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CAPÍTULO II. JUSTIÇA PENAL E DEMOCRACIA: A POLÍTICA

2. PARADOXOS DA PARTICIPAÇÃO POPULAR NA JUSTIÇA PENAL

Em Bobbio (2000) somos convidados a perceber o processo de democratização como um alargamento progressivo do quantitativo de cidadãos que participam ativamente das decisões importantes para a sociedade. E não há um assunto público de maior interesse à coletividade do que o crime e a segurança pública. Em finais do século XIX, no nascedouro da sociologia criminal, Émile Durkheim (1999a) já nos ensinava que um comportamento somente é considerado enquanto crime quando atenta contra os estados fortes da consciência coletiva, isto é, os estados mais essenciais daquele conjunto de crenças e sentimentos comuns

à média dos membros de uma determinada sociedade, que forma um sistema que dá vida a uma dada formação social, integra um grupo como grupo e sem o qual a convivência em uma particular comunidade é insustentável. Um assunto coletivo de tamanha envergadura não poderia deixar de interessar aos cidadãos que desejam participar na esfera pública. Aliás, o controle do crime e o exercício do poder punitivo pelo Estado, desde os primeiros intelectuais que estudaram o fenômeno do poder, como Thomas Hobbes (1993), é percebido como uma questão política fundamental, uma questão fundadora da própria política, pois, segundo pensa o festejado contratualista, é na cessão do direito de punir ao Estado que os cidadãos entregam a um terceiro imparcial, o soberano, aquela faculdade que possuíam de, usando os termos de Niklas Luhmann (1983), manter as expectativas comportamentais normativas mediante a vingança privada ou outras formas de processamento dos desapontamentos. Mas é claro que, depois de um longo processo histórico de afirmação do regime democrático, especialmente a partir de Rousseau (2003), o soberano incumbido da gestão dos assuntos públicos não se confunde mais, como pensava Hobbes, com o Estado, senão com a vontade dos cidadãos, embora pelo medium das instituições estatais e não por quaisquer outros meios privados.

Pelo que foi dito no parágrafo anterior, não é de se estranhar o fenômeno hodierno de ampliação do interesse popular pela gestão judicial das temáticas do crime e da segurança pública, que, indubitavelmente, tende a ampliar progressivamente o número de cidadãos que participam do cotidiano da Justiça Penal, democratizando assim, de certa forma, este âmbito judicial. O modo como tal processo de democratização se tem produzido, entretanto, apresenta alguns paradoxos que precisam ser preliminarmente discutidos, porque decorrem do “déficit democrático” do atual modelo de democracia representativa e do aumento vertiginoso da criminalidade nas sociedades contemporâneas. Como diz Garapon (2001), o Judiciário ultimamente se converteu no lugar privilegiado para a manifestação das paixões democráticas, o palco das disputas políticas que uma democracia de baixa intensidade, para usar uma expressão de Santos (2003), precisou transferir do sistema político para o jurídico. Todavia, quando estas paixões se epifanizam na Justiça Penal, profundas ambigüidades se revelam: por um lado, a Justiça torna-se um contrapoder, um locus de contestação e de luta pela efetivação

de direitos; por outro, transforma-se em um espaço com uma vocação menos nobre, orientado para a vingança, onde espetáculos de barbárie manifestam uma forma sentimental e efusiva de se fazer política de combate ao crime. A aclamação por vingança, a linguagem do choro, a indignação pelos atentados à consciência coletiva entram no Judiciário com exigências populares de retribuição de uma violência ilegítima por outra legítima. A Justiça Penal então se tem visto diante de uma opinião pública, reforçada pela dramatização da mídia, que se

identifica mais com a vítima do que com o respeito pelos direitos do ofensor, mesmo que constitucionalmente garantidos.

Lembra-nos atentamente Garapon (2001) que o desapontamento à norma penal, quando processado pela Justiça, não é mais, como talvez outrora se o percebia, um mero acontecimento cotidiano de resposta à frustração de expectativas de comportamento, mas a expressão de uma demanda política, pois segue acompanhado de exigências sociais e midiáticas de uma decisão judicial que, mais do que preocupada com a interpretação e aplicação corretas do direito, deve consistir em uma resposta exemplar contra o crime. A opinião pública e a mídia requerem, portanto, de juízes e tribunais, mais do que decisões jurídicas, o empreendimento de uma política criminal retributiva pautada mais em juízos irracionais, sentenças emocionais, do que em uma racionalidade que respeita a valores, como diria Weber (1999). A retribuição almejada pela opinião pública e pela mídia não se fundamenta na busca por uma resposta ao ultraje à lei, senão ao sofrimento causado à vítima que, por extensão, ultraja e amedronta a sociedade. Com isso, perde-se de vista o princípio fundador da Justiça, que é o de terceiro imparcial que não adota a posição nem da vítima nem do agressor e que busca afastar a emoção dos acontecimentos a fim da construir, na medida das possibilidades, uma solução racional para determinada controvérsia. Esta perda implica na diabolização do agressor ou suposto ofensor, como assevera Garapon, agravada pelo afã não somente de encontrar responsáveis para os fatídicos acontecimentos da vida, mas culpados pela ocorrência das tragédias humanas, mesmo quando tenham sido produzidas por eventos exclusivamente naturais ou casuais. No dizer do autor, é “como se a evolução da sociedade democrática lhe fizesse considerar a idéia de que nenhuma morte é natural e que, quando não atribuída a uma vontade positiva, pode ser sempre imputada a uma negligência” (GARAPON, 2001, p. 105). A Justiça Penal, então, perante a vontade geral, as pulsões da maioria, vê-se pressionada a transformar-se em uma violadora dos direitos constitucionais, dos valores democraticamente escolhidos, a fim de produzir um maior sentimento de justiça e de segurança.

E mais: a tendência expressa nos anseios da opinião pública e da mídia crescentemente forçam a Justiça a tratar o infrator das normas penais não como um sujeito de direitos, mas sim como um inimigo da sociedade, ainda que em potencial. Para usar os termos de Günther Jakobs (2009), o agir emocional da maioria cobra do Judiciário a aplicação de um direito penal do inimigo, ao invés de um direito penal do cidadão. Neste último, a preocupação da reação punitiva é com a confirmação da estrutura normativa da sociedade; em outras palavras, falando com Luhmann (1983), o objetivo da pena não é outro senão apenas o processamento

do desapontamento à ordem jurídica, mantendo as expectativas comportamentais normativas da sociedade. O direito penal do cidadão é, portanto, um direito de todos, que busca manter a vigência da norma e, por tal motivo, não possui qualquer razão para não respeitar os direitos fundamentais do infrator que, como é de se deduzir, continua a figurar como um sujeito pleno de direitos. Ao contrário, o direito penal do inimigo, conforme o próprio nome já diz, é aquele constituído contra um inimigo, e frente a um inimigo é a coação que possui maior importância, a repressão e a retribuição do mal, e não o processamento das frustrações com a consecutiva manutenção da estrutura normativa. O direito penal do inimigo combate o infrator por sua periculosidade social. Trata-se de uma perspectiva algo panóptica, de acordo com a definição de Michel Foucault (2005), que trata os indivíduos nas suas virtualidades, no que eles podem vir a fazer, no perigo que são para a sociedade; portanto, devem ser privados de agir livremente nesta e, por isso, não são tratados como um cidadão, um agente interno, sujeito de direitos, que frustrou uma expectativa de comportamento convertida em norma penal.

Os paradoxos da democratização da Justiça Penal, de consonância com Garapon (2001), vão ainda mais além. Ademais de a opinião pública e a mídia difundirem um direito penal do inimigo, fomentam cada vez mais uma passagem de um processamento civil e administrativo dos conflitos para um processamento penal. Tendem a disseminar a idéia de que toda atividade patológica na sociedade, seja econômica ou social, deve ser sancionada penalmente. A Justiça Penal, por seguimento, passa de uma instância secundária de resolução de conflitos para a instância resolutória das conflituosidades por excelência. E este fato possui uma explicação, segundo o magistério de Garapon. É que a Justiça Penal é sempre, para os cidadãos, uma opção disponível diante do fracasso dos outros meios de regulação (civis ou administrativos), da descredibilidade do sistema político e até mesmo do arrefecimento das instâncias que preenchiam uma função moral e simbólica na sociedade (como, principalmente, a religião). A Justiça Penal apresenta-se como uma opção repleta do simbolismo de autoridade que, todavia, confere efeitos bastante materiais a suas ações, um caminho que, dada a simbólica que lhe envolve, assegura aos cidadãos um sentimento de segurança e de estabilização dos conflitos que, diria Bourdieu (2005), por seu poder quase mágico, a sentença judicial condenatória produz, garantindo, inclusive, muitas vezes, a própria aceitação ou assimilação por parte do condenado, que adere à decisão do juiz ou tribunal. No mais, continua Garapon, diferentemente do governo e do parlamento, o Judiciário não pode esquivar-se de pronunciar uma decisão sobre um problema que lhe foi submetido. Isto tudo faz com que as sociedades democráticas, que têm aumentado sua aposta no

Judiciário como o guardião das promessas democráticas e emancipatórias não realizadas da modernidade, transfiram para a Justiça, sobretudo a Penal, seus conflitos sociais e intersubjetivos não-resolvidos.

A aposta no processamento penal dos conflitos sociais e intersubjetivos, por transformar o Judiciário na instância privilegiada de resolução das conflituosidades, sobrecarrega-lhe de atividades ao promover, concomitantemente, uma expansão do direito penal, muito bem discutida por Jesús-María Silva Sánchez (2002). Esta tendência segue relacionada a uma assimilação distorcida por parte do sistema político das demandas sociais por mais proteção e das emoções que suscitam sentimentos irracionais de retribuição, que são interpretadas pelo governo e pelo parlamento como demandas exclusivamente por punição. Ao invés de racionalizar as demandas de sorte a contextualizá-las no âmbito de um sistema jurídico-político cuja exteriorização precípua é a Constituição, esta distorção na interpretação das pressões sociais conduz à introdução na legislação de novos tipos penais, ao agravamento dos já existentes, assim como a uma restrição das garantias individuais desde há muito asseguradas aos cidadãos. Trata-se de uma expansão que se justifica na criação de novos bens jurídico-penais, na ampliação dos espaços de risco penalmente relevantes, na necessidade de flexibilização das regras de imputação e de relativização das garantias dos acusados. Com fulcro em discursos sobre as peculiaridades da tutela penal em uma sociedade complexa, o legislador acolhe novas formas de delinqüência, sendo que a eliminação de outras figuras delitivas é praticamente insignificante. Ou seja, problemas sociais que deveriam ser resolvidos através de políticas não criminais, buscam-se resolver com o recurso permanente à lei penal, o que constitui uma aparente solução fácil dos conflitos ao deslocá-los para a Justiça Penal, a qual, pelo menos, os cidadãos podem acessar mais facilmente quando desapontadas as suas expectativas de respeito à ordem jurídica, fato que tranqüiliza a opinião pública e alimenta os noticiários que abordam a temática criminal, embora os problemas sociais, de fato, não sejam enfrentados senão paliativamente.