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5.2 A MATERIALIZAÇÃO DO CURSO DE FORMAÇÃO

5.2.4 Parceria família e escola

A categoria que discorre a parceria entre família e escola foi eleita pela emersão massiva desse assunto, entoado em todos os blocos temáticos de discussão elencados. Desde o primeiro dia o tema entrecortou os assuntos escolhidos e marcou os discursos tanto de professores da sala comum como da sala de recursos.

A relação entre as duas redes sempre fora marcada mais por antagonismos e conflitos que por vínculos de parceria propriamente ditos, instâncias complexas que são na tessitura do desenvolvimento humano. A escola historicamente engrenou um movimento de afastamento das famílias do seu processo, estabelecendo com estas relações frágeis, de linhas tênues.

Jesus (2008, p.14) afirma que tradicionalmente

[...] a superioridade cultural da escola tem colocado a família na função de apoio ao seu trabalho. [...] Superar essa situação de unilateralidade supõe uma mudança cultural nas relações estabelecidas entre essas duas instituições. Trazer os pais para o debate representa um grande desafio que precisa ser enfrentado pelos educadores.

Esse desafio de trazer os pais para o debate, para dentro da realidade escolar foi lido por uma das professoras da sala de recursos. Observa-se em sua fala que aponta famílias ausentes e atribui isso à falta de cultura ou interesse das mesmas, que segundo ela transferem para a escola toda a responsabilidade pelo sujeito. Trata-se de uma interpretação que outorga à família a responsabilização pela dificuldade no estabelecimento da relação com a instituição, denotando a falta de uma análise mais ampla quanto à tessitura que multifatorialmente alinhava essa malha interacional deveras complexa. Ainda assim, sinaliza a importância de conhecer a realidade na qual a criança está implicada e apostar nela, sintetizada no trecho abaixo:

“[...] geralmente as famílias são ausentes e na nossa realidade precária os pais realmente não sabem ler, ou deixam que a falta de interesse ou ignorância cultural tome conta... acham que quando bota na escola a obrigação passa a ser só do professor, só da escola, ele não tem mais responsabilidade nenhuma... aí a gente passa por essas situações e eu acho interessante a gente saber mais dessa realidade” (PROFESSORA DA SALA DE AEE – SOCORRO – 3º ENCONTRO – 06/05/2014). Ao se pensar a dinâmica do processo de inclusão escolar, ressaltar-se-á os efeitos da atribuição de sentidos por essas redes quanto ao estatuto da deficiência e ao lugar do sujeito nessa trama, historicamente instaurados por marcas depreciativas e aniquiladoras de potência

por pais e professores, aparentes não somente no discurso (neste, inclusive, muitas vezes mascarado), mas também no modo como estes estigmas são enclausurados por práticas pouco prospectivas e potencializadoras.

O discurso dos professores no grupo de formação andava sempre de mãos dadas com análises muito controversas. Por um lado, alguns relatos mais afetados rompiam inconscientemente com o princípio fundamental do modelo social de deficiência, que promove uma ruptura com a ideia de que a pessoa com deficiência e sua família são exclusivamente responsáveis por seus problemas. Tal modelo difunde a responsabilização coletiva pelo desempenho dos papeis sociais e a necessidade de mudanças.

No recorte abaixo, a professora se posiciona frente à culpabilização feita pela sociedade à família do sujeito deficiente, apontando inclusive que o professor tem obrigações para com esse aluno e não se deve remeter aos pais a responsabilidade pelo processo escolar, mediante indagações inflamadas que dizem de uma análise crítica que rompe com a leitura superficializada muitas vezes embutida nas reflexões sobre a família na inclusão socioeducacional.

“[...] A grande responsabilidade que nós (professores) temos, pois parece ser que começa na mãe e no pai ter um ‘ET’, o filho deficiente... o erro já começa dela... primeiro bota o filho defeituoso no mundo [...] quem traz o manual? Como é que essa família tem que se comportar? como é que esse professor tem que agir? É a mãe que tem que ensinar o professor? Porque o professor sabe... ele sabe que tem que adaptar o currículo, eu sei que eu tenho que convencer o diretor, ele sabe, mas não sabe como fazer...e aí a gente vai assim empurrando a bola...e no final o prejuízo é do aluno [...]” (PROFESSORA DA SALA DE AEE – SOCORRO – 1º ENCONTRO – 01/04/2014).

Noutros casos, ao evidenciar os recorrentes conflitos com a família no contexto escolar, muitas vezes colocando-a como grande responsável pelo fracasso das propostas, tomavam para si o direito de outorgar-lhes esse peso, diminuindo os efeitos contraproducentes das suas práticas. Os mecanismos introduzidos nesse emaranhado relacional diziam da urgência com que se precisava ressignificar tais arranjos, visto a crença de que é nessa relação que poderemos haurir novos sentidos ao lugar da pessoa com deficiência.

Como disse Vigotski (1997) o trabalho com as crianças com deficiência deve basear- se na diversidade de interações sociais partilhadas e compartilhadas nas mediações com outros sujeitos em contextos variados e nos aprendizados viabilizados por meio da

heterogeneidade dessas relações, que convergem para o seu desenvolvimento. Para tanto, apostamos na crença de que é a escola regular palco para essas construções e, portanto, precisamos irremediavelmente nos despir das práticas ultrajantes com que ainda lidamos com esses sujeitos, atribuir sentidos mais prospectivos. Nesse sentido, a aposta na parceria escola e família nos parece prenunciar trilhas para as mudanças.

Buscando capturar os movimentos delineados no grupo, enfatizo que os embates travados entre essas redes não pode ser invisibilizado, pelo contrário, deve vir à superfície para que se possa pensar sobre eles, desmistificar verdades absolutas criadas nesse entorno. Penso que para a família da criança/adolescente com deficiência, com transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, o espaço escolar tem sido hostil e os tem distanciado muito mais do que aproximado, caminhando pela via avessa.

Diante de narrativas que apresentavam nas entrelinhas a família como um grande problema (sem desejar eximi-los de sua co-responsabilidade), questionamos: perante toda essa problemática (não aceitação da família do uso de um sistema de comunicação, da inserção da criança nos eventos escolares, do auxílio em casa com as atividades, dentre outros) o que é possível ser feito? Como concretamente se pode proceder? A resposta imediata trazia novamente os impeditivos, parecia difícil enxergar frestas de possibilidade, denunciava-se a limitação da atuação.

“tem a questão familiar também, né?! [...] ela também demora a aceitar, e ela só vai pro médico porque a escola, a diretora da escola é uma pessoa esclarecida [...]” (PROFESSORA DA SALA DE AEE – SOCORRO – 2º ENCONTRO – 15/04/2014).

As interações estabelecidas com as famílias revelavam a fragilidade dessa relação. Essa resposta rápida se lançava muitas vezes irrefletidamente, o que nos instigava. Como, então, disparar a necessidade de reflexão desses professores em relação ao trabalho com a família?

Sobrinho (2009) nos ajudou a levantar discussões quanto à relação família x escola. Para o autor, a escola pode constituir ações e buscar meio para o estreitamento das relações com os pais dos alunos, a partir da conscientização de que o processo de escolarização é tarefa da escola, meta maior que a circunscreve e mobiliza. Desmistificar as arestas dessa parceria e o modo como se construiu historicamente deve ser objetivo da escola inclusiva.

Lidamos com isso de modo a tentar explicitar cada vez mais nossa estranheza em relação a essa postura, provocando ao lançar mão de um olhar mais multifacetado às possibilidades de atuação junto à família. Dessa forma, buscamos disparar questões mais incisivas que levassem a pensar. Sem intenção de desmarcar quaisquer culpados ou vítimas nesse processo de interação escola-família, procurávamos enxergar essa relação sob outro prisma, buscando elencar o que poderia ser feito, que dispositivos poderiam ser criados para ressignificar a relação com os pais.

Chegar ao entendimento de que a parceria com a família pode provocar melhor desenvolvimento no trabalho com o sujeito com deficiência consiste num primeiro passo para que se vislumbre a possível mudança, cientes de que tal transformação se dá na relação, pela aposta na interação e captura dessas famílias ao processo inclusivo escolar.

“eu tinha levantado esse ponto que a gente tem que partir da realidade dos alunos, tem que conhecer um pouco mais esses alunos, pra isso tem que ter uma aproximação com a família tem essa dificuldade que às vezes eu acho que é a maior dificuldade se relacionar com a família, que é pra existir essa troca pra gente poder desenvolver um trabalho mais efetivo com os alunos [...]” (PROFESSORA DA SALA DE AEE – SOCORRO – 3º ENCONTRO – 06/05/2014).

“eu trabalho e aposto muito com essa questão da confiança do aluno e com a confiança da família [...]” (PROFESSORA DA SALA DE AEE – SOCORRO – 2º ENCONTRO – 15/04/2014).

A interação do professor do AEE com as famílias dos alunos, pelos relatos, soava mais acolhedora, menos censuradora. Frequentemente diziam da relutância de algumas famílias no uso de ferramentas alternativas à aprendizagem dos filhos e o quanto isso era fator complicador, como também apontavam um caráter de alheamento como disparador de muitos efeitos indesejáveis a um trabalho mais vinculado aos familiares.

Entretanto, tal discurso ressoava mais como uma espécie de leitura de como os pais lidavam com o atendimento especializado do que uma razão para que o trabalho paralisasse. Na verdade, pelos discursos, parece-nos que os pais tem tomado o professor da educação especial como “referência”, como aquele que pode vislumbrar as respostas para o avanço dos filhos, talvez até mesmo pelo estatuto de saber que possuem por serem professores especializados.

Os ecos entoados frente à parceria escola x família evidenciam o quão crítico é este tema e como os percursos trilhados produziram uma relação demarcada por mais

distanciamentos que aproximações. Pensando a inclusão, houve o reconhecimento da necessidade de captura da família para a construção do processo e, para tanto, discutir como ressignificar o encontro dessas duas redes surge como um dos principais elementos à constituição de uma escola verdadeiramente inclusiva.

Entremeado por muitas tensões, o diálogo permitiu nuances de um movimento de mudança na tomada de responsabilização sobre o processo, entendendo que a formação é processual e que a efetividade dessas mudanças acontecem mediante a abertura no cotidiano escolar para que as reflexões se perpetuem e se dilatem frente ao contato com o alunado.