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5.2 Análise dos fenômenos aparentemente absurdos

5.2.2 Paradoxo em aparente contradição de racionalidade ampla

O próximo exemplo, no qual faremos o embate das três teorias, vem da classificação de paradoxos proposta por Smarandache (1999) que apresentamos na seção de nosso trabalho destinada a refletir sobre o fenômeno paradoxal. Cada uma das fórmulas sugerida pelo teórico vem acompanhada de alguns exemplos em inglês. Para a análise que faremos aqui, selecionamos um dos exemplos cuja tradução é comumente utilizada no cotidiano de nativos de língua portuguesa do Brasil sem que cause estranheza em quem a ouve.

Fórmula: <N> de <não-N>93 (SMARANDACHE, 1999, n.p.)

(86) O bem que vem do mal94.

A expressão em (86) remete, em termos de significado, a um conhecido provérbio que diz “Há males que vêm para o bem”. Essa expressão, apesar de apresentar pontos opostos de um mesmo campo semântico, não demonstra uma contradição explicitamente, pelo menos não como a Lógica Clássica a expressa. A noção mais ampla de contradição, se comparada a alguns dos outros exemplos que traremos neste capítulo, é igualmente diferente, pois não há na estrutura da afirmação algo que modele a contradição. A ideia do contraditório está, assim como no exemplo o qual analisamos anteriormente, na relação do nível semântico e do nível pragmático, nos quais o paradoxo ocorre ao refletirmos sobre o ‘bem’ se originar do ‘mal’.

93 Do original: <N> of the <Non-N>.

Antes de iniciarmos nossa avaliação das teorias pragmáticas em (86), é interessante observar que o vemos claramente na ideia de paradoxo de autores como, por exemplo, Quine (1976) e Olin (2003). Inclusive, dentro de uma das classificações que os dois filósofos concordam, classificamos o paradoxo em (86) na qualidade de paradoxo verídico. Isso porque, assim como o de Frederic (o qual vimos na seção 4.2), as conclusões possíveis são verdadeiras. Podemos afirmar também que, diferente do paradoxo de Frederic, no qual as premissas eram aparentemente verdadeiras e a conclusão aparentemente falsa, na assertiva em (86) observamos o oposto. No entanto, ambos se assemelham quando tanto as premissas quanto as conclusões são provadas como verdadeiras após verificarmos as suas condições. Isso porque, assim como Frederic pode ter feito poucos aniversários, mas tem mais idade, por ter nascido em 29 de fevereiro, é possível que boas situações podem vir de situações ruins.

Começamos a investigar (86) pela perspectiva proposta por Horn (1984, 2006) sobre implicaturas geradas com base-Q e com base-R. Ao considerarmos a noção do princípio-Q sobre a quantidade de informação dada ser tão informativa quanto necessária, podemos supor do enunciado as seguintes implicaturas Q para (86):

(87) +> ‘Nem todo bem vem do mal’. (88) +> ‘Algum bem vem do mal’.

Essas implicaturas, realizadas com relações universais e particulares, conforme o quadrado das oposições (figura 1), evidenciam a ideia de que não há uma contradição real nesse paradoxo, pois nenhuma das implicaturas possíveis se contradizem. Isso corrobora nossa sugestão, dada em 4.1, do qual o conjunto em que se localizam a contradição e o em que estão os paradoxos encontram-se em intersecção e não um contido no outro, como é possível pensar devido ao grande número de paradoxos que são desenvolvidos por contradição.

Devemos lembrar que o paradoxo em (86) como proposto na fórmula de Smarandache (1999) faz a relação do <nome> com o <não-nome>. Isso considera que o ‘bem’ e o ‘mal’ estão em uma mesma linha de significação e, assim, mostra a polaridade da escala usada. Assim, confirmamos a escala <bem, mal>, na qual ‘bem’ é o polo positivo e ‘mal’ o negativo, retomando a ideia de contraditório que evoca o paradoxo. Essa gradação dos nomes ao pensarmos nas implicaturas-Q escalares não nos permite implicaturas como (89) e (90).

(89) +> ‘O mal que vem para o bem’. (90) +> ‘O bem que vem para o mal’.

A impossibilidade de (89) e (90) ocorre porque apesar de as ideias serem opostas não acarretam uma a outra justamente por uma ser negativa e outra positiva.

As implicaturas-R possibilitadas pelo paradoxo em questão se alicerçam principalmente na ideia griceana constante na segunda máxima de quantidade sobre não haver mais informação linguística do que o necessário. Isso leva também à máxima de relação, sobre ser produzidos enunciados econômicos. Portanto,

(91) +> Situações boas que vêm do bem. (92) +> O bem que vem de situações ruins.

A relação das ICGs proporcionadas pelos princípios dados em Horn (1984) evidenciam o paradoxo proposto com o uso da fórmula de Smarandache (1999) por manterem a ideia de certo modo estranha. A resolução de (86) não necessita ser explicada, pois, como mencionamos, esse é um paradoxo verídico e, portanto, sua conclusão e premissas são verdadeiras. Além disso, retomando a classificação de paradoxos controversos e não controversos (OLIN, 2003), (86) constaria na categoria de não controversos e, assim, não há motivos para o investigarmos como falsídico.

Analisaremos o paradoxo em (86), agora, sob a perspectiva da TICG, de Levinson (2000). Como sabemos, nessa abordagem, as implicaturas-Q são resultantes da heurística-Q, a qual se aproxima da noção de implicatura-Q dadas por base-Q tratadas por Horn, (1984, 2006), pois ambas lidam com a primeira máxima da categoria de qualidade (GRICE, 1967). Desse modo, podemos assumir as implicaturas (87) e (88) também na perspectiva de Levinson. A expressão ‘nem todos’, na implicatura (87), consta em uma escala negativa com ‘nenhum’ e a ‘alguns’, em (88) forma escala com ‘todos’. Isso significa que o uso de um dos termos invalida a implicatura com sua contrapartida na escala, pois um implica a negação do outro. Desse modo, é impossível a implicatura (93) ‘Todo o bem que vem do mal’, pois essa ideia não faz parte do significado da proposição.

Ainda considerando as implicaturas-Q e os conjuntos de contraste para Q, resgatamos as implicaturas (89) e (90) que fazem uso de um conjunto de não acarretamento {bem, mal...}, ou seja, um necessariamente implica a negação de um dos outros nomes constantes no conjunto. Com as noções propostas para esse tipo

de implicatura na TICG, continuamos a afirmar, como fizemos na análise da teoria anterior, que as implicaturas (89) e (90) não são possíveis para o exemplo em questão. Além disso, faz sentido pensarmos na manutenção de nossa conclusão também para as implicaturas-R (91) e (92), pois a segunda heurística possibilitaria as mesmas implicaturas por resgatarmos uma interpretação bastante conhecida do termo em uma generalização dele. Com isso observamos também a manutenção do princípio da informatividade por buscar uma boa forma de comunicação e que seja econômica. Percebemos também a impossibilidade de mais uma implicatura que rompe com a heurística-I, em (94), bem como uma possível implicatura-M, em (95), ao pensarmos na maneira como a expressão (86) é realizada.

(94) +> ‘ao contrário do estereótipo de que o bem vem do bem’. (95) +> ‘o mal não era completamente mal’.

A implicatura em (95) se origina pela heurística-M que se relaciona às máximas gricenas de modo sobre evitar expressões obscuras e prolixidade. A ICG do tipo M em (95) é permitida no paradoxo (86), justamente por ressaltar a estranheza de que o ‘bem’ não deveria vir do ‘mal’, mas da maneira como o fenômeno é proposto interpretamos que o mal pode não ser completamente mal.

É indispensável lembrar que, de acordo com Levinson (2000), as implicaturas possibilitadas em Q e M são mais fortes que as em I por proporcionarem interpretações metalinguísticas. Dentro do gênero de Q, as implicaturas escalares são as mais inconsistentes, de forma que as interpretações dadas em (87) e (88) são as preferidas e, portanto, as demais não invalidam o surgimento do paradoxo nem da compreensão de (86).

Antes de avaliarmos o modo como a TR (SPERBER; WILSON, 1986, 1995) possibilita a reflexão do paradoxo apresentado em (86), frisamos que a contradição não é apresentada na expressão e, por isso, o mecanismo dedutivo não deve encontrar problemas quanto a essa questão. Ou seja, uma regra lógica compatível com a proposição também o será para a dedução.

Lembramos que, na TR, o ambiente cognitivo é construído durante o processo comunicativo ao adicionar uma nova suposição, possibilitada pelo enunciado proferido, às velhas, assumidas por ideias e conhecimentos já possuídos. Assumindo essa possibilidade que a teoria nos dá, de considerar não apenas propriedades linguísticas, vamos propor um cenário para o enunciado (86): João

viajaria nesta manhã, mas dormiu demais e perdeu o voo. Logo que acordou, soube que o avião em que estaria caiu no oceano.

(96)

João: O voo que perdi caiu. Maria: O bem que vem do mal.

Nesse exemplo (96), cuja expressão do paradoxo serve como resposta de Maria ao comentário em que João explica o ocorrido, temos como afirmar que o ambiente cognitivo dos interlocutores é mutuamente manifesto. O mesmo aconteceria caso João não exprimisse nenhuma informação linguística, mas que Maria tivesse conhecimento de que ele deveria estar naquele avião. Com esse preambulo dado, acreditamos que (97) e (98) são inferências pragmáticas, fortalecidas pelo acréscimo contextual dada pelo enunciado de Maria, realizadas por João visto que os princípios de relevância são mantidos.

(97) Para Maria é negativo eu ter perdido o voo.

(98) Para Maria é positivo eu não estar no voo que caiu.

As implicaturas (97) e (98), possibilitadas pelo viés da TR, evidenciam o paradoxo (86) enunciado aqui por Maria. Isso também fica evidente ao pensarmos no nível de explicatura ((99) ‘O bem [não estar no voo] que vem do mal [ter perdido o voo]’). Esse resgate que as inferências possibilitam para (96) também aconteceria de forma similar em outros cenários que permitissem essa expressão paradoxal que não apresenta uma contradição clássica.

Com a análise proposta nos parágrafos acima para (86), compreendemos que as três teorias investigadas apontam conceitos suficientes para que o paradoxo verídico seja ressaltado, sem que, no entanto, a interpretação do enunciado seja afetada.