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Para não concluir: A imagem resistente Meu povo e meu poema crescem juntos

como cresce no fruto

a árvore nova

No povo meu poema vai nascendo como no canavial

nasce verde o açúcar

No povo meu poema está maduro como o sol

na garganta do futuro Meu povo em meu poema se reflete

como a espiga se funde em terra fértil Ao povo seu poema aqui devolvo menos como quem canta

do que planta

Não encontrei melhor forma de descrever a ética cinematográfica de Humberto Mauro e Leon Hirzsman do que estes versos de Ferreira Gullar, que abrem seu livro de poemas Dentro da noite veloz lançado em 1975.

Falo em ética porque, na obra destes cineastas analisada ao longo da dissertação, a expressão estética cinematográfica é modelada por um firme posicionamento moral perante o outro filmado.

Mais do que apreender a realidade como objeto ou convencer o espectador sobre determinado ponto de vista, importa para Mauro e Hirszman mostrar. Transmitir.

Menos como quem canta do que planta.

Transmissão talvez seja uma das palavras-chave para encarar tais filmes. Ao buscar expressar cinematograficamente esses ancestrais cantos de trabalho, Mauro e Hirszman inscrevem-se dentro da milenar tradição humana de propagação de saberes entre gerações. Suas trilogias particulares sobre as canções de trabalho camponesas são como as histórias dos griots africanos, preservando e difundindo a cultura e os valores de seu povo.

Seria injusto, contudo, restringir a importância desses filmes ao seu caráter de registro histórico.

Não se pode esquecer que tais obras foram construídas em meio a regimes autoritários. Humberto Mauro e o Estado Novo, Leon Hirszman e a Ditadura Militar. Sob esse aspecto,

seus Cantos também são um posicionamento perante a ideologia destes regimes.

Mauro trabalhou para o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) desde sua fundação em 1936 até sua aposentadoria em 1964. Todavia, sua produção neste órgão, em especial a série Brasilianas (1945-1964), ao retratar o mundo rural, suas expressões culturais e os valores do trabalho do homem de campo, questionou o projeto nacionalista gerido pelo Estado Novo (1937-1945) e pautado por uma industrialização e urbanização uniformizantes e concentradoras.

Hirszman realizou S. Bernardo e a trilogia dos Cantos de Trabalho durante o milagre econômico brasileiro, período em que o recrudescimento da repressão e tortura dos opositores à ditadura militar conviveu com uma taxa de crescimento do PIB superior a casa dos 10% ao ano, gerando o maior crescimento econômico desde a Proclamação da República e, com ele, um ufanismo oficial representado pelos slogans “Brasil Grande”, “Brasil Pot̂ncia” e “Brasil: ame-o ou deixe-o”.

Pautado, principalmente, pelo investimento em empresas estatais e por grandes obras de infra-estrutura, como a Transamazônica, a Usina Hidrelétrica de Itaipu e a Usina Nuclear em Angra dos Reis, o milagre econômico brasileiro escondia atrás de si o aumento na concentração de renda, a desvalorização e o arrocho dos salários. No universo rural, o período foi marcado pela Revolução Verde com incentivo aos monocultivos concentradores de terra e à entrada massiva de empresas multinacionais, expulsando camponeses de suas terras e aumentando o êxodo rural.

Diante deste quadro, representar os cantos de trabalho, com foco explícito em seu caráter coletivo e solidário, manifesta uma afronta direta de Leon Hirszman a este projeto nacionalista excludente.

Contudo, não se pode cair em certa lógica binária de demonização da modernização. Não me parece ser esse o intento de Humberto Mauro e Leon Hirszman. Seria mais correto afirmar que sua ética cinematográfica tinha como norte um outro modelo de desenvolvimento, focado no humano, no valor do trabalho, nas vocações e características de cada território. Um desenvolvimento que, na construção da nação, levasse em consideração os saberes e fazeres populares, transformando-os dialeticamente para lidar com os desafios da modernidade.

Esta preocupação em construir uma visão mais ampla da Nação, incluindo e evidenciando o universo rural, não se conformou, todavia, numa pretensão de retratar de modo definitivo e categórico a cultura camponesa.

Leon de que não existe uma identidade pura, estática e intocável do outro camponês, diante da qual o cineasta deveria resumir-se a representá-la da maneira mais fidedigna possível. Como bem expressa Edward Said, “a realidade humana está constantemente sendo feita e desfeita, e qualquer coisa semelhante a uma esŝncia estável está constantemente sob amea̧a” (2007:443).

Se a identidade cultural ño é natural e estável, mas “construída e de vez em quando inteiramente inventada”, as imagens cinematográficas desta cultura ño s̃o mais que... imagens. Invenção audiovisual de uma cultura, de um povo. E por serem imagens construídas de uma realidade em constante processo de mutação, não se pode julgá-las como boas ou más, certas ou erradas. Existem apenas maneiras específicas de se criar uma imagem sobre o outro. A voz do outro não existe em estado puro; é também uma construção, uma criação.

Deste modo, retomando o mote inicial da pesquisa, não é o grau de fidelidade realista que diferencia o vídeos populares da ABVP dos Cantos de Trabalho de Mauro e Hirszman, mas sim que tipo de representação eles construíram sobre o universo camponês. Cada conjuntura histórica, social e estética criará novas e distintas imagens e vozes, mas nenhuma delas será a imagem ou voz camponesa em sua essência.

Esse, talvez, tenha sido o principal ensinamento que a feitura desta dissertação me trouxe, seja como pesquisador acadêmico, seja como realizador audiovisual: a cultura camponesa é uma construção social e suas imagens cinematográficas criações estéticas que expressam a conjuntura histórica e determinada visão de mundo de seu realizador. Não há uma cultura camponesa a ser catalogada e exposta em museus, assim como não há uma imagem desta cultura a ser registrada em definitivo e exibida em salas de cinema. Ambas são invenções, dialeticamente mutáveis no tempo e espaço.

Por fim, mas não menos importante, está a centralidade do trabalho nestas obras. Os dois cineastas buscaram, cada um a sua maneira, destacar o labor humano como matéria prima que atravessa a História e o fazer cinematográfico.

Ao falar do método de tratamento da psiquiatra Nise da Silveira, Leon Hirszman toca no ponto nevrálgico deste princípio:

Trabalhando, criando, produzindo, a pessoa fica mais forte para resistir a todos aqueles embates – a tortura, o amesquinhamento da pessoa humana, a dor física, todas as questões que estão por trás disso e fazem as pessoas perderem até a orientação do espaço, dos espaços tumultuados, dos espaços amontados (…) Pincéis, barros, tintas, papéis, coisas assim, que permitam a expressão do mundo interior (apud VIANY, 1999: 309).

O trabalho, seja ele qual for, do lavrador ao pintor, do rebocador de parede ao cineasta, é um processo criativo, uma expressão do Eu. E se o trabalho estranhado e alienante identificado por Marx no século XIX ainda é a tônica vigente na contemporaneidade, o canto de trabalho não deixa de ser um vestígio, uma lembrança resistente de seu caráter lúdico, solidário e criador.

As centenas de compilações no Youtube com os sugestivos títulos de “músicas para trabalhar”, a disseminã̧o de espa̧os de coworking nos grandes centros urbanos, a criação de cooperativas de trabalhadores e de empreendimentos econômicos solidários pautados pela autogestão e compartilhamento comunitário dos frutos do trabalho, são outros exemplos desta resistência.

O trabalho persiste. Atravessa.

Humberto Mauro e Leon Hirszman expressaram-no em imagens cinematográficas. Sem idealismo.

Bruto. Suado. Cantado. Real.

Como nos versos de Ferreira Gullar:

Quem fala em flor não diz tudo. Quem me fala em dor diz demais. O poeta se torna mudo

Referências

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