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Para além do capital: o signo da raça na formação sócio histórica brasileira

CAPÍTULO I MULHERES ALVO DO CÁRCERE: apontamentos sobre mulheres,

1.2 Para além do capital: o signo da raça na formação sócio histórica brasileira

De acordo com Anibal Quijano (2005), a ideia de raça enquanto distinção biológica introduziu junto às relações de controle e exploração do trabalho um padrão de poder entre colonizadores e colonizados que colocavam estes últimos em uma posição de inferioridade. Segundo o autor,

A globalização em curso é, em primeiro lugar, a culminação de um processo que começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de poder mundial. [Sendo que] Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da população mundial de acordo com a idéia de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo. Esse eixo tem, portanto, origem e caráter colonial, mas provou ser mais duradouro e estável que o colonialismo em cuja matriz foi estabelecido. Implica, conseqüentemente, num elemento de colonialidade no padrão de poder hoje hegemônico. (QUIJANO, 2005, p. 107, grafia original).

Conforme o autor, “A idéia [sic] de raça, em seu sentido moderno, não tem história conhecida antes da América” quando “A formação de relações sociais fundadas nessa idéia [sic], produziu [...] identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras” (QUIJANO, 2005, p. 107), garantindo, assim, legitimidade para as relações de dominação e exploração, uma vez que os dominadores europeus se autodenominaram brancos e superiores às demais raças criadas.

Assim, cada forma de controle do trabalho esteve articulada com uma raça particular. Consequentemente, o controle de uma forma específica de trabalho podia ser ao mesmo tempo um controle de um grupo específico de gente dominada (QUIJANO, 2005, p. 109).

Sendo que "o trabalho escravo, foi restrita, exclusivamente, à população trazida da futura África e chamada de negra” (QUIJANO, 2005, p. 110). Ao avançar no que concerne a discussão de raça, Rita Segato assevera que

o fundamental é lembrar e entender que cor é signo e seu único valor sociológico radica em sua capacidade de significar. Portanto, o seu sentido depende de uma atribuição, de uma leitura socialmente compartilhada e de um contexto histórica e geograficamente delimitado (SEGATO, 2005, p. 3, grifos da autora).

Para a autora,

Numa sociedade destas características, ser negro significa exibir os traços que lembram e remetem à derrota histórica dos povos africanos perante os exércitos coloniais e sua posterior escravização. [...] entre os quais a cor, isto é, o indicador baseado na visibilidade do traço de origem africana, é o mais forte. (SEGATO, 2005, p. 4, grifos da autora)

Ela continua,

[...] raça é signo-significante produzido no seio de uma estrutura onde o estado e os grupos que com ele se identificam produzem e reproduzem seus processos de instalação em detrimento de e a expensas dos outros que este mesmo processo de emergência justamente secreta e simultaneamente segrega [pois] [...] As posições, enquanto afloramento de relações estruturais, têm rosto. (SEGATO, 2005, p. 10, grifos da autora).

Para Antônio Sérgio Alfredo Guimarães (1999, p. 28),

o anti-racismo erudito de então operou muitas vezes, de fato, funcionalmente, como um esforço ideológico de obscurecer o verdadeiro racismo nacional. [...] [em que], a definição de "raça" como um conceito biológico - ou pelo menos como uma noção sobre diferenças biológicas, objetivas (fenótipos), entre seres humanos - escondia tanto o caráter racialista das distinções de cor, quanto o seu caráter construído, social e cultural. Se a noção de "raça" referia-se a diferenças biológicas hereditárias precisas, então, segundo esse modo de pensar, a "cor" não podia ser considerada uma noção racialista, dado que não teria uma remissão hereditária única e inconfundível, seria apenas um fato concreto e objetivo. Poder-se-ia rejeitar a noção biológica de "raça" e ainda assim reconhecer diferenças objetivas de "cor”.

De acordo com Guimarães, o nacionalismo negro e o movimento feminista nos anos 1970 apresentaram uma nova dinâmica para as percepções antirracistas ao passo que lutavam e resistiam contra a inferiorização e invisibilização da cultura negra, bem como pela denúncia do caráter racializado das distinções sexuais. A definição sociológica de raça fundamentada em uma definição meramente biológica a despeito das condições históricas, de classe, etnicidade, gênero e nacionalidade seria, portanto, insuficiente.

Segundo o autor, no Brasil a cor da pele opera como uma imagem figurada da raça uma vez que aquela está intimamente ligada ao status e a classe social ocupada pelos sujeitos, na medida em que “condição de pobreza dos pretos e mestiços, assim como anteriormente à condição servil dos escravos, era tomada como marca de inferioridade.” (GUIMARÃES, 1999, p. 35).

No Brasil, somente aqueles com pele realmente escura sofrem inteiramente a discriminação e o preconceito antes reservados ao negro africano. Aqueles que apresentam graus variados de mestiçagem podem usufruir, de acordo com seu grau de brancura (tanto cromática quanto cultural, dado que "branco" é um símbolo de

"europeidade"), alguns dos privilégios reservados aos brancos (GUIMARÃES, 1999, p. 36).

Com 131 anos de uma abolição inconclusa, a sociedade brasileira é marcada pelo escravismo em sua formação social e histórica, sendo o racismo estrutural a essa sociedade racialmente marcada por diferenças raciais socialmente construídas. Dessa forma, para romper com o mito da democracia racial e a ideia de superioridade branca, bem como processos de embranquecimento do povo negro, falar de racismo e de enfrentamento ao racismo é extremamente urgente e necessário. Para Guimarães (1999, p.37) “Se é verdade que cada racismo tem uma história particular, a idéia de

embranquecimento é certamente aquela que especifica o [...] pensamento racial

[no Brasil]”.

A idéia de "embranquecimento" foi elaborada por um orgulho nacional ferido, assaltado por dúvidas e desconfianças a respeito do seu gênio industrial, econômico e civilizatório. Foi, antes de tudo, uma maneira de racionalizar os sentimentos de inferioridade racial e cultural instalados pelo racismo científico e pelo determinismo geográfico do século XIX. (GUIMARÃES, 1999, pp. 37-38).

Em que, ainda de acordo com o autor,

"Embranquecimento" passou, portanto, a significar a capacidade da nação brasileira (definida como uma extensão da civilização européia, onde uma nova raça emergia) para absorver e integrar mestiços e pretos. Tal capacidade requer implicitamente a concordância das pessoas de cor em renegar sua ancestralidade africana ou indígena. "Embranquecimento" e "democracia racial" são pois conceitos de um novo discurso racialista. [...] [pois] A cor das pessoas assim como seus costumes são portanto índices do valor positivo ou negativo dessas "raças”. (GUIMARÃES, 1999, p. 39).

No Brasil, raça, enquanto dispositivo disciplinar das relações sociais, opera cotidianamente e estrutura nossa sociedade, tendo como consequência o epistemicídio da raça que é historicamente silenciada, negada e invisibilizada, sendo que a população negra é exterminada em níveis físico, moral, cultural, político, estético, comercial e intelectual. “O ‘estranhamento’ dos negros no imaginário nacionalista está presente em todas as classes sociais.” (GUIMARÃES, 1999, p. 41).

A liberdade do povo negro foi trocada por condições de desigualdade social e de subalternidade, a população negra compõe um segmento

marginalizado da população, sem proteção social, uma vez que a raça tem operado enquanto instrumento de exclusão social.

Assim é o racismo brasileiro. Sem cara, travestido em roupas ilustradas,universalista, tratando-se a si mesmo como anti-racismo e negando como antinacional a presença integral do afro-brasileiro ou do índio brasileiro.Para esse racismo, o racista é aquele que separa, não o que nega a humanidade de outrem; desse modo, racismo, para ele, é o racismo do vizinho (o racismo americano). (GUIMARÃES, 1999, p. 43)

Por isso é imperioso ir para além do capital, afinal a questão é de classe, mas não só, é também de raça  uma vez que raça informa a classe. Isso considerando questão social e questão racial duas categorias estruturantes e intercruzadas, que marcham rumo à quebra de um pensamento dicotômico e cartesiano indo de encontro a uma perspectiva interseccional como propõe Kimberlle Crenshaw (2004), uma vez que não se pode enfrentar hierarquias de classe sem discutir raça.

1.3 Do Estado Social ao Estado Penal: A miséria governada pelo direito