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5.2 A Anvisa e o Ministério da Saúde: o (re) agir institucional

5.2.1 Parceria entre governo e indústrias: fragilidade ou inovação?

A Parceria Público-Privada no campo da saúde30- PppS é um fenômeno relativamente

novo e ainda carece de uma definição precisa, podendo referir-se a algum tipo de engajamento ou interação entre os setores públicos e privados, ou mesmo a um relacionamento entre estes, estabelecido com base em critérios estritos. Esse tipo de parceria se pauta na partilha de objetivos e, em algum grau, de tomada de decisão, entre os setores público e privado. Entretanto, em geral, em nenhuma modalidade, se prevê a participação de organizações sem fins lucrativos (HAWKES, 2008b).

Segundo essa autora, as PppS relacionadas à dieta, nutrição e atividade física se processam mais lentamente, comparadas às que envolvem medicamentos. As iniciativas que estão sendo adotadas em vários países estão focadas basicamente em quatro objetos: melhoria de produtos alimentícios (redução do sal), educação do público, rotulagem nutricional e propaganda e, por fim, pesquisas.

A formalização da PppS, estabelecida a partir desse trabalho conjunto, busca alcançar resultados efetivos, com redução de recursos e de desgastes político-institucionais, sendo, em certas circunstâncias, mais vantajosa do que uma medida empreendida isoladamente pelo governo. No entanto, para que as parcerias se materializarem em Acordos, há um processo de negociação para o estabelecimento de responsabilidades mútuas e interesses partilhados, sendo fundamental a geração de benefícios para ambas partes, expostos previamente com clareza, em ambiente de transparência e de responsabilização, para que essa aliança possa se consolidar (MITCHELL, 2008). Assim, no campo da saúde, a governança das PppS tem como foco cinco questões-chaves: representação, participação, responsabilização, transparência e efetividade (HAWKES, 2008b).

30 Na saúde pública, esse tipo de parceria é completamente diferente dos contratos privados para execução de

serviços públicos firmados sob a forma de Parceria Público-Privada (HAWKES, 2008b). Nestes casos, o governo firma contratos de concessão com parceiros privados, que se responsabilizam pela realização investimentos em infraestrutura e prestação de serviços de interesse público, por prazo determinado.

A partir da década de 90, a FAO e a OMS começam a estimular os países a desenvolverem ações conjuntas para lidar com a obesidade e outras DCNT, mediante a articulação entre governo, indústrias e consumidores (WHO, 1990). Aquelas organizações afirmam ser fundamental criar estratégias multisetoriais com diferentes atores, de longa duração; formar alianças e parcerias; e engajá-los em programas colaborativos, pois a responsabilidade na prevenção dessas doenças é compartilhada. Porém, não se deve perder de foco que a incumbência da indústria é a de aprimorar a qualidade dos seus produtos alimentícios (WHO, 2000; WHO, 2002b; WHO, 2003b). Acreditam que a atuação articulada dos formuladores de políticas públicas, produtores, consumidores e outros parceiros pode transformar o caráter do sistema alimentar, tornando-o “mais compatível com os preceitos nutricionais” (FAO, 2013b).

Na Europa, inúmeras Parcerias foram alavancadas para enfrentar o fenômeno do sobrepeso e obesidade na Região, sob o respaldo da Comissão das Comunidades Europeias, cujo alvo principal são os consumidores. Assim, com muita frequência, essas parcerias se voltam para modificar comportamentos dos consumidores, qualificando-os com informações para revisão de hábitos de consumo e de condutas quanto ao exercício físico, encarando a obesidade como um problema individual dentro de uma concepção conservadora-liberal em lugar de instigar mudanças estruturais que determinam tais comportamentos, (BORCH; ROOS, 2012). Há também parcerias destinadas a reduzir os componentes não saudáveis dos alimentos (HAWKES, 2008b).

O desafio está em harmonizar interesses, no interior das divergências “naturalmente” instaladas entre os agentes do setor produtivo, que visa ao lucro privado e ao comércio de produtos alimentícios (hipercalóricos e ricos em sódio), e os agentes públicos, investidos da função precípua de proteger os interesses da coletividade. No caso do Brasil, a despeito da existência dessas divergências, é possível que os alertas sistemáticos emitidos pelos organismos internacionais, pelo governo e mídias locais sobre os riscos dos produtos alimentícios não saudáveis, assim como, uma remota insegurança dos fabricantes quanto ao uso de medida de intervenção compulsória – regulamentação -, sensibilizaram as

entidades corporativas das indústrias a empenharem-se em negociar com o governo e, assim, evitar qualquer instabilidade no comércio de tais produtos.

Para tratar essa questão dos alimentos, o governo brasileiro decidiu fazer uso de instrumentos do tipo “Acordo e Termos de Compromissos”, e renunciou à via da regulamentação. A primeira impressão é que esses instrumentos aparentemente simbolizam uma inovação administrativa, mas, de fato, eles representam um retrocesso ao serem comparados ao processo democrático de regulamentação que vem sendo instituído no âmbito das instituições públicas, permitindo um amplo debate e a participação dos setores organizados e da sociedade em geral. Além disso, demonstra a fragilidade do governo em gerenciar os riscos dos alimentos com a agilidade requerida e com a autoridade e a competência que lhe são atribuídas. As dificuldades políticas são reais, a reação do poderio das corporações de mercado é efetiva, mas o vazio imposto à sociedade civil é revelador de uma conduta contraditória e de uma evidente indisposição para angariar o apoio de aliados.

As PppS que lidam com esse objeto em particular estão sujeitas a várias limitações que podem comprometer a boa governança, entendida aqui como o alcance dos resultados desejados da maneira correta (HAWKES, 2008b). Na perspectiva dessa autora, os parceiros privados podem interagir para conduzir a agenda do governo, de modo a se esquivar de suas reais responsabilidades ou desviar o foco de atenção para as soluções potenciais que contrariem os seus interesses. Podem, também, influenciar as decisões dos parceiros do governo, criando um ambiente interno que os iniba a se esforçarem para regular o setor privado, com fins de não comprometer a parceria já instalada.

O artigo de Majone (2006) sobre o Estado regulador congrega vários elementos que ajudam a compreender a atuação dos governos. Segundo o autor, esse novo modelo imprime um paradoxo que se traduz pelo estímulo à privatização e à desregulamentação, de um lado, e o incremento das políticas regulatórias, de outro. Porém, para se ajustar às necessidades do mercado, a racionalidade da intervenção governamental combina medidas de desregulação e de uma nova regulação. O Acordo se encaixa perfeitamente na desregulação que, conforme esse autor, significa regulação flexível, não rígida e que é

aplicada em larga escala no campo da regulação social no qual se situa a saúde.

Embora o Estado, na era da globalização econômica, se submeta a constantes pressões do mercado internacional, obrigando-se a fazer várias concessões, Santos (2005) acredita que ele ainda acumula suficiente poder para reagir e manejar as suas regras, de forma a compatibilizar as influências externas e as realidades internas. No entanto, tudo depende dos verdadeiros interesses que o Estado defende e da habilidade e das estratégias utilizadas para viabilizá-los.

As feições do Acordo formalizado entre o governo e as entidades representantes das indústrias de alimentos comprovadamente não privilegiou as realidades internas (epidemia de obesidade, alto consumo de produtos hipercalóricos e ricos em sal, incremento de outras DCNT). Ele foi moldado com medidas elásticas de redução do sódio e ainda sem um efetivo suporte do trabalho “educativo” das instituições de saúde, para conscientizar a população sobre os benefícios dessa redução. Em princípio, parece que é somente a saúde que está em questão, mas, de forma velada, há também a preocupação de evitar que o mercado, durante a fase de ajuste dos produtos, sofra abalos nos lucros com tais medidas. Em função disso, Stuckler & Nestle (2012) afirmam que qualquer parceria tem que resultar em lucros para as indústrias.

Assim, esse evidente contrabalanço de interesses implicitamente levou à decisão de não se enfrentar os conflitos da regulamentação do sódio, com base nos teores mínimos apontados pelo diagnóstico, e comprovadamente factíveis, o que constitui um dos pontos de fragilidade dessa intervenção. É importante ressaltar que, em experiências anteriormente relatadas, as indústrias nacionais foram obrigadas a enriquecer seus produtos com nutrientes para atender as exigências do setor saúde, arcando com os custos econômicos desse procedimento. Agora, o confronto envolve empresas transnacionais e a redução de nutrientes não saudáveis e de custo baixo, que afetam a palatibilidade dos produtos e tal fato pode interferir nas vendas.

serviços de vigilância sanitária, uma vez que estes realizam as atividades de monitoramento dos produtos previstas naqueles atos. Desse modo, esses atos se convertem em motivo de reflexão, uma vez que não têm valor legal para as ações de rotina da vigilância sanitária. Em comparação ao ritual das práticas realizadas, tais atos simbolizam tratar de forma protetora o mercado e protelar a garantia do direito à saúde população. Além disso, abre precedentes no campo da vigilância sanitária para que a regulamentação seja substituída por “Acordo”, quando for necessário manejar questões polêmicas de riscos à saúde, ampliando-se os conflitos inerentes à atividade.

O fato de os componentes nutricionais em excesso (gorduras saturadas, açúcares e sal) produzirem efeitos à saúde (acumulativos e de longo prazo) diferentes daqueles causados pela maioria dos agentes contaminantes (em geral, de curto prazo e de propagação extensiva e rápida se o produto for de circulação global), não deve ser motivo para adoção de intervenções distintas por parte do governo, que sempre aplicou regras compulsórias para esse segundo grupo de riscos.

Embora a regulamentação usualmente seja percebida de modo deturpado, como uma medida de intervenção antipática e autoritária, ela é oportuna e necessária quando se trata de prevenir riscos à saúde, inclusive epidemias que se disseminam na sociedade. A ausência de parâmetros internacionais, face ao comércio global, instruindo sobre como lidar com os nutrientes-chave presentes nos produtos alimentícios não impede que o país ouse em prol da saúde do coletivo e, nem tampouco, que ele se contenha com a adoção de medidas atenuantes e lentas nesse campo. O governo acertou ao optar pelo caminho da argumentação, do convencimento, mas errou, no encerramento do diálogo, por não estabelecer regras compulsórias para redução do sódio e dos demais nutrientes em questão.

Outro aspecto da fragilidade desse Acordo está na ausência marcante da sociedade civil. Um dos aspectos centrais da “boa governança” de qualquer iniciativa, é a representação e participação da tomada de decisão daqueles afetados pelo exercício do poder (HAWKES, 2011). Contudo, a ausência forçada da sociedade civil rompe com as práticas que vêm sendo inauguradas a partir da Constituição de 1988, de criação de

espaços públicos de intervenção e de expressão da democracia participativa. Ausência que foi marcante, na medida em que a sociedade civil poderia atuar como um integrante diferenciado, tanto para dar suporte ao governo na defesa do interesse público e da primazia dos assuntos de saúde, quanto para exercer pressão no sentido de avançar as negociações em prol da aprovação de regras com metas mais justas para redução de sódio nos produtos alimentícios.

Para sintetizar, o Acordo, ao contrário de significar avanço nos dispositivos de controle de alimentos, representa limitações político-institucionais para o exercício da prática da vigilância sanitária, em especial, em três aspectos: a) cria precedentes para evitar a regulamentação com a finalidade de reduzir os teores de nutrientes-chave, ação fundamental para proteger à saúde; b) gera situações de imbróglio interno, pois não há como fiscalizar o cumprimento dos teores nutricionais, como base nesse Acordo e, por fim, c) reduz a sociedade civil a um vazio, colocando-a à margem desse processo de concertação de medidas sanitárias, para amenizar as tensões e os embates com o setor produtivo. A participação ativa da sociedade civil organizada é sempre um reforço para se galgar maiores conquistas, inclusive, a melhoria da composição nutricional dos produtos pelas corporações das indústrias.

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