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Para além dos zigue-zagues acadêmicos

110. Seria possível seguir assim indefinidamente, ziguezagueando conforme as menções de Proudhon a Comte ou a Saint-Simon, e a disputa quanto à maior proximidade de Proudhon em relação a um ou ao outro a rigor não levaria a nada. Faça-se uma experiência: tome-se esse zigue- zague de um referencial subjetivo a outro em busca do “verdadeiro Proudhon” — zigue-zague que é aliás apenas uma caricatura dos procedimentos mais tipicamente acadêmicos — e trate-se de examiná-lo, ele próprio, de um ponto de vista proudhoniano: torna-se claro que tal zigue-zague só adquire algum sentido quando visa detectar, na medida do possível, algo de objetivo, algo que é mais do que, por exemplo, compreender a subjetividade intelectual de Proudhon. Torna-se claro que

101Cf. PROUDHON, P.-J. Carnets (1843-1846). Antony: Tops/H. Trinquier, 2000. Tomo I. A edição apresenta a numeração original de Proudhon além da sua própria. A citação (p. 103 do original) se encontra na p. 98 desta edição. Foi mantida aqui aproximadamente a formatação original do texto citado, que prossegue como uma lista de duas colunas.

102Cf. PROUDHON, P.-J. Carnets (1843-1846). Antony: Tops/H. Trinquier, 2000. Tomo I. A edição apresenta a numeração original de Proudhon além da sua própria. A citação (p. 103 do original) se encontra na p. 98 desta edição. Foi mantida aqui aproximadamente a formatação original do texto citado, que prossegue como uma lista de duas colunas.

há algo de significativo em relação ao contexto social, extra-intelectual, ao qual os intelectuais procuram fazer referência. Quando já não há, essa ausência de referência extra-intelectual se torna por si mesma sintomática de algo em relação ao contexto social, algo que diz respeito à produção intelectual de uma sociedade.

Proudhon procura chamar a atenção dos meios acadêmicos para isto, diagnosticando neles, já em sua época em que os debates políticos e sociais se infiltravam tão facilmente no discurso acadêmico, uma forte tendência no sentido de perderem de vista essa referência em meio a zigue- zagues como este. Ainda de um ponto de vista proudhoniano, diria-se que nos dias de hoje, na filosofia acadêmica, o sintoma se encontra agravado de modo a atingir níveis altamente patológicos.

111. Deixando de lado por enquanto essa discussão, e seguindo adiante nesse zigue-zague, sem preder de vista a busca de algo objetivo para além dele (conforme o que o próprio Proudhon provavelmente recomendaria), o importante quanto a essas referências a Saint-Simon, a Comte e a outros, é ter em conta que as influências sofridas por um autor não se limitam às suas preferências teóricas, nem mesmo se pode dizer que haja necessariamente maior influência dos teóricos preferidos do que daqueles que ele ataca: suas antipatias ou oposições teóricas não são necessariamente indiferentes para a formação de seu pensamento, e podem, pelo contrário, desempenhar um papel bastante significativo.

112. Nos textos de Proudhon, na mesma linha de seu estilo de certo modo militantemente autodidata e anti-acadêmico, muitas vezes suas principais influências se manifestam indiretamente, por meio de alusões ou analogias que se tornam claras apenas para quem, como ele, leu os mesmos autores e textos, sem que isto signifique de maneira nenhuma a necessidade de compreender esses autores como um pré-requisito para compreendê-lo. O foco de atenção de Proudhon não está concentrado nessas influências teóricas, não lhe interessa mostrar-se filiado a este ou aquele autor, ou então afastado deste ou daquele autor. Interessam-lhe diretamente os assuntos tratados, não importando quem, individualmente, os trata deste ou daquele modo, mas que tendências gerais da sociedade estão representadas em cada tratamento dispensado ao assunto que se apresenta. Ainda mais focado nas interações da teoria com a vida prática do que Saint-Simon, para Proudhon as referências a intelectuais ou filósofos específicos simplesmente não parecem ter, a rigor, a menor importância.

No entanto, ele não fecha suas portas para o leitor de formação mais acadêmica, porque do modo como escreve, com muitas alusões indiretas a diferentes teóricos, esse leitor é justamente o que melhor pode reconhecer, em seus textos, as pistas do contato com tais teóricos — Proudhon mantém-se atento àquilo que interessa ao leitor acadêmico. Não procura satisfazê-lo, mas atiçar-lhe

a curiosidade e sobretudo provocá-lo, deixando claro que se tais alusões interessam a esse leitor, não são o que mais interessa a ele — Proudhon — porque não são o que se deve mais atentamente focalizar do ponto de vista do interesse popular.

Além disso há uma outra razão, e mais forte, pela qual os textos de Proudhon permanecem repletos de alusões a teóricos com os quais parece indiretamente dialogar. É que não existe, nesses procedimentos anti-acadêmicos de Proudhon, nenhuma despersonalização na discussão dos assuntos: na busca de algo objetivamente relacionado com o contexto social e extra-intelectual, ele não pretende abandonar o campo dos debates teóricos e conflitos de posicionamento intelectual em favor de alguma espécie de anti-intelectualismo de cariz prático, que simplesmente desconsideraria todo esse campo de discussões como um campo de meras abstrações acadêmicas sem nenhum valor. Pelo contrário, o que faz é procurar arrastar todas essas discussões, todo esse campo de debates com sues posicionamentos intelectuais personalizados, para o terreno em que, para ele, parecem de fato adquirir profundidade, densidade, consistência e valor: remete os autores e seus debates acadêmicos às tendências sociais que parecem manifestar-se indiretamente neles — e o faz provocativamente, mantendo alusões e analogias que eles e seus leitores acadêmicos mais atentos podem captar com facilidade.

A retórica de Proudhon, em outras palavras, arrasta os interlocutores e seus partidários a considerarem cada um a sua própria inserção no circuito mais geral dos movimentos e tendências sociais, e a debaterem suas posições com Proudhon, se assim o quiserem, enquanto representantes de tais movimentos ou tendências. As referências a este procedimento proudhoniano, no decorrer desta pesquisa, serão chamadas de “arraste para o confronto social”.

113. Esse “arraste” deixa a seus interlocutores, quando se dispõem a dar-lhe uma resposta, apenas duas saídas. Primeira opção: confirmam esse posicionamento e essa filiação que Proudhon lhes atribui no seio dos movimentos e tendências sociais em conflito, e assim transportam a discussão, do terreno do debate entre intelectuais individualmente considerados, em uma esfera de pura erudição, para o terreno prático e político do debate entre representantes das diferentes tendências e grupos de força que mobilizam efetivamente a sociedade. Ou segunda opção: recusam a filiação que Proudhon lhes atribui, e defendem-se dessa atribuição com argumentos, recusando-se a serem associados aos movimentos e tendências sociais aos quais Proudhon os associa — situação bem mais freqüente, uma vez que o modo como Proudhon aponta tais filiações dos intelectuais tem um tom quase sempre fortemente provocativo, pretendendo atiçá-los a assumirem de vez essa posição ou corrigirem-se.

Quase sempre, os interlocutores de Proudhon, ao invés de se corrigirem, preferem dispor-se a corrigir Proudhon; e o mais das vezes bastante agressivamente — porque consideram também agressiva a postura proudhoniana. É por exemplo o caso dos comunistas e socialistas cristãos em geral, acusados por Proudhon de filiarem-se no fundo a uma mesma corrente da qual participam os monarquistas, ao adotarem o mesmo princípio de soberania, a mesma defesa de um poder político supremo e soberano, apenas transferindo-o do monarca para a unidade da massa popular ou para um comitê de representantes. Monarquismo e defesa do povo enquanto unidade soberana participam de um mesmo e único caldo de pensamento. Os conteúdos do que está no foco central das atenções se altera; o soberano não é mais um indivíduo oriundo da aristocracia. Mas continua havendo um soberano, com tudo o que se associa ou pode se associar a essa noção. O mesmo conjunto de noções — associadas ou associáveis à noção de soberania — é deslocado de um posicionamento para o outro; a forma do pensamento que em seu conjunto delineia e condiciona essas noções, e que irá orientar as ações a serem realizadas a partir delas, é a mesma.

114. Compreendido então o sentido das analogias e alusões indiretas de Proudhon a diferentes filósofos e estudiosos de diversas áreas, ao invés de citá-los clara e diretamente, pode-se observar que, no caso do positivismo de Comte — especialmente sendo este um autor tão conhecido ainda hoje — a referência indireta, mediante analogias e alusões, é por outro lado gritante para o leitor atento de Proudhon, realmente difícil de ignorar, e não é à toa que muitos comentadores a observam. Mas é uma referência sobretudo a uma certa tendência presente na sociedade, tendência que se manifesta e se defende nesse autor.

E) DE VOLTA AO ZIGUE-ZAGUE: SAINT-SIMON OU COMTE? — O VIÉS