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CAPÍTULO 1 UM PERCURSO PELA TEORIA E MÉTODO:

1.3 H ABITANDO A CONTRADIÇÃO

1.3.1 Para além do logicismo e do sociologismo

Não me sentiria confortável em falar sobre contradição e sobre a história da linguística na formação teórica da história das ideias linguísticas tal como ela se estabelece no Brasil sem passar pelo estudo que M. Pêcheux faz ao lado de F. Gadet26 sobre a história da reflexão sobre a linguagem, no qual a sociolinguística provoca críticas muito contundentes.

No livro A língua inatingível (La langue introuvable), publicado originalmente em 1983, e no artigo que o antecede “Há uma via para a Linguística fora do logicismo e do sociologismo?” (Y-a-t-il une voie pour la linguistique hors du logicisme et du sociologisme?), de 1978, originalmente, esses autores partem do princípio de que à época em que a análise de discurso começava a ganhar expressão na França a linguística vivia uma crise interna provocada por um ensurdecimento político que ameaçava recobrir seu núcleo científico por

24 Essa categorização, se assim podemos dizer, dos estudos da variação é feita e amplamente trabalhada por

Orlandi (2014).

25 A palavra gesto se refere a um ato no nível simbólico. Ela serve, na perspectiva discursiva, “para deslocar a

noção de 'ato' da perspectiva pragmática; sem, no entanto, desconsiderá-la" (Orlandi, 2007, p.18).

interesses exteriores27. Diante disso, eles propõem uma mudança de terreno pelo “debate sobre a questão do real da língua e o real da história, ou seja, da posição materialista em linguística” (Orlandi, 1999, p.53).

Segundo Pêcheux e Gadet, esse impasse seria fruto da dualidade contraditória presente nas relações administrativas do Estado, que revestem ao mesmo tempo a forma logicista de um sistema jurídico concentrado em um foco único e a forma sociologista de uma absorção negociada da diversidade (Pêcheux e Gadet, 2010), a qual se realiza materialmente na organização que impõem ao trabalho linguístico e no regime de funcionamento científico que determinam para esse trabalho.

Para falar nos termos dos autores,

o empreendimento linguístico encontra-se, assim, constitutivamente afetado por uma dupla deriva: a do empirismo, baseando-se principalmente em uma concepção historicizante dos “fenômenos sociais” e desembocando na figura contemporânea do

sociologismo; a do racionalismo, tentando fundar, uma pela outra, a unidade da língua e a coerência sistêmica do pensamento, com a figura contemporânea do

logicismo no horizonte. (Pêcheux e Gadet, 2010, p.31)

De um lado, a teoria gramatical (logicismo), do outro, a descrição (sociologismo). Enquanto o primeiro coloca a autonomia da linguística, caracterizando em sua própria estrutura o real próprio de toda língua; o segundo concebe toda língua como produto social precário de um estado de fato, tomando o indivíduo em situação como concreto linguístico e produzindo, consequentemente, um trabalho interdisciplinar.

No quadro atual das teorias linguísticas, temos como forma prototípica de compromisso com o formalismo (ou racionalismo) o gerativismo chomskyano, que expõe uma concepção de sintaxe apoiada na lógica, com a pretensão de se desenvolver na região das “ideias puras”, negando a política ao falar aparentemente de outras coisas. Como forma prototípica de compromisso com o sociologismo, temos a sociolinguística (ou sociologia da linguagem), apoiada na etnografia, na antropologia e na psicologia social, com uma metodologia correlacionista que recalca a política falando ou acreditando falar dela.

Entre as teorias logicistas e sociologistas, Pêcheux e Gadet identificam ainda uma via intermediária, representada pela sociolinguística laboviana (teoria variacionista), que combina os princípios da gramática gerativa com referências à situação e à estrutura social.

27 Em texto publicado duas décadas mais tarde como prefácio à edição brasileira do livro A língua inatingível, F.

Gadet reconhece a realização dessa intuição: “Encontro em seguida o que me parece serem intuições confirmadas pelo desenrolar da história, quanto ao destino a médio prazo da disciplina linguística, desde então cercada por um movediço terreno de contradições no qual ela se afundou seguindo um movimento pendular entre o formalismo e o empirismo” (Gadet, 2010, p.12).

Nas palavras dos autores, “essas tendências intermediárias têm como interesse indireto exibir a unidade dos contrários sob a forma do sujeito natural-lógico instaurado entre a língua- abstração do logicismo e o indivíduo do sociologismo” (Pêcheux e Gadet, 1998).

É exatamente aí que os estudiosos colocam a noção de sujeito como um grande divisor de águas, no sentido de colocar fim ao (falso) debate entre o formalismo e o empirismo, e isso pela recusa fundamental do sujeito “como mestre de si e responsável por suas escolhas, adaptado ao mundo normal(izado)” (Orlandi, 1999, p.57). A análise de discurso procura manter o que é próprio da língua pela dessubjetivação da teoria da linguagem.

Nesse ponto em que a linguística se articula com os processos ideológicos, a língua aparece como a base comum de processos discursivos diferenciados28. Nessa perspectiva, a ordem de regra da língua não é nem lógica nem social. Pensá-la sem ceder aos ismos produzidos por alianças que pretendem, no fim das contas, apagar o próprio objeto da linguística, implica uma outra sintaxe, que pensa a língua como capaz de falha, enquanto sistema simbólico.

Tentar pensar a língua como espaço de regras intrinsecamente capazes de jogo, como jogo sobre as regras, é supor na língua uma ordem de regra que não é nem lógica nem social: é fazer a hipótese de que a sintaxe, como espaço especificamente linguístico, não é nem uma máquina lógica (um sistema formal autônomo, exterior ao lexical, ao semântico, ao pragmático e ao enunciativo), nem uma construção fictícia de natureza metalinguística (redutível a efeitos de poder inscritos em um domínio que, supostamente, governa o discurso escrito). (Pêcheux, 1990, p.27-28) Interessante pensar que, em que pesem as fortes críticas direcionadas ao logicismo e ao sociologismo, F. Gadet, vinte anos após a publicação desses trabalhos ao lado de M. Pêcheux, aponta para a possibilidade de um encontro entre a análise de discurso e a sociolinguística, em um projeto intelectual que

se interessaria pelo sujeito falante, visto em um sentido amplo como utilizador da linguagem, como sujeito historicamente situado, e como sujeito. E tal configuração trataria de transformar em objeto de investigação, compreensível e possível, não somente o que ele diz e o que parece dizer, mas também o que faz quando fala – e sobretudo quando fala do modo que fala e não de outra forma – tanto quanto escuta ou se cala. (Gadet, 2010 [2003], p.14)

Nessa mudança de perspectiva, o que se busca no sociolinguístico não tem nada a ver com o projeto dado como objetivo da sociolinguística, isto é, a covariação direta entre

28 “[...] o sistema da língua é sempre o mesmo para o materialista e para o idealista, para o revolucionário e para

o reacionário, para o que dispõe de um conhecimento dado e para o que não dispõe dele. Não resulta daí, no entanto, que esses diversos personagens sustentarão o mesmo discurso” (Pêcheux e Gadet, 1998).

social e linguístico. Mesmo porque é a sociolinguística o maior alvo de crítica de Pêcheux e Gadet, justamente pelo modo como eles mostram que se configura seu ensurdecimento ao político ao ocupar-se de relações que escapam ao fato linguístico.

Ao explorar as principais conjunturas teóricas que constroem o trabalho linguístico, esses autores mostram que a sociolinguística floresce nos Estados Unidos e na Europa ao lado do surgimento de uma nova gestão política das diferenças, depois da Guerra Fria, quando os então chamados países de Terceiro Mundo começaram a evoluir, fazendo emergir a questão do multilinguismo e da política linguística visando planificar e instaurar a estandardização das línguas nacionais, e quando começam a se desenvolver de forma mais expressiva as contradições nos sistemas escolares dos países capitalistas desenvolvidos, ao que se convencionou chamar fracasso escolar, que atinge os deserdados socioeconomicamente.

Em face disso, a sociolinguística acopla a suas finalidades científicas a responsabilidade de contribuir para a resolução dos desvios e supressão das desigualdades. E, isso, sem tocar a contradição que instala essas desigualdades na estrutura do modo de produção capitalista.

Assim, dizem Pêcheux e Gadet, enquanto a tendência logicista assume o ideal humanista de uma difusão universal da democracia burguesa, das ciências e das técnicas29, o sociologismo, e, por consequência, a sociolinguística, assume o que chamam um humanismo reformista, cujo ideal é o de remediar as resistências externas e internas encontradas por essa difusão da democracia. Mas ao fazê-lo recobrindo a questão do Estado, pela substituição da análise das relações interindividuais (status, prestígio, atitude, motivação etc.) e pelo trabalho com relações de parentesco, de idade, de sexo, de raça, de nível cultural etc. (Orlandi, 2009, p.162), esse objetivo dificilmente será alcançado.

É nesse ponto que suas críticas se concentram mais fortemente (muito mais, inclusive, que as direcionadas ao logicismo).

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