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4 UMA NOVA FACE LEGISLATIVA APÓS A REFORMA DO ESTADO PARA A

4.3 Parcerias por Contratos de Gestão Para Organizações Sociais

O que interessa, efetivamente, é rastrear e analisar como a implementação de políticas públicas de caráter neoliberal vem reformulando o papel do Estado na educação por meio da legislação atual, promovendo as parcerias entre as esferas públicas e a privadas. Por isso, é importante se observarem as formas como se operacionaliza legalmente na realidade concreta. Todavia, pela amplitude do tema, apenas as principais formas de políticas públicas educacionais que se materializam em leis serão mencionadas. Inicie-se pelas organizações sociais e os contratos de gestão.

O governo de FHC criou para o Estado o Programa Nacional de Publicização (PNP) com o objetivo de ampliar a descentralização administrativa na prestação de serviços públicos. Um dos caminhos da publicização foi o advento da Lei nº. 9.637/1998 para algumas atividades de caráter social, exercidas por pessoas e órgãos administrativos de direito público, que poderiam ser, posteriormente, absorvidas por pessoas de direito privado. Estatui o art. 20 da referida lei, in verbis:

Art. 20. Será criado, mediante decreto do Poder Executivo, o Programa Nacional de Publicização - PNP, com o objetivo de estabelecer diretrizes e critérios para a qualificação de organizações sociais, a fim de assegurar a absorção de atividades desenvolvidas por entidades ou órgãos públicos da União, que atuem nas atividades referidas no art. 1º, por organizações sociais, qualificadas na forma desta Lei, observadas as seguintes diretrizes: I - ênfase no atendimento do cidadão-cliente;

II - ênfase nos resultados, qualitativos e quantitativos nos prazos pactuados; III - controle social das ações de forma transparente.

A bem da verdade, como essa lei veio na esteira da reforma deflagrada em 1995, é de se cogitar que a real intenção do Estado, com o Programa em pauta, seria o seu afastamento gradual e direto da atividade de prestação de alguns serviços públicos, delegando-os a pessoas de direito privado, não integrantes da Administração Pública, direta ou indireta, principalmente, organizações do “terceiro setor”.

Às pessoas jurídicas do “terceiro setor”, que já desempenhavam papéis na vida social, foi reservada - seguindo-se as recomendações internacionais de desestatização de algumas funções e da reforma estatal - a execução desses serviços públicos, em regime de parceria com o Estado, por meio de contratos de gestão (Lei nº. 9.637/1998) ou termos de parceria (Lei nº. 9.790/1999). Estavam, geneticamente, constituídas as chamadas organizações sociais (OS) e, um pouco mais tarde, as organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP’s).

A Lei nº. 9.637/1998, em seus primeiros artigos, dispõe:

Art. 1º O Poder Executivo poderá qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde, atendidos aos requisitos previstos nesta Lei.

Art. 2º São requisitos específicos para que as entidades privadas referidas no artigo anterior habilitem-se à qualificação como organização social:

I - comprovar o registro de seu ato constitutivo, dispondo sobre:

a) natureza social de seus objetivos relativos à respectiva área de atuação; b) finalidade não-lucrativa, com a obrigatoriedade de investimento de seus excedentes financeiros no desenvolvimento das próprias atividades;

c) previsão expressa de a entidade ter, como órgãos de deliberação superior e de direção, um conselho de administração e uma diretoria definidos nos termos do estatuto, asseguradas àquele composição e atribuições normativas e de controle básicas previstas nesta Lei;

d) previsão de participação, no órgão colegiado de deliberação superior, de representantes do Poder Público e de membros da comunidade, de notória capacidade profissional e idoneidade moral;

e) composição e atribuições da diretoria;

f) obrigatoriedade de publicação anual, no Diário Oficial da União, dos relatórios financeiros e do relatório de execução do contrato de gestão.

A análise do fragmento legal supra referido denota, de fato, uma teratologia92 jurídica, pois, por meio de norma infraconstitucional, o Estado está a possibilitar a transferência à iniciativa privada de algumas de suas atividades nucleares, ou atividades-fim. Entre essas atividades-fins está a educação e a saúde, dois setores de grandessíssima relevância social e que absorvem centenas de milhares de trabalhadores, nas mais variadas funções, sem contar que são direitos sociais fundamentais, conforme já visto. Como atividade-fim da prestação

estatal em conformidade com os desígnios da Constituinte, e claramente determinados na Constituição formal de 1988, deve o poder público prestá-la, preferencialmente, e de modo direto, não se podendo cogitar de outros modos, como o espaço público não-estatal, exceto o já permitido na própria C.F/1988.

Contudo, atendidas às exigências da legislação infra-constitucional, bastará àquelas entidades do “terceiro setor” obter o certificado de qualificação junto ao Ministério da Justiça para assumirem a função de parceiros do Estado, visando à execução de determinadas tarefas de interesse público inclusive, sem necessidade de licitação para celebração de contratos de gestão com o poder público, consoante deflui da Lei nº. 8.666/1993:

Art. 24. É dispensável a licitação: [...]

XXIV - para a celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão. (Inciso acrescentado pela Lei nº. 9.648, de 27.05.1998).

Outro dado importante nesse contexto é que, depois de qualificadas como organizações sociais – o que resultará de critério discricionário do ministério competente para supervisionar ou regular a área de atividade correspondente ao objeto social (art. 2º, II da lei nº. 9.637/1998) –, aqueles entes do “terceiro setor” poderão ser declarados como de interesse público e utilidade pública. Portanto, para todos os efeitos legais, podem receber recursos orçamentários e usar bens públicos necessários à consecução de seus objetivos. Nesse último caso, por meio de permissão de uso (arts. 11 e 112 da lei retro mencionada).

Ademais, há a possibilidade de cessão especial de servidor público, com ônus de seus vencimentos para o Estado, ou seja, o governo poderá ceder servidor público que irá atuar nas organizações sociais privadas como funcionário prestador de serviços e sem a incumbência do pagamento de sua remuneração, que continua sendo do órgão estatal cedente.

Paradoxalmente, a lei estabelece que, nos próprios contratos de gestão, deverão ser observados os princípios da moralidade, da legalidade, da impessoalidade, da publicidade e da economicidade, o que por si só atrita com a inexigibilidade da licitação. Isso porque, sem licitação, por exemplo, tolhe-se a oportunidade para que outras entidades organizativas também participem do pleito, democraticamente, no sentido de firmar contratos com a Administração Pública.

Assim, face à Lei nº. 9.637/1998, as organizações sociais podem, entre outras vantagens, contratar empregados sem concurso público, adquirir bens, produtos e serviços

sem processo de licitação e ainda não prestar contas de seus gastos a órgãos de controle interno e externo da Administração Pública. Essas formas de operacionalização são consideradas atribuições privativas do Conselho de Administração da própria organização, que, por seu turno, pode aprovar por maioria, no mínimo, dois terços de seus membros, o regulamento próprio contendo os procedimentos que devem adotar para a contratação de obras, serviços, compras e alienações e o plano de cargos, salários e benefícios dos empregados da entidade privada.

Evidentemente, com todos os benefícios e facilidades expostas acima, trata-se de terceirização ou privatização de serviços públicos. Transferem-se deveres do Estado, atributo constitucional das competências privativas da União, para entes privados que podem dispor de bens, patrimônio, créditos e até mesmo de servidores públicos para administrar e gerir os próprios interesses privados. Além disso, essas entidades do “terceiro setor” são, ainda, declaradas de interesse social e utilidade pública, para os fins legais, o que pode importar na isenção de impostos, obtenção de subsídios etc.

Com relação à educação, ela está prevista na Constituição Federal 1988 (art. 205) como dever do Estado. Este, não pode simplesmente desobrigar-se, ou afastar sua responsabilidade na prestação desse serviço, transferindo-a a terceiros com apoio na legislação infraconstitucional ou derivada, pois não decorre de uma vontade política mais ampla passível de legitimidade em nova Assembleia Constituinte. Ao setor privado, cabe o papel, tão-somente, de complementaridade ou colaboração, como anteriormente asseverado.

No entanto, o que se percebe pela prática são verdadeiras terceirizações previstas nas Leis nºs. 9.637/1998 e 9.970/1999 (esta que irá ser detalhada em seguida), pois há a possibilidade de transferência pelo Poder Público de prédios, móveis, hospitais, postos de saúde, equipamentos, recursos públicos e até mesmo cessão de pessoal estatutário para esses entes do “terceiro setor” e, portanto, da iniciativa privada. Isso leva a novos fatos sociais que, incontroversamente, somados ou agravados pelo disseminar de uma cultura relacional do público com o privado privilegia a formação para o empreendedorismo, flagrantemente, em consonância aos imperativos neoliberais do capital, que apenas gera a expectativa de emprego.