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2. A LIBERDADE NA ÉTICA DE EPICURO

2.1 PAR’HEMÁS

Gama Kury (2008, p. 314) traduz a expressão par’hemás por “depende de nós”, diferente de Hicks (1925, p.659), em quem se baseia nas demais traduções, que traduz por “nossa própria ação136”. Por sua vez, Bollack (1975, p. 81) traduz par’hemás por “o que nos concerne137”. A despeito do mérito das traduções, devemos, antes, entender o contexto do passo 133 da Carta a Meneceu.

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“our own action”.

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Crê, então, Meneceu, que ninguém é superior a tal homem. Sua opinião em relação aos deuses é piedosa e ele se mostra sempre destemeroso diante da morte. Ele reflete intensamente sobre a finalidade da natureza e tem uma concepção clara de que o bem supremo pode ser facilmente atingido e facilmente conquistado, e que o mal supremo dura pouco e causa sofrimentos passageiros. Finalmente ele proclama que o destino, introduzido por alguns filósofos como senhor de tudo, é uma crença vã, e afirma que algumas coisas acontecem necessariamente, outras por acaso, e que outras dependem de nós, porque para ele é evidente que a necessidade gera a irresponsabilidade e que o acaso é inconstante, e as coisas que dependem de nós são livremente escolhidas e são naturalmente acompanhadas de censura e louvor. (DL, X, 133)

Nessa passagem da carta há uma descrição das características do homem que assimilou os preceitos básicos do epicurismo. Nela está resumido aquilo que os epicuristas chamaram de tetraphármakos (o quádruplo remédio138). O homem, como “um deus entre os homens” (DL, X, 135), não teme a morte, é feliz e traça seus próprios caminhos. Desdenha qualquer possibilidade de intervenção divina e defende que nós somos livres. Investigou a natureza (phýsis), conhece seus princípios e diagnosticou no prazer o fim (télos) de todo homem.

Epicuro não diz expressamente a quem se refere ao afirmar: “ninguém é superior a tal homem”, ou como traduz Conche, “Quem estimas tu superior àquele...”. No entanto, a descrição das características do sábio e do que se deve fazer para ter uma vida sábia começa no passo 126 que diz: “o sábio (hó dè sophós) não renuncia à vida nem teme a cessação da vida”. O que não nos coloca em terreno seguro para afirmar, terminantemente, que Epicuro se refere à figura do sábio é que hó dè sophós (o sábio pelo contrário) é um acréscimo tardio ao texto original139. Apesar da omissão de Epicuro, as características desse homem são arroladas: 1) não teme a morte; 2) Deu-se conta do fim (télos) da natureza e da facilidade de sua consecução; 3) Sabe que o mal dura pouco ou causa sofrimentos passageiros; e 4) Considera vã a crença dos que apresentam o destino como senhor de tudo. Esta última característica é a que mais nos interessa, desde que a negação do destino implica na consideração de um âmbito natural da ação humana em que se veta a atuação da necessidade (anánke) sob a forma do destino (heimarméne). Este homem superior afirma que “algumas coisas acontecem necessariamente (anánke), outras por acaso (týche) e que outras dependem de nós” (par’hemás). Par’hemás é o espaço natural destinado às ações dos homens, espaço aberto pelo acaso no interior da necessidade. Embora

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Cf. MP, II.

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Epicuro não tenha se referido ao desvio dos átomos, parénklisis, a ideia expressa na noção de par’hemás se adéqua perfeitamente àquela trazida por Lucrécio.

Esse espaço aberto para a ação humana expressa o modo como a natureza (phýsis) é compreendida pelos epicuristas. A phýsis (natureza) é tanto permanência quanto origem e desfecho de si mesma, sem princípio nem finalidade, repleta de infinitos átomos agregando-se e desagregando-se eternamente ao sabor do acaso – natureza esta que é necessária em seus fundamentos corpóreos, mas que é casuística na formação dos compostos, pois é desprovida de finalidade interna, assim como nos diz P.-M. Morel:

Os Epicuristas, e em particular Lucrécio, rejeitam inequivocamente, não somente o finalismo cosmológico e providencialista, mas também a ideia de finalidade interna: não há intenção nem na formação nem na destruição dos mundos e também não há uma anterioridade da função em relação aos órgãos nos seres naturais. (MOREL, 2003, p. 168)

A natureza não está indo em direção ao progresso de si mesma ou a um fim estabelecido por uma mente soberana. Tampouco os compostos que constantemente se geram e se corrompem têm uma finalidade intrínseca. Nada exige que um mundo seja tal qual o nosso. Assim como somos poderíamos não ser, pois não há determinação prévia nas formas que os átomos em conjunto irão assumir. “De uma maneira geral”, diz MOREL (2003, p. 182), “a ordenação relativa de nosso mundo não deve nos fazer crer que a ordem tem qualquer privilégio ontológico sobre a desordem”. A estabilidade de um corpo depende do tipo de átomos que o compõe; às vezes sua dissolução é lenta, outras rápida, no entanto, assim que se agregam os átomos persistem em seu movimento eterno, vibrando nos espaços entre-átomos, ricocheteando-se, iniciando seu processo de dissolução logo que se compõem. Sem pronóia (providência) nem divindades previdentes o todo permanece. A phýsis, assim entendida, permite que os homens se auto-determinem no espaço deixado vago pela natureza. Não podemos, por exemplo, deixar de comer ou beber, mas podemos escolher o que comer ou o que beber. “A necessidade é um mal, mas não há necessidade de se viver com a necessidade” (SV, 9).

A natureza está, portanto, aberta àquilo que cabe aos homens realizar. Par'hemás é o espaço aberto no interior da necessidade para a realização das ações humanas. O acaso limita a extensão da necessidade e abre as portas para novas cadeias causais serem iniciadas. Embora Epicuro não tenha mencionado nada a respeito do desvio aleatório dos átomos (pelo menos não nos seus textos remanescentes), percebe-se que a noção de par'hemás é possibilitada pelo acaso

sob a forma dos desvios, bem como sua vigência envolve a vontade, deliberação, autarquia e escolha dos viventes. Enfim, par’hemás se relaciona com a noção de liberdade em sentido amplo. Já Filodemo faz equivaler diretamente a liberdade decorrente do clinamen com o par'hemás:

Não é suficiente admitir ínfimas declinações dos átomos por causa do acaso e da liberdade (tò

tycheròn kaì tò par’hemás), mas é necessário provar que esta declinação não combate nenhum

fato evidente (enargón) (De Signis, XXXVI, 7-17, apud SALEM, 1997, p. 68).

Apesar do problema epistemológico levantado por Filodemo em relação à não- contradição do clinamen ou parénklisis, fica claro que par’hemás é uma expressão utilizada para falar de liberdade de maneira geral, ou seja, de todas as possibilidades abertas pelo desvio aleatório dos átomos. A expressão par'hemás abrange um conjunto de coisas que se relacionam com o agir do homem. Aquilo que depende de nós ou que nos concerne é, em última instância, o espaço para a construção humana. Existem coisas geradas pela natureza, outras em que o acaso intervêm sob a forma do elemento inesperado, e outras que são fruto da ação, da construção dos homens, cujas causas são imputáveis somente a eles140.

Podemos seguir na esteira de Duvernoy (1993) e dizer que Par'hemás é o espaço para construção:

Essa construção, precisamente, se torna possível pela neutralidade cosmológica (o espaço deixado vago pela necessidade-acaso). Num oceano de indefinido [indefinição?] espacial e temporal, é possível, para o composto humano, existir como unidade provisoriamente totalizante, centro de si mesmo, momentaneamente sintético, das impressões e dos instantes. (DUVERNOY, 1993, p. 110)

Em sentido amplo, essa construção abrange desde a utilização das artes para fins variados à construção do caráter de outro, pela educação, como da ação de alguém sobre si mesmo na tentativa de melhorar ou de se aperfeiçoar. Os pactos de não prejudicar nem ser prejudicado141 também são frutos da construção do homem, construção livre, expressão das capacidades de realizar deliberadamente convenções (nómos) e modos de vida de acordo com a vontade de cada homem. O homem constrói sua língua, convenciona os valores, filosofa, discursa, dialoga, cria, enfim, estabelece um mundo humano, uma comunidade humana, sem que a menor sombra de

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Essas ideias se encontram também em textos de Aristóteles: “as causas de todas as ações humanas são exteriores ou interiores ao agente. Quando o agente não tem nele mesmo a causa, a ação se deve tanto à fortuna (týche) quanto à necessidade” (Retórica I, 10, 1368 b 32-35 apud CONCHE, 1976, p. 225, n.4).

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uma necessidade onipotente interfira em suas ações. Sobre um lastro necessário e natural se constroem, sem mestre algum (adéspotos), as comunidades humanas.

Nenhuma das ações realizadas com o fim de estabelecer essas comunidades têm causas extrínsecas aos próprios homens. “O que depende de nós (par’hemás) é sem mestre (adéspotos)” (DL, X, 133), diz Epicuro. O comando da ação dos homens está neles mesmos. Isso significa que existem ações auto-orientadas, que partem dos próprios agentes em direção da própria satisfação. Em outras palavras, há um espaço para ações autárquicas e, portanto, livres.

Nesse ínterim a ação adquire um caráter autárquico. Esta atua como elemento positivo na ação livre, desde que o clinamen apenas “quebra as leis do destino”, abrindo um espaço para construção (par’hemás) que, por sua vez, permite ações positivas, auto-orientadas, autárquicas.

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