos diretos;

(ii). Fragmentos indiretos: discurso crítico.

(i). “O ovo e a galinha” ↔ La Folie du jour [A Loucura do dia] de Maurice Blanchot.

(ii). “O ovo e a galinha” ↔ Finnegans Wake de James Joyce.

Intermedialidade Fragmentos indiretos relacionados a

outras mídias (não textuais): por exemplo, a ekphrasis.

“O ovo e a galinha” ↔ Tela de Hieronymus Bosch

Tabela 1: Tipos de transtextualidade

Essa classificação não é meramente ilustrativa, mas objetiva entender como os

fragmentos funcionam no processo de leitura em vis-à-vis e quais são suas funções no

processo interpretativo, comparativo ou crítico desenvolvido pela escritora francesa.

Contudo, vale ressaltar aqui, nas palavras de Mireille Calle-Gruber, que “para Hélène

Cixous, trata-se de não bloquear o significado, de o/se entregar ao acaso dos encontros

lingüísticos e textuais, de trabalhar uma não-forma. Menos dizer isto ou aquilo do que ouvir a

língua dizer

150

” (HCPR, p. 141).

Desta forma, as relações intertextuais fragmentárias estabelecidas, “ao acaso dos

encontros lingüísticos e textuais”, a partir do texto-fonte não procuram uma explicação

“fossilizada” do texto em si, mas uma interpretação literária, filosófica ou teórica, válida

naquele momento de leitura (privada ou pública).

Por sua vez, ela pode se tornar ora efêmera ora permanente, pois o que importa é este

processo de leitura pontual. O fruto desse tipo de produção metatextual, quando for registrado

(gravado ou escrito), pode proporcionar, a posteriori, profícuas reflexões para os estudiosos

de Hélène Cixous e de Clarice Lispector.